Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Oswald de Andrade.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=W5LAEYGuERo&t=4s&pp=ygUfb3VyIGxhdGluIHRoaW5nIGZhbmlhIGFsbCBzdGFycw%3D%3D

To be or not to be latino? Essa não é a questão. 

Era uma dessas incontáveis — e detestáveis — reuniões pelo Zoom, na época da Pandemia, e a professora, realmente compungida, lamentava o uso das palavras “latino” e “latinoamericano” que, segundo ela, tinham sua origem na ocupação do México pela França e num projeto imperialista de reclamar a América meridional para o imperialismo francês.

Então eu fiz uma coisa idiota que frequentemente tendo a  fazer, embora não adiante: expliquei. 

Que, fora do México, na América Latina, a maioria nem conhece a relação entre o termo latinoamérica com essa invasão francesa (cujas consequências mais perduráveis são a festa do 5 de maio, a palavra mariachi e a nobre instituição da lucha libre).

Que latino é um termo totalmente pragmático para diferenciar a parte das Américas onde se falam línguas românicas, daquela onde se falam línguas germânicas…

Que ao longo do século XX o termo foi reapropriado muitas vezes e quase sempre com conotações anti-imperialistas: fosse no caso de Rubén Dario, Vargas Vila e outros escritores modernistas que opuseram a América Latina contra a barbárie anglo-saxã (embora essa rejeição abrangia também a cultura pragmática e democrática dos norte-americanos), ou no caso dos porto-riquenhos e chicanos que, nos Estados Unidos, levantaram a bandeira do latino diante da maioria anglo-americana.

Ela nem ligou para minha explicação. “O que pode saber esse latino de sotaque estranho sobre o que ser latino significa?” Sendo eu talvez antielitista demais, no momento achei que sua indiferença expressava o privilégio de elites que, cômodas na sua bolha, há muito tempo perdeu a vontade de dialogar com qualquer pessoa… mas com o tempo mudei um pouco de ideia – não sobre o orgulho das elites, mas sobre a profundidade de nosso desentendimento em relação a essa palavra. 

E mudei de ideia porque entendi que o Brasil não é parte da América Latina ou, na realidade, que ele mesmo é uma américa latina paralela, lusa, diferentemente da nossa, castelhana. É Como se fossem duas enormes serpentes: a castelhana se espalha do norte ao sul e a lusa fica “enrolada” sobre si mesma, indiferente, quase auto suficiente, como todos os seus grandes estados continentais. 

Sonham os brasileiros com ovelhas latinas? 

Fonte: https://caetanoendetalle.blogspot.com/2012/11/1986-chico-caetano-programa-n-4-de-9.html

A triste verdade é que o desentendimento entre nós começa com uma história de amor não correspondido: enqanto que nós latinoamericanos sempre achamos que os brasileiros são parte da América Latina, para os brasileiros paresce que latino é um simples exônimo para uma subespécie particular de gringo bem menos valorizada que europeus e norteamericanos: gringus latinus semelhante ao canis latrans carameliensis.

Assim, embora em  Canción con Todos Mercedes Sosa canta un verde Brasil, besa mi Chile cobre y mineral parece que os brasileiros sentem-se latinoamericanos só em circunstâncias e contextos muito particulares. E, embora a perturbadora fascinação dos brasileiros pelo Chaves, um dos piores produtos da grande cultura pop mexicana, parece que nosso interesse e curiosidade pelo Brasil tende a ser maior que o interesse da América Lusitana por sua prima castelhana. 

O fato é que uma das maiores obras da literatura Latino-Americana La Guerra del Fin del Mundo é um romance sobre a Guerra de Canudos, Chico Buarque e Caetano Veloso são bem conhecidos na América Latina e as telenovelas do Brasil chegaram a ter um grande sucesso, Sônia Braga e Roberto Carlos foram extremamente famosos na América Latina. Eu ainda lembro de uma professora da faculdade literalmente extática com o capítulo final de Renascer. Nos 90s, os blocos de samba viraram populares entre os playboys do Leste de Caracas. Pior ainda: nós ingenuamente acreditamos que os triunfos do Brasil sobre equipes europeias no futebol são — mesmo como os da Argentina — vitórias latino-americanas (Cá entre nós, não tem nada pior que aquele latino otário que apoia um time europeu na final da copa do Mundo).

