A cidade carioca serviu como porta de entrada para os primeiros imigrantes chineses, que chegaram ao Brasil no século XIX para introduzir a cultura do chá e, com o passar do tempo, passaram a se dedicar ao comércio.
Quando se pensa em imigração de chineses no Brasil, o primeiro lugar que vem à cabeça é a cidade de São Paulo, onde vive a maior colônia chinesa do País. No entanto, foi o Rio de Janeiro, capital brasileira até 1960, que serviu como porta de entrada para esses imigrantes no Brasil. Por ter abrigado a Corte Portuguesa e o início do governo republicano, o território carioca e seu porto foram lugares-chave para os primeiros contatos dos chineses com as terras brasileiras. Comparativamente, apesar de a quantidade desses imigrantes que se estabeleceu no Rio de Janeiro não ter sido tão grande como em São Paulo, suas experiências foram pioneiras, ganhando um sentido referencial para o que seria realizado em outras regiões do Brasil. Além do mais, o Rio de Janeiro foi a primeira cidade brasileira a receber imigrantes chineses no século XIX.
É difícil dimensionar a presença do povo chinês no Brasil devido a problemas de declaração de nacionalidade e imigração irregular. O Consulado Geral da China no Rio de Janeiro calcula que atualmente há 150 mil pessoas no Brasil entre chineses, chineses naturalizados e descendentes – sete mil no Rio de Janeiro, 140 mil no Estado de São Paulo e três mil em Curitiba. Mas outras estimativas chegam a contar uma população em torno de 250 mil, com cerca de dez mil residentes no Rio de Janeiro. Os levantamentos indicam também a capital paulista como o grande centro chinês, com cerca de 90% dessa população. Rio de Janeiro e Curitiba viriam na seqüência do ranking populacional.
No Brasil, assim como no mundo inteiro, a maior parte dos imigrantes chineses tem origem nas três províncias marítimas no sul da China: Guangdong (i.e., Cantão), Fujian e Taiwan. Há muitos séculos, os cantoneses e fujianeses atravessavam os mares para exportar a porcelana, a seda e o chá para a Índia e o mundo árabe (de onde os produtos chineses chegariam à Europa). Ao longo do tempo, assentaram-se no Sudeste da Ásia para fugir das guerras e da falta de alimentos que assolavam o território chinês. Desde o final do século XVIII, os cantoneses e fujianeses já emigravam para a América do Sul (mais especificamente para Cuba e Peru), por meio do tráfico dos coolies (trabalhadores).
OS CULTIVADORES DE CHÁ DO SÉCULO XIX
Os chineses foram os primeiros imigrantes estrangeiros que chegaram ao Brasil no século XIX para trabalhar na agricultura. De fato, o interesse pela mão-de-obra da China já podia ser observado em 1808, quando o Conde de Linhares – título que na época pertencia ao militar Domingos de Sousa Coutinho (1755-1812) – chegou a cogitar a hipótese de trazer dois milhões de chineses como uma maneira de contornar a proibição do tráfico negreiro, que foi imposta pelos ingleses. Uma colônia de chineses foi trazida de Macau para o Rio de Janeiro pelo Governo Real Português, entre 1812 e 1819, de maneira a introduzir a cultura do chá no Brasil. Tratava-se de um projeto econômico estratégico, organizado pelo governo de Dom João VI, estimulado pelo Ministro do Reino, Conde de Linhares – nesse período, o posto era representado por Francisco de Sousa Coutinho Teixeira de Andrade Barbosa (1790-1857), – e protegido pelo Ministro de Guerra e dos Estrangeiros, Conde da Barca – António de Araújo e Azevedo (1754-1817).
O plano foi instituído em 1810 e, dois anos depois, chegaram ao Rio cerca de 300 chineses, além de mudas e sementes de chá vindas de Macau no navio Vulcano. Eram plantadores de ervas da província de Hubei, local famoso pelo chá verde, que foram colocados para trabalhar na fazenda da família imperial, no Rio de Janeiro (que mais tarde veio a ser o Jardim Botânico Real). Em 10 de setembro de 1814, desembarcaram no Porto do Rio quatro chineses cultos (provavelmente mestres do processamento de chá) que foram morar na residência do Conde da Barca. O pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), durante sua primeira viagem ao Brasil, entre 1821 e 1825, documentou a plantação chinesa de chá no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, publicando a gravura em seu livro Viagem pitoresca através do Brasil, cujo texto faz referência a uma colônia de 300 chineses na cidade.
