Ensaios sobre Boas Práticas da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ACNUR) na Universidade Federal do Paraná
Texto de apresentação:
Alguém já disse que não somos nós que fazemos a história, mas é a história que nos faz. Obviamente isso é verdade. Obviamente isso é mentira. O texto que segue é um dos motivos menores pelos quais este livro foi escrito. A causa principal, maior, de sua escritura aconteceu em 12 de janeiro de 2010, quando cerca de 300 mil pessoas foram mortas por causa do terremoto no Haiti, deixando também centenas de milhares de feridos.
A aproximação recente do Brasil com o Haiti começou em 2004, quando o Brasil liderava a Mission des Nations Unis pour la Stabilisation en Haïti (MINUSTAH) para garantir a paz e a estabilidade, principalmente durante as eleições, que estavam constantemente ameaçadas devido à violência, causa e consequência da instabilidade política.
Três anos depois, como numa espécie de teoria do caos ao contrário, em que não é o voo da borboleta que causa o tufão, haitianos começaram a chegar a Curitiba falando as línguas registradas no texto de abertura: às vezes francês, outras kreyòl, pouco português. Pouca gente estava preparada para compreender esse texto, assim como os haitianos que vieram não estavam preparados para nos compreender.
A história deste livro também começa quando o Centro de Línguas e Interculturalidade da Universidade Federal do Paraná (CELIN–UFPR) foi procurado pela Prefeitura Municipal de Curitiba e por uma organização não governamental, buscando apoio para lidar com um fluxo crescente de haitianos que, fugindo da calamidade causada pelo terremoto de 2010, aportavam ao Brasil, atraídos pela promessa de trabalho e pelo acordo bilateral que outorgava aos haitianos 80 mil vistos humanitários para que pudessem chegar e trabalhar aqui.
Conhecemos a situação em uma reunião na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraná, na qual nos aproximamos do trabalho de uma professora do município, com dezenas de alunos, e ouvimos o testemunho de ONGs, advogados, pesquisadores e agentes públicos que chamavam a sociedade à ação.
Nós somos uma universidade. Não somos Caritas, nem a Pastoral do Migrante (que recepcionavam os migrantes, não importando a religião nem a procedência, provendo pouso e comida como fazia o bom samaritano, além de estarem disponíveis para acompanhá-los à polícia federal, primeiro contato institucional dos migrantes no Brasil). Também não éramos os Médicos Sem Fronteiras (que atendem à saúde). Como universidade pública, nossa “missão”
(como costumam estabelecer as empresas) é oferecer ensino, pesquisa e extensão.
Fomos procurados, pois sabíamos como ensinar Português como Língua Adicional (PLA). Mas o público de migrantes e refugiados era diferente. A maneira como ensinávamos podia ser o ponto de partida, mas não um fim. O valor que podíamos oferecer não é uma verdade absoluta, mas, com pesquisa e reflexão, contando com erros e acertos, podíamos, a partir de uma teoria de aprendizado conhecida, chegar a uma metodologia de pesquisa ou aprimorá-la para as nossas necessidades.
Em 26 de janeiro de 2011, impulsionados pelo que veio a ser chamado de Primavera Árabe, protestos começaram na Síria e evoluíram para uma revolta armada que ainda não terminou. Milhões de refugiados sírios se encontram dispersos em todo o mundo. Em 2014, sírios vieram ao CELIN-UFPR para aprender português. Falavam essa língua que ninguém entre nós sabia interpretar. Os sírios normalmente se estabeleciam com famílias. Não raro as turmas eram formadas pelo pai, mãe, filhos, primos:

Conversamos com o cônsul sírio e com um padre ortodoxo, pois tínhamos no começo uma turma com cerca de vinte alunos. A professora de árabe do CELIN-UFPR nos ajudava a traduzir. Com o passar do tempo, demos aulas na biblioteca, de maneira mais particular, e no período da noite, durante a semana. Durante as férias, o Reitor nos pediu para darmos aulas em São José dos Pinhais, onde a maioria dos sírios morava. E ensinamos durante três semanas em uma escola estadual.
Com o tempo aprendemos que a tradução do poema de Adonis, acima transcrito, significa a experiência de muitos sírios:
Agradeço ao pó que se mistura à fumaça dos incêndios e a abranda,
Agradeço ao intervalo entre bomba e bomba,
Agradeço ao chão que não para de sustentar meus passos,
Agradeço às pedras que ensinam a paciência.
Até 2015 era relativamente fácil para um cidadão sírio entrar no Brasil. O governo não impunha uma taxa de visto onerosa, mas, de toda maneira, era necessário pagar passagens aéreas, normalmente de voos que partiam de Beirute, no Líbano.
Esses dois grupos, migrantes haitianos e refugiados sírios, se mesclaram para desafiar a Universidade Federal do Paraná, ao cruzarem o Mediterrâneo e o Caribe […]
José Antônio Peres Gediel, Bruna Pupatto Ruano, João Arthur Grahl.