Eu não sei se há muitos sinais de uma curiosidade e um interesse equivalente no Brasil. Porém, existem algumas exceções notáveis que tem quebrado, pontualmente, a indiferença: Roberto Carlos que deve seu sucesso ao esforço de criar uma versão em espanhol de suas músicas — ajudado por uma pronúncia perfeita — e Caetano Veloso que, junto à sua irmã, Maria Bethânia, criou um eixo entre as músicas da América castelhana e da América Lusa.

Para começar, Veloso fez belas versões de Tonada de Luna Llena, do venezuelano Simón Diaz, Un vestido y un amor, do argentino Fito Paez, e de Cucurrucucú Paloma o clássico da música popular mexicana. Mas também, e junto à Maria Bethânia, estabeleceu uma espécie de colaboração com Willie Colón, um lendário músico porto-riquenho  que, lá nos 80s, vinha fazendo músicas extraordinárias com Hector Lavoe e Rubén Blades, duas lendas da Salsa.

Com o Blades, Colón fez o álbum Siembra, um dos mais importantes da história da América Latina e um dos grandes momentos da invenção e reinvenção contínua do latino, de fato, um álbum cuja elaboração fala das diferenças entre o Caribe e o Brasil: gravado e produzido em Nova Iorque, primeiro teve sucesso em Venezuela — em parte devido a sua homenagem à deusa Cabocla Maria Lionza — e dali se espalhou pela Colômbia e países andinos antes de encontrar um incrível sucesso também nos Estados Unidos. 

Mesmo Blades e Colón tinham um grande interesse pela Música Popular Brasileira. Blades com o monumental álbum Maestra Vida seguiu as trilhas da Òpera do Malandro Chico Buarque. Colón, por outro lado, na tentativa de deixar uma marca própria, diferente daquela dos titãs com os quais tinha trabalhado toda a década de 70, iniciou um trabalho próprio nos anos oitenta começando com o  Álbum Fantasmas, que incluiu uma versão da Flor da Terra de Buarque chamada Oh que Será e outra de Disritmia, de Martinho da Vila, chamada Mi Sueño, ambas pela recomendação de Maria Bethânia. 

Oh que Será, começa com frases de Clarice Lispector: “o creo en muchas cosas que no he visto”, que, no Caribe, todo mundo sabe de memória e recita de olhos fechados, embora nem saibam quem é o Buarque ou a Lispector. De fato, numa estranha colaboração entre o Caribe e o Brasil, Colón apareceu junto a Veloso no programa do último nos anos 80s. 

Mas essas são exceções à regra, quase expressões de resistência contra regra. 

O Rio das Américas.

Fonte: https://elvecinoderosario.com.ar/nicolas-guillen-o-el-motivo-del-son-por-mariana-miranda/

Um dia, após tratar de explicar infrutuosamente que nem no Caribe nem na América Latina a aversão à mestiçagem tem a mesma força que no Brasil — ou entre as elites intelectuais brasileiras — recebi como resposta um link a uma matéria que falava sobre expressões racistas no futebol Venezuelano: é que, para meu interlocutor, para quem todo o planeta é como Brasil, a detalhada explicação de como a funciona o racismo na Venezuela e como o pensamento negro do Caribe rejeita a noçao de negritude simplesmente significava que eu era um conservador que defendia a “Democracia Racial” embora, de fato, eu só estivesse comentando as teses de inteletuais negros do Caribe como Depestré e Glissant.

É que, para o provincianismo brasileiro, o mítico gringo consegue o milagre de ser  alheio e alienígena mas também, completamente reduzível às categorias brasileiras. Isto é a façanha de ser muito estranho, mas não realmente diferente. 

