As migrações pelo mundo já ultrapassaram, há muito tempo, a marca dos 200 milhões. Mais de que toda a população do Brasil e Portugal juntos, vivendo fora de seu país ou região de origem. Mas se dependesse da vontade de um número ainda maior de pessoas, os migrantes pelo mundo seriam, hoje, quase 900 milhões. Além daqueles já se encontrando em situação de migração, outros 630 milhões desejam seguir o mesmo caminho. 48 milhões deles planejam fazê-lo no próximo ano e, destes, 19 milhões já estariam preparando a viagem, segundo uma pesquisa do instituto de pesquisas Gallup realizada em 150 países. Os números impressionam, mas, na verdade, o fenômeno em si é tão antigo quanto a nossa própria existência como humanos.
Condição fundadora de nossa espécie – a única a ter colonizado todos os cantos do planeta, a migração não pode ser vista como anomalia ou exceção, mas sim enquanto regra absoluta que sustentou o inicial processo de hominização, propiciou as bases materiais de nossa capacidade de abstração e continua reformulando o sentido ontológico de / do ser humano e o significado social e histórico do sujeito. Tanto a paleontologia e a biologia como a arqueologia e a historiografia deixam evidente o papel fundamental das migrações na configuração de que veio a ser a Humanidade, na formação e extinção de agrupamentos civilizacionais e na prosperidade e decadência de impérios, reinos e nações.
No contexto contemporâneo, todavia, o fenômeno tem sofrido profundas transformações, devido a fatores de ordem política, econômica, organizacional, social e psicológica. Dentre os quais a industrialização e urbanização de grandes regiões do mundo e aumento da pobreza em outras, a recrudescência das guerras e lutas armadas, o declínio da natalidade nos países avançados, o surgimento das migrações planejadas (tanto na Europa como nas Américas), a aceleração e barateamento dos meios de transporte, o avanço do processo de globalização, a revolução tecnológica midiática e a tomada de consciência da possibilidade de mudança da trajetória pessoal e a naturalização de novas formas de desejo, subjetivação e realização pessoal.
Porém, a principal novidade, testemunhada nos últimos anos, diz respeito ao redirecionamento dos fluxos migratórios internacionais. Segundo dados fornecidos pela OIM, haveria, atualmente, uma tendência contínua e progressiva de reorientação dos movimentos populacionais do sentido Sul-Norte para o Sul-Sul ou até Norte-Sul. No caso, mais específico de nossa região, os deslocamentos intrarregionais aumentaram substancialmente nos últimos anos e tenderiam a manter esse ritmo de crescimento; beneficiando especialmente Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.
Enquanto os fluxos oriundos dessa região rumo aos Estados Unidos e Europa estariam diminuindo. Dinâmica inédita que se deve tanto ao momento econômico favorável na América do Sul e as facilidades burocráticas introduzidas recentemente como, inversamente, à atual crise da mesma ordem sofrida pelo velho continente e a América do Norte e o aumento de xenofobia e empecilhos administrativos. Há de salientar, inclusivo, a existência de um número significativo de “retornados” que preferem fugir da crise vivida pelos países do Norte e voltar ao seu país ou região de origem.
Assim, pela primeira vez em 20 anos, o número de imigrantes estabelecidos no Brasil superou o de emigrantes brasileiros. Entre aqueles regularizados e os indocumentados, o país contaria, hoje, mais de 2 milhões de estrangeiros (em torno de 1% da população brasileira). A maioria oriunda de Portugal, Bolívia, China, Paraguai, Peru e Coreia do Sul. Número proporcionalmente modesto se comparado aos 4,5% de imigrantes que compõem a população total de Argentina ou, ainda, os planos de Uruguai de atrair, nos próximos anos, 1 milhão e meio de imigrantes para um país que conta apenas 3,6 milhões de habitantes.
