Quem estuda processos migratórios conhece bem a potência das redes afetivas na decisão de migrar. Hoje, mais de 30 anos depois do primeiro tio ter saído do Peru para trabalhar e estudar no estado do Rio de Janeiro, os filhos da família Romero se sentem em casa. Como toda migração motivada pelas redes afetivas, o processo familiar de mudança também foi aos poucos. Depois dos parentes, migraram os pais, Ernesto e Blanca, com os irmãos em fase escolar, Fiorella e Francis. Era 2002 e Ernesto, o filho mais velho, esperou terminar a faculdade no Peru para encontrar o resto da família. Nesse meio tempo nasceu Ofélia, em Rio das Ostras, cidade do litoral norte fluminense que se tornou a pequena Peru dos Romero.

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A Lhama Carioca: Ofélia (esquerda), Ernesto (cima), Francis (direita) e Fiorella (baixo) / Arquivo Pessoal.

Entre os quatro irmãos a diferença de idade chega a ser de 20 anos, mas a distância temporal não representa em nada a distância afetiva. Em muitos momentos da entrevista, concedida ao vivo para o oestrangeiro.org, na última terça-feira (16), Ernesto, Fiorella e Ofélia fizeram questão de lembrar de Francis, que não esteve na conversa por estar trabalhando embarcado na Bacia de Campos, onde é produzido quase todo o petróleo brasileiro, matéria-prima da migração destes peruanos.

Hoje, nem todos trabalham na área petrolífera, mas Fiorella argumentou que o setor acabou “chamando” a família, que fez, em grande parte, cursos ligados à área industrial. Embora tenham se radicado em Rio das Ostras, os três dos quatro irmãos criadores do canal do Youtube A Lhama Carioca se reuniram em Macaé, onde Fiorella vive atualmente, e conversaram conosco por uma hora.

Criar um canal em família

Embora Fiorella seja o rosto mais presente no canal, a ideia inicial foi de Francis, o mais adepto aos conteúdos audiovisuais, apontaram os irmãos. A irmã brincou que muitos a chamam “e aí, Lhama!”, mas o nome é uma referência a essa dualidade vivida entre Peru e Brasil, entre o animal símbolo do país e a referência ao lugar de imigração (Embora “carioca” faça referência apenas à capital, nomear de A Lhama Fluminense soaria estranho!).

“Por que a gente não faz um canal para responder aquelas coisas?”. Quem leu a matéria anterior, sobre o processo de criação do canal de Aylton, o PDF, saberá do que se trata, mas Ofélia e Ernesto explicaram que eram tantas as dúvidas sobre o Peru e a dualidade identitária vivida que conteúdos nunca faltaram.

Segundo eles, cada um dá sua contribuição ao canal. Em uma família que todos desenham, a caçula adquiriu habilidades artísticas voltadas ao ambiente virtual e, junto a Francis, são os mais ligados na parte de edição. Fiorella exerce um papel de liderança como “puxadora” de gravações e Ernesto avaliou que sua contribuição resida principalmente na sugestão de conteúdos. 

Não é comum ver um canal realizado a quatro cabeças e nesta pesquisa sobre vlogs de imigrantes foi a primeira vez que encontramos. A iniciativa dos irmãos não tem intenção de oferecer qualquer inserção laboral ao grupo. “É um hobby”, explicou Ernesto, embora Fiorella tenha lembrado da importância adquirida: “Muitas pautas que a gente trata no canal falam sobre a diferença cultural. Apesar de morar aqui há mais de 15 anos, passamos ainda por situações difíceis que a gente conta no canal. Por mais que passem anos e anos, a questão cultural ainda vai prevalecer”.

Aqui e lá: duas casas para chamar de sua

Apenas Ernesto ainda não tem a dupla cidadania. Estava iniciando o processo quando a pandemia travou as atividades. Mas essa duplicidade identitária não diz respeito apenas à documentação, como afirmaram, mas envolve um sentimento que o próprio Ernesto explicou:

Quando voltarmos ao Peru nós nunca mais vamos ser só peruanos, mas aqui também a gente nunca vai conseguir ser completamente brasileiros, porque nunca deixaremos de lado aquilo que carregamos. Eu acho que as migrações são o que enriquecem as nações, ao longo da história sempre foi assim“.