Apesar da boa vontade de ambas as partes, o cultivo de chá pelos chineses foi, de modo geral, considerado um fracasso. Por um lado, o diretor do Jardim Botânico tratava os trabalhadores de forma severa, suspeitando de que eles, propositalmente, mantivessem segredos sobre suas técnicas mais sofisticadas de processamento do chá – o que não era verdade, pois os chineses geralmente bebem chá verde e simplesmente não conheciam os gostos euro-brasileiros, que preferiam tomar o chá preto adoçado com açúcar. Por outro lado, os próprios chineses não aceitaram de forma passiva as condições de servidão dentro da fazenda imperial. Quando dois deles fugiram do Jardim Botânico, o filho de D. João VI caçou-os com cavalos e cães. Muitos outros escaparam em seguida, estabelecendo-se em outros locais da cidade, onde passaram a trabalhar como vendedores ambulantes e cozinheiros. Por volta de 1825, vários chineses registrados com nomes brasileiros já tinham adquirido licença para mascatear. Com o passar do tempo, os plantadores de chá tornaram-se mascates, vendendo nas ruas peixes e pastéis. E por que muitos chineses se tornaram pasteleiros? Era um tipo de comércio que exigia pouco capital e permitia ao vendedor trabalhar sozinho. Coisa relativamente fácil para os que não têm dinheiro e nem falam o idioma da terra.
Em 1881, o Brasil assinou um tratado amplo de “amizade, comércio e navegação” com a China, que proibiu a contratação de mão-de-obra (coolies), visto que os brasileiros proprietários de terras tratariam os trabalhadores como escravos e não como colonos livres. Mas apesar da proibição oficial da China, devido à falta da mão-de-obra, conseqüente da proibição do tráfico negreiro, atividades ilegais do contrabando de coolies receberam apoio do governo brasileiro. Em 1882, foi fundada no Rio de Janeiro a Companhia de Comércio e Imigração Chinesa (CCIC), contando com o apoio ativo do governo brasileiro e visando trazer ao País 21 mil trabalhadores. O primeiro grupo de mil chineses foi enviado pela CCIC a Minas Gerais para trabalhar na Companhia Mineradora de São João d’El-Rey, de propriedade britânica, dona da maior mina da América do Sul, a de Morro Velho. Esse grupo confirmou os piores temores do governo chinês: mais da metade deles recusou-se a pôr os pés na mina, e os que aceitaram, fugiram pouco tempo depois.
O historiador brasileiro José Roberto Teixeira Leite realizou uma pesquisa nos quatro volumes do Registro dos estrangeiros, publicados a partir de 1960, pelo Arquivo Nacional. O autor notou que os chineses possuiam nomes cristãos e apenas quatro dentre eles tinham conservado seus nomes nacionais – justamente os quatro mestres de processamento de chá, registrados em 1814. Uma explicação para esses fatos é que os proprietários das minas e os fazendeiros impuseram nomes portugueses e cristãos aos coolies, da mesma forma que fizeram com escravos negros. Isso pode ser comprovado pelo fato de que nenhum escravo negro no Brasil conservou seu nome original africano.
OS COMERCIANTES DO SÉCULO XX
De modo geral, com a abolição da escravidão no Brasil, em 1888 (último país a fazê-lo), encerrou- se essa prática como sistema político e o mundo passou a realizar a migração voluntária. Alguns coolies sobreviventes do trabalho forçado também ganharam a liberdade e prosperaram no comércio, montando restaurantes e lavanderias, tornando-se casos raros de sucesso que incentivavam os imigrantes do século XX.
Desde 1900, a maioria dos imigrantes chineses era cantonesa. Dentre muitas histórias de sucesso que circulavam nas aldeias, a emigração ocupava um lugar central como campo de possibilidades. As histórias e fantasias, contadas e recontadas por retornados (“brasileiros” de torna- viagem), emigrados em visitas ocasionais ou por intermédio de cartas enviadas a parentes e amigos, espalharam-se entre os chineses. Por conta dessas narrativas, os jovens esfomeados e descrentes, das áreas rurais assoladas pelas crises sociais e econômicas, embarcaram com a ajuda das redes de apoio e solidariedade nos navios, atravessaram oceanos e chegaram finalmente à capital do Brasil. Os cantoneses mais afortunados tornaram-se donos de estabelecimentos como restaurantes, lavanderias e mercearias. Seguindo essa tradição, os recém-chegados normalmente começavam a trabalhar como empregados em restaurantes, pensões ou pastelarias de parentes e amigos, e após juntar dinheiro ou pegar empréstimos feitos por causa das viagens, montavam seus próprios negócios.
Outra região chinesa cujos habitantes costumavam emigrar para o exterior é a cidade de Qingtian, na província de Zhejiang. Diferentemente dos cantoneses que chegavam ao Brasil desde o século XIX, os qingtianeses começaram a emigrar para o Brasil somente depois de 1911, quando eclodiu a Revolução Republicana na China. Eles voltaram-se basicamente para o comércio e iniciaram sua trajetória mascateando pelas ruas do Rio de Janeiro. Posteriormente, os qingtianeses assentaram negócios e estabeleceram pontos de vendas espalhadas pelas ruas, localizadas geralmente perto do centro comercial ou de núcleo de imigrantes. Esse comércio se caracterizava pelos produtos típicos da China, trazidos pelos fornecedores chineses. Com o passar do tempo, os sacoleiros ambulantes transformaram- se em donos de bazares, após uma trajetória de privações e trabalho árduo. No tocante aos sacrifícios pelos quais passavam os mascates, destacam-se jornadas que se estendiam para além das 16 horas diárias.
Quando chegaram ao Brasil, muitos qingtianeses tornaram-se vendedores ambulantes nas principais ruas da cidade carioca. Assim surgiu um tipo de pequeno comércio, o tibao, sinônimo de sacoleiro ambulante: o vendedor carregava uma mochila ou bolsão cheio de mercadorias e transitava entre as ruas e bairros residenciais. Em 1926, o imigrante Chou Chi-Wen chegou ao Rio de Janeiro junto com o seu amigo Wang Yi-Tsong. Os dois abriram uma loja na Rua do Ouvidor, no centro do Rio, vendendo toalhas de mesa bordadas, trazidas da China. Chou Chi-Wen e Wang Yi-Tsong tornaram-se os primeiros lojistas chineses a trabalhar com produtos importados da China. Os dois obtiveram grande sucesso e expandiram seus negócios de varejo para atacado. Além de importar toalhas de mesa bordadas, eles também trabalhavam com outros tipos de mercadorias chinesas, como porcelanas, artesanatos e lenços de seda.
Por muito tempo, o tibao permaneceu como a principal atividade dos recém-chegados imigrantes qingtianeses, por possuir algumas vantagens: tratava-se de um pequeno comércio, fácil para se começar, e apresentava flexibilidade total em relação ao espaço e ao tempo. Aos poucos, os ambulantes juntaram dinheiro das vendas de toalhas bordadas e montaram pensões e restaurantes. Os primeiros qingtianeses donos de restaurantes foram Chu Zee-Ming, Ye Chio-Ming e Chiu Jen-Fong. Em 1925, os três entraram em sociedade e abriram um restaurante-pensão, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Por volta de 1930, Chu Zee-Ming abriu o restaurante “Fong- Shing”, na Rua da Conceição, n° 57, no centro de Niterói. O negócio prosperou e tornou-se o maior restaurante dos qingtianeses. Em 1932, Ye Chio-Ming abriu um restaurante na Rua do México, nº 44, e Chiu Jen-Fong montou outro na Praça República.
A VIDA EM TERRAS BRASILEIRAS
Em 1919, cerca de cem imigrantes chineses reuniram-se no dia 4 de outubro e fundaram o Centro Social Chinês do Brasil, cuja sede inicial ficava em um sobrado na Rua Visconde de Rio Branco, nº 15, no Rio de Janeiro. A organização possuía um presidente, um vice-presidente, um tesoureiro, um secretário e 20 membros do conselho administrativo, eleitos anualmente. O Centro Social Chinês era reconhecido pelo governo republicano de Taiwan e fazia celebrações coletivas nas datas comemorativas no calendário chinês, como o dia da república, ano-novo, dia do meio outono, dia do verão, além de funcionar também como uma rede de solidariedade, ajudando os pobres e arrecadando dinheiro para ajudar a China. Na época, os chineses, majoritariamente cantoneses, já haviam estabelecido restaurantes, lavanderias e bazares de conveniência. Em 1921, o Centro Social registrou 296 associados, dentre eles, 244 eram cantoneses, 51 vieram de Qingtian e apenas uma pessoa da cidade de Xangai.
Segundo as estimativas de Guo Bingqiang, autor de Registro geral dos imigrantes chineses de Qingtian no Brasil (1910-1994), na década de 1920, cerca de 90 qingtianeses emigraram para o Brasil, entre os quais, aproximadamente 67 pessoas permaneceram no Rio de Janeiro, 15 ficaram em São Paulo e três pessoas foram para Porto Alegre. Em geral, exceto os donos de restaurantes e lojas, a maioria dos chineses era mascate (sacoleiro) ou trabalhava para outros chineses. Os empregados de restaurante, por exemplo, ganhavam mal, comiam os restos dos pratos de comida e dormiam no chão, debaixo das mesas. Mas alguns viveram no Brasil com sucesso, gozando de grande prestígio entre os compatriotas.
O caso de Wang Yi-Tsong (1877-1966), por exemplo, mostra que algumas histórias foram bem-sucedidas. Esse chinês chegou ao Brasil em 1915, via Argentina, e viveu em Porto Alegre, cidade que, na época, oferecia melhores condições para os imigrantes. Depois de dez anos de lutas na capital gaúcha, ele ganhou dinheiro e retornou a Qingtian para visitar a família e, em 1926, voltou ao Brasil. Dessa vez, Wang foi para o Rio de Janeiro e levou o amigo Chou Chi-Wen, com quem abriu a loja Toalhas Bordadas de Xangai, na Rua do Ouvidor, no centro da cidade. Em 1937, Wang abriu o restaurante Camões na Praça Tiradentes, nº 47, que logo se tornou um dos restaurantes mais populares do Rio.
Wang também era patriota. Durante a guerra sino-japonesa, ele reuniu os imigrantes chineses para fazer gioza, um delicioso prato da comida chinesa. O dinheiro da venda de gioza foi enviado para China, para ajudar na guerra de resistência contra os invasores japoneses. Ele incentivava os compatriotas a comprarem os “títulos de salvação nacional” e “títulos de reconstrução nacional” para ajudar a pátria. Sendo um dos homens que mais ajudaram a comunidade chinesa e a pátria, Wang é lembrado pela comunidade chinesa com muito respeito.
A IMIGRAÇÃO DEPOIS DA REVOLUÇÃO CHINESA DE 1949
A interação entre a política brasileira com a China, de 1881 a 1961, é irrelevante. A política exterior do Brasil republicano, especialmente de 1913 a 1961, seguiu uma linha americanista, de consulta e cooperação com a política americana no plano global. Em 1949, com a revolução de Mao Tsé-Tung, o Brasil transferiu sua representação diplomática na China para Tóquio, no Japão, sede do Comando Supremo das Forças Aliadas (no contexto pós-Segunda Guerra Mundial). Mais tarde, em 1952, o Brasil passou a embaixada para Taiwan, recusando o reconhecimento do regime comunista da China continental. De 1949 a 1974, por não existirem relações diplomáticas entre o Brasil e a China, os imigrantes não podiam obter documentos de viagem diretamente do governo da China nem do Brasil. Antes de solicitar o visto brasileiro em Hong Kong, os chineses tinham de ir primeiro a Macau para obter o passaporte da República da China – o regime nacionalista em Taiwan, reconhecido pelo governo brasileiro. Era um processo muito complicado e tortuoso.
