A 2a edição da Conferência Nacional de Migrações (II COMIGRAR) foi marcada por diversidades vibrantes e comemorações intensas, mas, também, por hinos de protesto e muita discordância interna. O clima institucional, acético e burocrático foi posto em cheque logo na abertura do evento, quando pessoas delegadas e ativistas tomaram o palco. De mãos dadas, amordaçados e carregando cartazes de protesto e bandeiras de movimentos sociais e dos seus países e povos de origem, os manifestantes deixaram claro para os representantes do governo que aquele movimento era das pessoas migrantes.

A tensão perdurou pelo fim de semana inteiro, enquanto os Grupos de Trabalho (GTs), para trabalhar as propostas divididas nos seis eixos temáticos, fruto da fase preparatória, se empenharam na árdua tarefa de revisar as proposições. Medidas repetitivas foram aglutinadas e as pouco específicas receberam incrementos. A linguagem do documento precisava ser nítida e precisa, ao mesmo tempo que acolhedora e abrangente. Originalmente, o Ministério da Justiça articulou no regimento que a COMIGRAR só aprovaria trinta propostas. Por meio da resistência e da luta, as delegadas e delegados conseguiram aumentar esse número para sessenta, de modo que  ficaram sendo dez propostas para cada um dos seis eixos temáticos.

Como todo processo democrático, houve muito barulho, com diferentes grupos batalhando democraticamente por representação. Em meio aos cantos e maracas do povo Warao da Venezuela; à fala combativa e pluri-idiomática da atriz Gambiana-Brasileira Mariama Bah; às discordâncias acirradas entre diferentes lideranças e à performance musical do grupo brasileiro-cubano Sabor de Cuba, a imagem de um Brasil contraditório tomou forma. Por um lado, uma democracia instável de menos de quarenta anos, produzida pelo genocídio e pela escravidão, que neste mesmo ano ceifou a vida do imigrante ganês Evans Osei Wusu e que a cada relatório anual do OBMigra se revela cada vez mais como uma rota migratória ao invés de um destino final. Por outro, uma pátria construída pela imigração, que, com todas as suas burocracias e empecilhos, acolheu essas pessoas quando suas nações de origem não puderam mais garantir suas seguranças.

Ao ver venezuelanos, afegãos, angolanos, sírios, congoleses, e haitianos ostentando com orgulho as bandeiras dos seus países e gritando “Viva Comigrar! Viva Brasil!” no encerramento do evento, não me resta dúvida qual Brasil eles escolheram. Quanto a nós brasileiros, que, ao contrário de muitos ali presentes, temos direito ao voto e algum domínio sobre os rumos desse país, infelizmente, não tenho a mesma segurança. Ao longo dos últimos anos, pautas xenofóbicas da extrema-direita internacional, associando imigrantes à criminalidade e ao roubo de empregos, vêm sendo importadas para o Brasil principalmente através da Internet. Essa ideologia vem convencendo milhões de brasileiros de que o pouco de privilégio que eles têm em relação à populações de outros países do Sul Global de alguma forma os destaca aos olhos da supremacia branca do Norte. Qualquer brasileiro que tenha preenchido um formulário nos EUA ou na Grã-Bretanha e se viu obrigado marcar um “X” na caixinha ao lado da palavra “Latino” ao invés de “White” sabe que este não é o caso.

Resta saber qual Brasil o Brasil escolherá.

Imagens: Catalina Revollo Pardo

Leia as sessenta propostas no seguinte documento: