O curso “Ensinando Línguas Adicionais: teoria e prática” para migrantes e refugiados foi organizado pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) durante o ano de 2017. O aprendizado dos alunos é aplicado até hoje. A pandemia do COVID-19 fez com que seus ensinamentos fossem utilizados para a possibilidade de trabalho alternativo. Os ex-alunos fazem parte do grupo de migrantes e refugiados residentes em Curitiba, no Paraná.
Era o ano de 2017, havia chegado a Curitiba há somente seis meses e a ansiedade de estar em um novo país ainda sem entender a situação de migração, exílio e refúgio estava à flor da pele. De um dia para o outro morando em outro local, com outro idioma e sem trabalho. A situação dos estrangeiros nunca deixa de ser incômoda, mas foi levada estoicamente. Alguns estavam em melhor condição aqui do que em seu país de origem, outros ainda não entendiam onde estavam. A maioria de nós, sem trabalho ou com empregos precários e, no melhor dos casos, procurando uma segunda renda para ajudar em casa. Migrantes e refugiados chegaram à Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) atraídos por um curso que lhes permitisse uma possível oportunidade de trabalho. Foi realizada uma pré-matrícula digital e, em seguida, a universidade fez uma seleção dos candidatos por ter uma cota máxima de 25 alunos.

Foi o curso “Ensinando Línguas Adicionais: teoria e pratica”, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Português para Falantes de Outras Línguas (PFOL) e pelo Departamento Acadêmico de Línguas Estrangeiras Modernas (DALEM) da UTFPR no âmbito da Diretoria de Extensão da Pró-reitoria de Relações Empresariais e Comunitárias da universidade. Seus alunos estavam lá, inclusive eu. Éramos uma comunidade de estudantes provenientes dos seguintes países: Alemanha, Angola, Argentina, Benin, Colômbia, República Democrática do Congo, El Salvador, Estados Unidos da América, Gana, Haiti, Holanda, Paraguai, Síria e Venezuela. Fiquei surpreso que em nosso grupo havia um alemão, duas norte-americanas e uma holandesa. Eu não entendia que pessoas do chamado “primeiro mundo” compartilhavam necessidades como “nós do terceiro mundo”. Claro, um pequeno detalhe: esqueci que eram seres humanos iguais a mim e com necessidades de formação e inserção no país de acolhimento.
É que a experiência da migração pode ser dolorosa, mas é capaz de remover qualquer preconceito ou estupidez que se tenha. Muitos tinham estudos universitários sem revalidação ou trabalhavam em áreas que não eram sua formação e, assim, sobreviviam como podiam. Ao migrar, você traz um capital que até então não valoriza: a língua materna. Então, diante da necessidade, o idioma materno , através das aulas, se torna uma importante fonte de sustento. Muitos de nós se dedicavam a isso de uma maneira particular ou pelo menos o fazíamos esporadicamente. Tivemos a oportunidade de uma universidade nos formar pedagogicamente para melhorar nossas classes.
Lembro que um grupo de professores de outro espaço acadêmico nos procurou e disse: “agora a universidade quer dar o título de professor express aos migrantes” e “deslealdade aos que realmente foram formados como professores”. Eu entendi a preocupação, mas era infundada. A universidade não nos daria o título de professor, só nos ofereceria ferramentas pedagógicas para podermos exercer a tarefa de dar aulas particulares. Não se tratava de concorrência desleal, era só uma oportunidade de sobrevivência. Não fomos nós que escolhemos livremente, foi a necessidade que nos fez ver na diferença de idioma uma oportunidade de ensinar. Muitos refugiados chegam com apenas uma mochila. Nossa língua estava em nossa mochila cultural.
Discutimos o assunto entre um grupo de alunos. Uma colega venezuelana disse: “Eu não tiro o emprego de ninguém, não vou ensinar nas escolas porque você precisa ser professor e nem mesmo em institutos de idiomas, vou dar aulas particulares para pessoas que querem a experiência de diálogo com um nativo. Por isso nem questiono isso”. Ela nos tirou aquele sentimento de culpa que sempre persegue os migrantes por terem sua existência enfraquecida. Nunca soubemos se esse problema havia chegado às professoras que generosamente nos ensinaram. Mas nos pareceu uma situação injusta com aqueles que tentavam nos ajudar, auxiliar pessoas que não tinham como se sustentar financeiramente ou que procuravam uma segunda via e eram julgadas por uma pretensa concorrência desleal. Não queríamos trazer um problema extra. Elas já tinham um problema didático conosco: imaginem, dar aulas para um grupo tão heterogêneo, com culturas distintas, diferentes níveis de formação, com diversos níveis de português e com distintas línguas maternas! As docentes tinham um compromisso social além da sala de aula e havia também uma identificação com os migrantes: uma professora era francesa e outra tinha pais palestinos.