Na China, de 1949 a 1950, a guerra civil entre os comunistas e nacionalistas ainda não tinha terminado completamente. Portanto, não era necessário ter passaporte para sair do país e os chineses podiam chegar a Hong Kong livremente e, de lá, podiam solicitar o visto brasileiro. Em conseqüência das guerras e revoluções, houve um grande fluxo de imigrantes chineses para o Brasil, principalmente para a cidade de São Paulo. Devido à falta de dados estatísticos, é impossível saber o número exato dos refugiados que chegaram aqui nesse período.
Porém, com o fim da revolução, a situação mudou completamente. Em 1951, os comunistas começaram a afirmar seu controle em todos os setores. Lançaram a repressão aos bandidos e aos contra-revolucionários (membros dos governantes nacionalistas que resistiram ao novo regime), criando um ambiente político do tipo “terror vermelho” na China continental. As entradas e saídas nas fronteiras começaram a exigir as documentações. Todos os passageiros que quisessem ir a Hong Kong e Macau eram barrados e somente passava quem já tinha na mão o passaporte e a permissão das autoridades comunistas.
Em agosto de 1952, o chinês Chen Chao solicitou ao governo da cidade de Qingtian a permissão para ir a Macau e obteve autorização dos comunistas para viajar. Na alfândega de Gongbei, já havia soldados para examinar as documentações, mas o exame não era rigoroso. Chen Chao saiu com tranqüilidade, mas o documento de viagem foi retido pela alfândega de Gongbei antes de chegar a Macau. Em Macau, por não possuir documentos de identificação, teve de recorrer ao grupo especializado em migração clandestina. Por isso, Chen teve de pagar para chegar a Hong Kong ilegalmente. Lá, ainda por falta de documentos, ele não podia solicitar diretamente o visto brasileiro. Depois de 11 meses de espera, recorreu a Chou Chi-Wen, que tinha parceiros comerciais em Hong Kong. Finalmente, Chen conseguiu emigrar para o Brasil, em 1953. A história de Chen ilustra bem a dificuldade que era para sair da China nesse período. Depois dele, outros dez qingtianeses também tentaram chegar a Macau, mas foram detidos em Cantão e mandados de volta para Qingtian, onde foram condenados à morte pelo regime comunista, que já estava inserido com mãos-de-ferro.
No ano de 1953, o governo chinês intensificou o controle sobre a emigração. Já não bastavam as permissões emitidas pelo governo municipal de Qingtian. Para emigrar era necessária a autorização dos governos provinciais. Esse foi o caso de Wu Hsian-Chao: na China, ele havia sido acusado de espionagem pelos comunistas, somente porque tinha parentes no Brasil. Mas Wu escapou da pena de morte porque sabia usar o ábaco (espécie de calculador mecânico). A sua profissão de contador o salvou, pois os comunistas resolveram poupar sua vida e colocá-lo para trabalhar sob vigilância.
Em 1957, Wu apresentou ao regime uma carta de convite do seu tio (que havia emigrado para o Brasil, em 1926), que passou pela aprovação de cinco hierarquias: o comitê do partido da sua unidade de trabalho, o governo do município de Wenzhou, o departamento da polícia de Wenzhou, o departamento de assuntos estrangeiros de Xangai e o departamento de segurança pública da província de Zhejiang. Após passar pela alfândega de Gongbei, ele finalmente chegou a Macau. Por falta de documentação, teve de gastar uma boa quantia em dinheiro para chegar ilegalmente a Hong Kong e receber uma cédula de identidade pelo canal clandestino. Wu precisou voltar novamente de Hong Kong para Macau para solicitar o passaporte da República da China, emitido pelo regime de Taiwan. Em seguida, retornou a Hong Kong para solicitar o visto do Consulado Brasileiro. Enfim, Wu embarcou em um navio holandês e chegou ao Rio de Janeiro, depois de 56 dias de travessia no alto mar.