Fiorella também trouxe sua experiência dessa ambivalência. “Toda vez que viajo eu tenho uma crise de identidade. Quando eu vou ao Peru me sinto brasileira e aqui no Brasil eu me sinto peruana. Então, tem um momento que eu nem sei o que sou mais!”, riu, completando. “É um ganho, eu ganhei duas culturas, dois tipos diferentes de ver”.

“E ela também carrega essa ambivalência”, apontou o irmão mais velho para a caçula, que nasceu no Brasil, mas é naturalizada peruana por questões óbvias. Até mesmo no ambiente doméstico a dualidade está presente na maneira de conversar. Nem completamente no idioma espanhol ou no português. “Às vezes a gente começa uma frase em espanhol, vai para o português e termina em espanhol de novo… é uma mistura, assim, aleatória”, explicou Ofélia.

Ernesto entende que o migrante desempenhe, com isso, uma missão mediadora entre as culturas que está inserido. “No começo eu achava chocante porque eu via o quanto não conheciam a nossa cultura, mas também o quanto da nossa gente do Peru desconhece do Brasil. Ninguém é obrigado conhecer outras culturas, mas nós migrantes temos, um pouco, a missão de explicar isso e aproximar as culturas na medida do possível”.

A Lhama com orelhas atentas para as interações

Ernesto defendeu que o objetivo deles é diversão, mas a interação das pessoas nem sempre está no mesmo clima. Receberem pedidos de orientação, agradecimentos pelas dicas e motivação a continuar a tentar a vida no Brasil, fazem parte do que ouvem. “Isso nos fez mais sensíveis a diferentes situações. Encontramos uma senhorinha no consulado do Peru que tinha acabado de chegar e ela estava com o pai dela, velhinho e de cadeira de rodas, e ela começou a nos perguntar em espanhol como era aqui, se valia a pena ficar. Quando ela falou isso, a gente se sentiu tocado. Pra mim, foi ver que é o que a gente já faz no canal de uma forma indireta através dos comentários, mas ao longo do tempo a gente viu que a pode ajudar as pessoas. Esses assuntos são os mais importantes”.

Além desses conteúdos, Fiorella disse que o vídeo mais importante para ela foi quando seu pai contou a história da imigração sob o ponto de vista dele. “Acho que esse foi o vídeo que mais comentários teve, de gente que se identifica muito com a história do meu pai”.

Sempre quando perguntamos sobre temas a serem evitados, a política aparece. Não foi diferente com eles, embora a ênfase tenha se dado mais em relação aos conteúdos demasiadamente pessoais. Ernesto, o mais reflexivo, defendeu que a pessoalização dos membros do canal seja secundária em relação aos conteúdos. Mas mesmo quando não falam, o público levanta temas mais polêmicos, por vezes pedindo posicionamentos que são levados de “forma neutra, apresentando os fatos” tendo em vista a responsabilidade que sentem ter ao falar com tantas pessoas.

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A Lhama Carioca: da esquerda para a direita, Fiorella, Francis, Ofélia e Ernesto / Arquivo Pessoal.

 

A Lhama Carioca também está nas outras redes sociais, como o Facebook e o Instagram. Embora tenham menos seguidores, são nelas que sentem interagir melhor. Já o Youtube é o grande canal da família na produção dos conteúdos prioritários.

De toda forma, os irmãos são humildes quanto a terem fãs, embora sobre carisma a eles. Prestes a chegar a 9 mil seguidores mesmo sem divulgar para as pessoas mais próximas, existe um potencial descoberto pela família Romero. Uma originalidade que a interculturalidade lhes proporcionou. Nos vídeos, sentimo-nos todos em casa, sentados à mesa comendo ceviche ao som de um sambinha.

Entre os agradecimentos finais, os irmãos enfatizaram coragem, curiosidade e paciência para os imigrantes que fazem a vida no Brasil. “No fim sempre vale a pena, não pode desistir no meio do caminho, não. Passamos muitas dificuldades no início, mas graças a Deus estamos conseguindo seguir em frente”, concluiu Fiorella Romero, da sala de sua casa em Macaé, onde também começa uma nova vida.

 

Quer assistir a conversa toda? Acesse aqui.

 

Otávio Ávila
Pesquisador de doutorado do Diaspotics/UFRJ e editor do estrangeiro.org