O curso foi coordenado pela Profa. Samira Abdel Jalil, que teve a ideia de realizá-lo e cujo trabalho de pesquisa também se refere aos migrantes de língua árabe. Os demais docentes foram a Profa. Fernanda Deah Chichorro Baldin, na época coordenadora do DALEM; Profa. Jeniffer Imaregna Alcântara de Albuquerque, líder do PFOL; a Profa. Eglantine Guely Costa, pesquisadora da área, e alguma outra professora cujo nome não me lembro agora; mas todas comprometidas com a causa dos migrantes e refugiados.
Para nós, não era apenas adquirir o conhecimento de um curso, era também pertencimento. Sentir-nos valorizados, que tínhamos algo para dar, que parte da nossa cultura servia. Através do curso de extensão passamos a fazer parte da universidade, da UTFPR que nos recebeu em suas salas de aula na Avenida Silva Jardim 807, no centro de Curitiba, nas terças-feiras de 19 de setembro a 5 de dezembro de 2017. Éramos uma comunidade multicolorida, multicultural, multilinguística, muitos laços se consolidaram na amizade, no diálogo e na solidariedade como coletivo.
O curso abordou em suas dez aulas planejadas os seguintes tópicos: estratégias de aprendizagem, elementos de ensino, reflexão sobre a sala de aula, metodologia para o ensino de idiomas adicionais, ensino de habilidades orais, ensino de habilidades escritas, ensino de vocabulário, avaliação da aprendizagem, ensino de gramática – tudo isso na sala de aula de línguas adicionais. Em seguida, análise e elaboração de material didático e, por fim, o aprendizado foi encerrado com o planejamento e execução de miniaulas. Essas miniaulas foram uma experiência rica na diversidade de formações, línguas nativas e sotaques, com avaliações de nossos pares. Um encontro freiriano de sujeitos onde docentes e discentes aprendem uns com os outros. Até agora, uma marca importante foi que os professores não tiveram um tratamento estigmatizante em relação aos migrantes e refugiados, nem uma relação de cima para baixo entre quem ajuda e quem é ajudado: muito pelo contrário, um encontro de múltiplas aprendizagens interculturais.

Depois desse curso, nos sentimos parte da comunidade universitária. Não éramos alunos de cursos regulares, éramos apenas alunos de um curso de extensão, mas a partir de então nossa presença se multiplicou em eventos organizados pela universidade. A pandemia do COVID-19 fez com que nossa participação na UTFPR diminuísse em 2020. Demorou um pouco para conseguirmos reagir à pandemia. A Universidade estabeleceu jornadas e palestras virtuais. Os encontros de alguns de nós como amigos ou colegas diminuíram drasticamente.
Como muitos brasileiros, nosso grupo de migrantes e refugiados foi afetado. As ocupações profissionais foram interrompidas ou complicadas na sua realização, e os trabalhos temporários, chamados “bicos”, desapareceram. É aí que alguns de nós nos apegamos mais fortemente ao que aprendemos no curso “Ensinando Línguas Adicionais: teoria e prática”, aprofundando nossas aulas virtuais e oferecendo este serviço. Em alguns casos não prosperou ou não foi necessário, mas sabíamos que as ferramentas para sobreviver estavam lá. Foram muitas as pessoas que decidiram estudar um idioma que sempre adiaram, outras porque passavam mais tempo em casa, precisavam se distrair ou necessitavam ocupar seu tempo e controlar seus nervos produzidos pelo isolamento social causado pela pandemia. Os migrantes, exilados e refugiados aprendemos forçosamente a nos reinventar todos os dias e fazer de tudo para sobreviver em nossa crise pessoal. A crise pandêmica não seria exceção, talvez estivéssemos mais preparados que os nacionais para podermos lidar com a nova realidade sanitária, pois de alguma forma já vivíamos o isolamento obrigado nas nossas histórias de vida. Isso pode gerar reflexões mais aprofundadas, mas o que as professoras podem ter certeza é que este curso, cinco anos após sua realização, continua a dar frutos, principalmente no contexto da pandemia.