Embora me senti idiota por tentar um diálogo onde não há dialogo possivel percebi que essas tentativas falhas servem, pelo menos, para encontrar aquelos com os quais é possivel falar — embora sejam uma minoria, só uma fila num imeso estádio. Porém, existem formas de troca bem mais férteis e efetivas que o simples diálogo (ou talvez formas superiores de diálogo?). No  micro documentário O Rio das Americas vários músicos argentinos, uruguaios, venezuelanos e cubanos expressam seu espanto pelo fato de que os brasileiros não se achem latinos e que “latino” seja uma caixinha para coisas alheias e exóticas, porém, mais do que explicações e discussões, eles embarcam numa experimentação com a música, especialmente com os instrumentos e ritmos da percussão, descobrindo não só analogias e semelhanças, mas uma comunidade que vai além das fronteiras e identidades.

Dado que a percussão da África Ocidental  penetrou em todo o continente e que as línguas são da Península Ibérica, não é surpresa que existam tantas coisas em comum, mesmo nos gestos e nas palavras. Porém, a exploração prática e a invenção são muito mais potentes e efectivas que a explicação de coisas óbvias, geralmente esquecidas. Então, ao invés de explicar o pensamento antilhano da transculturação e da créolité, é melhor praticar essa transculturação e essa “crioulidade” para que elas expliquem por elas próprias como faz, por exemplo, Songoro Cosongo  há mais de vinte anos.

De fato o “latino”, que não é uma identidade, vai se reinventado desse jeito: para o Vargas Vila e Ruben Dario os venezuelanos e puertorriqueños que bebem cerveja gelada, falam com americanismos e jogam baseball tivessem sido monstruosos ou ridículos, da mesma forma que os primeiros rockers latinoamericanos nos anos sessenta eram desprezados pelos músicos tradicionais.  Hoje os melhores jogadores de baseball do mundo são caribenhos e japoneses, há rockers argentinos e mexicanos tão lendários como Mick Jagger e os russos e brasileiros reinventaram o judô completamente, da mesma forma que  os japoneses reinventaram os quadrinhos e a animação: “só me interessa o que não é meu”.

Neste mundo creole e antropofago onde têm rappers aymaras e o anime japonés vira uma paixão planetaria, talvez a obsessão do identitarismo de esquerdas e do populismo de direita, ambos fortemente influenciados pela obsessão estadunidenses com as caixinhas (“branco” e “negro”; “nacional” e “estrangeiro”; “Oriental” e “Ocidental” e, inclusive, “binario” e “não-binario”) aparece como uma forma de ativismo e a única coisa que podemos nos perguntar é: se, além deste periodo de fragmentação e xenofobia haverá oportunidades para que a America castelhana e a Lusitana — mais do que se unificar ou identificar — possam se enrolar como as cobras do Asclépio, como nas músicas de Willie Colon, Caetano Veloso ou do Songorocosongo. Finalmente teremos a noção de que compartilhamos em comum muitos problemas, como a devastação da Amazônia, os avanços do autoritarismo -mesmo de esquerda e de direita- e a nova onda de imperialismo estadunidense, que não nos vão fazer “amiguinhos do peito”  mas, talvez, aliados, parceiros e companheiros de viagem. 

Porém, essas  estratégias dos músicos latinos no Rio são para pessoas que, seja por sorte, capacidade ou simplesmente por conta de sua situação, estejam muito melhor ajustadas do que eu, que sou simplesmente um náufrago tentando construir uma jangada para voltar a um lugar onde possa viver a vida plenamente. Como um náufrago da Malásia ou da Indonésia na imensidão da Austrália, eu tento retornar ao arquipélago. E vai ser lá, talvez, onde tenha a calma para revisar quanto do Brasil peguei e levei nas alforjes.  Somente então, saberei como o Brasil mudou minha “latinidade”. 

Mas, seja como for, acho que já expliquei demais.