Para revelar sua verdadeira significância, a realidade migratória brasileira deve, por outro lado, ser conjugada à nossa baixíssima densidade demográfica (apenas 22,43 hab./km² contra, no outro extremo, 342 hab./km² na Bélgica), a participação dos imigrantes no total populacional de países do novo mundo como os Estados Unidos e Canadá ou a quantidade de imigrantes recebidos a cada ano nesses mesmos países: respectivamente 1 milhão e 250 mil. Pois apesar dos discursos populistas e nacionalistas veiculados pelos movimentos mais reacionários do mundo, o fato é que existe uma disputa acirrada pelos imigrantes.
Alemanha, Austrália e Canadá são alguns dos países que adotaram eficientes (e, muitas vezes, moralmente condenáveis) políticas seletivas de imigração. Os Estados-Unidos, por sua parte, apostam tanto na manutenção de grandes fluxos como na atração e aliciamento de profissionais capacitados e os indivíduos mais criativos de todas as origens. Ao mesmo tempo que os imigrantes constituem a base da pirâmide social do país e ocupam empregos geralmente rejeitados pelos nativos, a sua participação também é notável nos centros de excelência da economia, finanças, pesquisa científica e tecnológica (o Vale do Silício é o melhor exemplo dessa realidade, mas não o único), artes e cultura, grandes multinacionais, etc.. Afinal, eles representam 20% da população geral e são responsáveis por uma boa parte do dinamismo econômico e demográfico dessa nação.
Em alguns casos, se pode falar até em predação das competências e riqueza humana dos países em desenvolvimento. Já que a formação social e profissional (saúde e educação principalmente, mas não apenas) dos futuros imigrantes drena uma parte considerável dos investimentos dos países de origem. E, uma vez socialmente constituído e profissionalmente qualificado, o material humano finalizado a altos custos sociais é graciosamente oferecido às economias avançadas. O que só agrava as desigualdades entre Norte e Sul e aprofunda o círculo vicioso subdesenvolvimento – fuga dos cérebros.
Mas, de modo geral, mesmo quando não se trata de gente altamente qualificada, a imigração continua social, cultural e economicamente benéfica para os países receptores. Além de renovar os contingentes populacionais num mundo sofrendo cada vez mais de envelhecimento e melhorar as contas da seguridade social, os imigrantes são, geralmente, movidos por um desejo de sucesso, um forte espírito empreendedor e disposição a aceitar todo tipo de emprego.
Aliás, a nosso ver, um dos grandes erros teóricos e empíricos dos estudos migratórios é reduzir o fenômeno a seu aspecto sofrido e vitimizado. A emigração, com certeza, não é uma experiência fácil, pacífica ou sem choques e traumas. Mas, tampouco pode desconsiderar alguns de seus aspectos subjetivos positivos e gratificantes; a começar pela força de caráter dos migrantes, seu instinto de sobrevivência, criatividade, senso de iniciativa, etc.. Basta conversar com eles para perceber que, em muitos casos, o imigrante não se considera uma vítima ou alguém injustiçado, mas sim um ganhador, homem ou mulher de sucesso e alguém que conseguiu se realizar na vida. Não se trata de um detalhe narrativo, mas sim de um elemento subjetivo importante a ser levado em conta para melhor entender o valor positivo da imigração para as sociedades receptoras.
Assim, precisamos trazer para o debate (através estas páginas ou espaço virtual), dados que revelam a natureza empreendedora das migrações, no afã de mudar a imagem que se tem do imigrante como peso social e lhe devolver seu potencial de enriquecimento. Tanto na Europa como nos Estados Unidos e, principalmente, no Canadá, e apesar de todo o alarde dos segmentos xenófobos e reacionários, abundam os estudos que apontam a participação concreta (em termos de PIB) dos imigrantes no enriquecimento dessas nações.
Perspectiva inexistente, ao nosso conhecimento, no Brasil; ainda que possamos constatar empiricamente o sucesso do episódio das grandes migrações para o Brasil (XIX – XX) e a rica contribuição dos povos aqui estabelecidos em todos os aspectos da nação – do político ao econômico, passando pelo social, cultural, artístico e científico. Não há dúvida quanto à inédita e vertiginosa ascensão social experimentada pelos descendentes dessas comunidades, que conseguiram passar, em apenas três ou quatro gerações, da condição de imigrantes pobres e indesejados (por não ter filiação colonial latifundiária) a ícones do sucesso social e profissional do país.
