Durante anos de pesquisa e observações de como o campo da comunicação compõe os estudos migratórios, notamos que a intrínseca relação dos atuais deslocamentos humanos com o uso de tecnologias midiáticas foi ganhando novos contornos que valeriam a pena receber enfoque em um estudo mais aprofundado. Este foi o desafio que propus no doutorado, cuja tese foi defendida em abril com o título “Autoapresentação, performatividade e testemunho na internet: a webdiáspora deslocada para a visibilidade do self migrante“, apresentado na Escola de Comunicação da UFRJ e sob orientação do coordenador do oestrangeiro.org, Mohammed ElHajji.

A presença midiática manifesta pelos usos de sites de redes sociais na formação de comunidades diaspóricas e na distribuição de informações, os aplicativos de mensagens e a manutenção de redes afetivas, e as câmeras de smartphones que registram a empreitada migratória são algumas facetas do instrumental midiático consolidadas nos estudos da área. Percebi, então, que a presença de personalidades individualizadas voltadas para a produção de conteúdos públicos e aparentemente menos coletivas surgia como um crescente dispositivo de informação baseado na intensa cobertura do cotidiano e na abertura da intimidade de determinado migrante como experiência, conhecimento, recomendação ou inspiração aos membros das sociedades de origem ou de destino desses indivíduos.

A característica individualizada, ou seja, voltada ao self (o Eu, o si mesmo), aproxima-se da prática de indivíduos que passaram a ser conhecidos como influenciadores digitais, hoje uma atividade profissional que mobiliza um mercado que até o fim do ano poderá movimentar 10 bilhões de dólares no mundo. A presença de influenciadores, youtubers, instagramers ou streamers remodelando o ambiente online aciona, por sua vez, novas linguagens caracterizadas pela exigência de transparência e assiduidade que demarcam um controle das audiências sobre a vida de outra pessoa como produto de consumo e, consequentemente, asseguram a produtividade das plataformas digitais como novas mediadoras e condensadoras da vida na internet.

Esse é o cenário da midiatização profunda, que pode ser traduzida como a interdependência cada vez maior entre as mídias e a sociedade, intensificada pela presença das plataformas digitais e o controle de informações mediante a produção intensiva de dados. Portanto, ao conceber que boa parte das relações sociais se dá nas plataformas digitais – não totalmente, nem reduzindo o objeto comunicativo a isso –, observei também que migrantes em posição de influenciadores (ou candidatos ao posto) que residiam no Brasil dialogavam com um variado e numeroso público levantando questões fundamentais sobre seu processo de migração. Por outro lado, esse vasto ecossistema midiático, que abrange diversas nacionalidades, gêneros, faixas etárias e níveis de engajamento na internet, também é responsável por outro tipo de conteúdo alinhado a curiosidades do olhar estrangeiro sobre o Brasil e as reações (reactions) decorrentes dessas trocas culturais.

Migrantes em vídeos do tipo reaction. Fontes: Reprodução: Youtube/A Coreana Soyeon 한국여자 (08/12/19),            Reprodução: Youtube/Zule VenBra (23/03/21),
           Reprodução: Youtube/Tim Explica (18/02/20),
           Reprodução: Youtube/Olga do Brasil (29/07/20)

Assim, foi possível observar uma dualidade não excludente e que realizava tais produções: de um lado, um serviço informativo característico da webdiáspora (necessariamente comunitária); de outro, a presença individualizada sobre suas vidas particulares e personalidades produzidas para o consumo. Partindo de canais de migrantes no Youtube, mas abrangendo suas demais plataformas (Facebook, Instagram e Telegram, especialmente), um dos objetivos da pesquisa foi mapear, classificar e estabelecer “padrões” (longe dos métodos e métricas causais que isso pode sugerir) desse amplo ecossistema midiático baseado no self migrante

Ademais, por meio de uma abordagem indutiva (ou seja, do particular para o geral), o trabalho produziu um aprofundamento de inspiração etnográfica sobre o ecossistema midiático de uma única migrante venezuelana, com a finalidade de ampliar, por meio da comparação (aproximação e diferenciação), o fenômeno observado para a ambiência geral de análise dentro dos limites das identificações interseccionais dos respectivos processos migratórios.

A escolha pela venezuelana Vicky Márquez, que já foi entrevistada aqui, se deu por duas razões em especial. Primeiro, pelo foco minoritário atribuído a migrantes de determinadas origens geográficas e condições sociais. Vicky chegou ao Brasil como turista e, depois, estabelecida em Boa Vista, pediu seu refúgio. Trazendo seu filho, a venezuelana é uma legítima representante da classe trabalhadora e tem transformado por mais de cinco anos seu percurso migratório em produção midiática. Isso nos leva à segunda razão de escolhê-la, pois Vicky hibridiza o serviço informativo aos migrantes com a cobertura de sua vida por meio de suas plataformas digitais, como um diário (vlog) de campo da sua migração. Ou seja, ao mesmo tempo em que ela presta um serviço, não deixa de colocar sua vida cotidiana em evidência e recebe por isso reconhecimento das comunidades de origem e de recepção.

Vicky Márquez em entrevista para oestrangeiro.org (junho/20)

Tendo a migrante Vicky como um “perfil notável” que conduz a pesquisa e as análises por todo o ecossistema midiático migrante e seus diversos atores, quem ler a tese encontrará uma estrutura baseada em três eixos teórico-analíticos. O primeiro mescla a infraestrutura midiática e suas implicações no relacionamento com seguidores e produção de conteúdo (questões relativas à transparência e à autenticidade). O segundo eixo aproxima a migração da sua condição intercultural e as relações assimétricas de poder engendradas por ela, especialmente dando foco à relação Brasil-Venezuela. Aqui, abri espaço para aportes teórico-analíticos sobre negação e negociação de diferenças no ambiente online e o debate sobre a “polidez do hóspede”, levada ao capítulo seguinte como um ethos migrante. Já este terceiro eixo tem um caráter discursivo, não necessariamente por uma análise dos conteúdos narrados, mas sobretudo pelos aspectos do não dito sobre a política brasileira ao mesmo tempo em que alguns ecossistemas (especialmente os canais do Youtube) foram cooptados e transformados em câmaras de eco de discursos reacionários, especialmente em períodos eleitorais. 

Participações em vídeos entre canais de migrantes no Youtube.

Esses eixos foram previamente organizados como parte estrutural da tese, mas a pesquisa de inspiração etnográfica realizada no ecossistema da venezuelana, com o acompanhamento sistemático de suas plataformas, trouxe tipologias discursivas que servem como contribuição da tese para o campo da comunicação-migração voltada para a organização produtiva desses influenciadores, que pela característica migrante e minoritária, foram denominados influenciadores diaspóricos. Essas tipologias foram divididas em cinco e estão dispostas ao longo dos eixos mencionados: etnografia reversa; hibridização midiática; poder de compra; reactions; e universo do trabalho.

Elas podem ser mais bem exploradas na leitura da tese, assim como as demais construções teóricas desenvolvidas ao longo dos quatro anos de pesquisa. Para os interessados, a tese será publicada em breve no site do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ.

Obs: Além do necessário agradecimento ao prof. Mohammed ElHajji e ao grupo Diaspotics, que constroem cotidianamente este projeto de informação e formação sobre as migrações no Brasil, também agradeço de modo especial os professores que compuseram a banca e são referências na área: Bruno Campanella, Camila Escudero, Denise Cogo e Muniz Sodré.