Num conto de fadas a Rapunzel joga suas tranças/Na minha história, ela tem dread e é africana (…)Era uma vez uma princesa Rastafari que nasceu no reino de Sabá/ O seu cabelo dread tinha força e poder/Sua beleza africana não tinha o que dizer/Essa história eu inventei porque não vi princesa assim/Só me mostraram uma, aí isso não dá pra mim. (MC SOFFIA, 2016)

A música Minha Rapunzel de Dread (2016), cantada por Mc Soffia, faz menção a uma personagem criada pela autora, devido à ausência de referenciais literários que  lhe remetessem sua origem africana. Trata-se de uma personagem que desconstrói os estereótipos de uma princesa como, convencionalmente, são apresentados nos filmes e séries de grande circulação: negra com cabelo rastafári e sem um príncipe. Na letra, cita termos como “empoderamento”, “força”, “beleza” atribuindo-os à princesa de sua criação, expressando a forma como enxerga as mulheres negras africanas que subsidiam sua matriz cultural.

Com o objetivo de elucidar as marcas identitárias da população afro-brasileira, suas histórias e culturas, Mc Soffia elucida em suas letras o empoderamento das meninas negras, reafirmando a presença de outras referências distintas das oferecidas pela cultura ocidental, tal como observado no trecho da letra Menina pretinha: “Vou me divertir enquanto sou pequena/ Barbie é legal, mas eu prefiro a Makena africana/ Como história de griô, sou negra e tenho orgulho da minha cor” (MC SOFFIA, 2016).

O ato de trançar cabelos não é uma atividade atual. Estudos revelam que as tranças sempre tiveram representatividade forte, abrangendo várias áreas sociais: religião, parentesco, idade, etnia, tribos, estado civil, até posição social. Apesar do processo diaspórico colonial e contemporâneo imposto às populações africanas, a presença ancestral ainda hoje é muito experienciada entre os negros.

Expressões dessas culturas são elucidadas por meio de uma comunidade de mulheres africanas refugiadas no município de Duque de Caxias, região metropolitana e periférica do estado do Rio de Janeiro-Brasil. Desde a década de 1990 este território recebe a presença de africanos, onde uma rede de apoio aos que chegam vai se constituindo, formando hoje uma comunidade de aproximadamente 63 famílias angolanas e congoleses.

Na vinda ao Brasil, a maior preocupação dos refugiados concentra-se no sustento próprio e de seus familiares. Marcas do preconceito, racismo e xenofobia comprometem as relações e, inevitavelmente, a inserção de refugiados no mercado de trabalho. Em suas narrativas, as mulheres descrevem a diferença dos modos de vida da África. Os papéis sociais eram voltados para a maternidade e cuidados com a casa. O sustento doméstico vinha do ofício dos maridos, mantenedores do lar. 

As dificuldades de uma vida de refúgio no Brasil as obrigam a ajudar nas despesas. Assim, elas enxergam na prática de trancista uma possibilidade de aquisição de renda. Para além do aspecto cultural o trabalho com os cabelos representam a luta pela sobrevivência, uma vez que a prática do trançar constitui sua fonte de renda, dado o contexto socioeconômico que encontram no país de acolhimento.

Neste contexto, vemos a presença da cultura africana se propagar através das tranças. 

 Tranças africanas-Parte 1. Acervo pessoal

Para estas mulheres, as tranças significam afirmação, expressão viva da cultura africana: “É lindo saber que a nossa cultura está indo para o mundo todo, saber que a nossa cultura ultrapassou oceanos. É bom saber que a gente está levando isso para o mundo”. (Entrevistada A). Os cabelos das mulheres e meninas negras e refugiadas oriundas de Angola e República Democrática do Congo configuram-se como importantes marcadores identitários. Seus cabelos trançados refletem as culturas dessas crianças, suas origens, tradições, marcadas pelas cores e variações no penteado, cada qual com seu significado.

Tranças africanas-Parte 2. Acervo pessoal

Quando as mulheres desenvolvem a prática de trançar os cabelos como uma modalidade de trabalho no Brasil, para elas não significa apenas uma forma de aquisição de recursos financeiros para os custos da família. Elas têm consciência de que se trata da travessia de suas culturas e que trazem na mala processos históricos de aprendizagem, afetos e costumes compartilhados mundo afora. Assim, as tranças vêm ganhando outro tônus a partir da reafirmação das mulheres negras, com forte contribuição das mulheres vindas da África, via migração contemporânea. 

A chegada da primeira geração de migrantes e refugiadas africanas à cidade de Duque de Caxias, no final do século XX entrelaça-se à criação de salões de beleza voltados para o tratamento de cabelos de mulheres afro, verdadeira manifestação das suas culturas. Essas mulheres, pioneiras nesse trabalho no Brasil, são também responsáveis pelo forte movimento que, hoje, alcança as meninas brasileiras negras que passaram a assumir seus cabelos em sua forma original, com cachos ou crespos ou, ainda, com tranças.

Esses empreendimentos subsidiam a permanência de muitas outras mulheres migrantes e refugiadas, incluindo aquelas que chegaram recentemente. O trabalho com tranças se estende ainda à casa das mulheres recém-chegadas à cidade, sendo, por vezes, a principal fonte de renda da família. O exercício da profissão de trancista em suas casas permite que elas, além de adquirirem uma renda, possam cuidar dos seus filhos e demais atividades domésticas. Considerando ainda a ausência de emprego formal em meio aos migrantes e refugiados, a profissão de cabeleireiro configura-se como uma importante alternativa.

Por outro lado, apesar da notoriedade atribuída às tranças, as mulheres migrantes e refugiadas, protagonistas dessa prática, não são valorizadas pela comunidade local visto que a mão de obra é “descartada” após captação de suas técnicas. Tais mulheres relatam que os brasileiros, por desconhecerem suas técnicas, as contratam e tentam observá-las em seu cotidiano. Tão logo aprendem a trançar, as dispensam. 

Os cabelos marcam as meninas de origem africana pela beleza e diversidade dos penteados. Apesar da forte contribuição cultural advinda do processo migratório, em decorrência de suas marcas identitárias, essas mulheres são alvo de xenofobia e racismo. Não por acaso, as meninas, mais que os meninos, sofrem com tais agressões, em razão dos seus cabelos evidenciarem sua origem, por vezes, distinguindo-as das meninas negras brasileiras. As crianças e seus familiares vão fazendo menção ao racismo sofrido em decorrência dos cabelos, implicando ainda em reflexões outras que se correlacionam ao sexismo. Parafraseando Angela Davis (1981), “ser mulher num país machista já é desvantagem, imagina mulher, negra e refugiada.”

Viviane Penso Magalhães e Caroline Delfino dos Santos

Orientadoras Pedagógica e Educacional na Rede Pública de Ensino de Duque de Caxias/RJ.

Doutorandas no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e Universidade do Grande Rio, respectivamente.

Referências

GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 21, p.40-51, set/out/nov./dez. 2002. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbedu/a/D7N3t6rSxDjmrxrHf5nTC7r/?lang=pt&format=pdf Acesso em 14/abr./2021.