Porém, conforme atesta toda a historiografia da época, houve uma verdadeira mobilização social, midiática (a imprensa) e política (o parlamento) contra a entrada da maior parte desses grupos; enquanto outros foram simplesmente barrados por motivos biológicos e raciais. Não se trata aqui, portanto, de apenas um episódio de política local arcaica e alienada, mas sim de um traço do caráter atípico do Brasil enquanto país de imigração. Atípico porque, apesar de sua baixa densidade populacional, rica e positiva experiência de imigração em massa no século passado, continua marcado por uma total ausência de política migratória coerente, certa ideologia xenófoba biologizante e um claro e histórico espírito de “panelinha” protecionista-corporativista que via e continua vendo no imigrante uma ameaça aos privilégios dos “donos” da terra.
De fato, conforme o explica muito bem Jeffrey Lesser, além de toda a ideologia fascista e racialista que orientou as políticas migratórias do Brasil, sempre houve também (e às vezes principalmente) esta vontade monopolista que se reflete igualmente no latifúndio, na expulsão dos mais pobres para a periferia e no fechamento às migrações internacionais. Não se pode esquecer que o próprio gentílico do Brasil se constrói na forma profissional (“brasileiro” como “carpinteiro” ou “marceneiro”) e não de pertencimento (“brasiliano”); reduzindo o laço com a terrae Brasilis a uma relação de exploração e predação.
Bom, é verdade que no curto período de 1875 a 1930, o Brasil recebeu quase 4 milhões e meio de imigrantes de várias partes do mundo. Mas podia ter recebido mais e de modo contínuo se não fosse a oposição ideológica arcaica, reacionária e racista que orientava o debate político e social no parlamento e na imprensa daquela época. Como também podíamos ter “lucrado” centenas de cientistas de soviéticos depois do fim da URSS, se não fosse a inexistência de órgãos da administração pública e leis específicas que tratem da questão migratória.
São dois contextos diferentes: um de intolerância e outro de ineficiência. Mas as duas situações remetem ao mesmo problema de fundo: a necessidade de elaborar políticas de imigração racionais, condizentes com as necessidades sociais e econômicas do país, proativas, livres de preconceitos sociais, culturais ou raciais e voltadas para o futuro. Quando lembramos dos discursos racistas generalizados contra os nipônicos e judeus, por exemplo, naquela época e vimos o sucesso dessas duas comunidades hoje, fica evidente que o senso comum ou majoritário não pode ser usado como critério de políticas públicas, principalmente num setor onde o subjetivo sempre acaba se impondo.
Portanto, uma política migratória eficiente deve ser, por um outro lado, norteada por uma visão de mundo racional e objetiva. E, por outro lado, não se esquecer dos princípios democráticos, igualitários, humanitários, laicos, tolerantes e respeitosos das diferenças que são os ideais que sustentam e guiam a nossa nação. O progresso de um país ou nação não se mede apenas em PIB, mas também (e sobretudo) pela grandeza de seus princípios e nobreza de seus ideais.
Assim, o atual ciclo imigratório (que esperamos ser duradouro) constitui um teste para as pretensões de grandeza e afirmação internacional do Brasil. Ter competência e brilho suficientes para atrair imigrantes qualificados, mas também agir em acordo com os princípios humanistas que ele sempre pregou e sempre cobrou dos países mais avançados para com sua população emigrada. A regra da reciprocidade, antes de significar reações sensacionalistas à truculência pela truculência (o que é, de certo modo, injusto – já que acaba castigando indivíduos que não compartilham necessariamente as atitudes desumanas de seus países de origem), deve se manifestar pela aplicação aos estrangeiros daqui (principalmente os mais vulneráveis) o tratamento que desejamos que seja dispensado a nossos 3 milhões de compatriotas emigrados.
A escolha é nossa: queremos ser grandes, nobres e amados ou pequenos, mesquinhos e temidos?
Moha Hajji