O período de 1966 a 1974 foi de tempos extremos. Para o regime maoísta, a emigração constituía um ato de abandono da pátria, uma traição à revolução proletária. Por conseguinte, qualquer um que tentasse emigrar ou tivesse parentes no estrangeiro passava a ser alvo de perseguição política dos radicais. O país inteiro entrou em caos, as máquinas do Estado foram paralisadas e os canais clandestinos de emigração funcionavam precariamente. Chegavam apenas alguns qingtianeses ao Brasil. Alguns cantoneses vieram ao Brasil como refugiados da Revolução Cultural. A situação começou a se modificar em outubro de 1974, quando o Brasil e a China restabeleceram relações diplomáticas.
NOVOS IMIGRANTES: CHINESES NO SAARA
De 1974 a 1976, a China continental encontrava- se no final da Revolução Cultural e poucos chineses conseguiram emigrar para o Brasil. Para o alívio de todos, a Revolução Cultural terminou em 1976. Dois anos depois, iniciou-se na China uma nova era da sua história: a reforma e a abertura. A partir de 1979, a China começou a respeitar o direito do cidadão de entrar e sair do país. Muitos viajaram ao exterior para aprender novos conhecimentos, outros emigraram para encontrar com os parentes ou simplesmente em busca de uma vida melhor.
Seguindo os passos dos seus parentes e amigos já estabelecidos, os imigrantes que chegaram aqui depois da década de 1950 também iniciariam suas trajetórias como sacoleiros ambulantes (tibao). Dessa vez eles não vendiam somente toalhas de mesa, tecidos de seda, mas também jóias de ouro, pérolas e pedras preciosas. Praticando o tibao, esses recém-chegados acumularam suas economias e, na década de 1960, tornaram-se proprietários de lojas e restaurantes. De 1970 a 1980, a maioria das lojas chinesas era apenas bazares ou mercearias. Mas a partir da década de 1990, as lojas passaram a vender a varejo e atacado, colocando em suas prateleiras produtos importados da China, Taiwan, Hong Kong e Japão.
Os anos 1990 foram frutíferos para os imigrantes qingtianeses. Na China, o desenvolvimento econômico atingiu um ritmo cada vez mais acelerado. Ao mesmo tempo, na esteira da globalização, o Brasil também afrouxou seu controle sobre a economia e abriu suas portas para o mundo, principalmente no setor do comércio exterior. Essas mudanças deram grandes oportunidades para os imigrantes chineses no Brasil.
Para ilustrar esse momento, vale a pena citar a história de Ji Fu-Ren, que chegou ao Rio em 1958 e, dez anos depois, montou uma loja de artigos importados e comprava toalhas de mesa via Hong Kong. Em 1994, o governo brasileiro baixou os impostos sobre a importação, em caso de produtos comuns, os impostos diminuíram de 10% a 20%. Paralelamente, o governo chinês adotou uma política mercantilista, incentivando as empresas chinesas a exportarem mercadorias para ganhar divisas, com as quais financiaria a importação de máquinas. Ji Fu-Ren aproveitou as novas oportunidades e investiu todos os seus recursos no comércio exterior. Seguindo o seu exemplo, na década de 1990, outros qingtianeses também abriram suas empresas de importação no Rio de Janeiro.
Os qingtianeses no Rio eram um grupo pequeno, que não contava com mais de duas mil pessoas, e que possuíam características comuns: eram pobres quando chegavam, mas trabalhavam sem descansar, e eram corajosos e audaciosos nos empreendimentos. Eles se estabeleceram no Saara, a tradicional zona do comércio popular no centro do Rio de Janeiro. A área ganhou esse nome provavelmente por ter sido a região que concentrava muitos mascates sírio-libaneses, com suas caravanas de produtos vindos do Oriente Médio. Inicialmente, o Saara era dominado pelos imigrantes árabes e judeus e, após 1970, vieram os coreanos e japoneses. A partir dos anos 1990, chegaram os chineses que expandiram sua presença.
Em 1995, havia no Saara apenas duas ou três lojas atacadistas de chineses, número que aumentou cada vez mais. Em 2007, o número chegou a 40 lojas qingtianesas e, hoje, os chineses ocupam mais de 20% dos espaços comerciais da região. Em alta temporada, as ruas do Saara ficam bastante congestionadas, quando os consumidores enchem toda a região.
AS DIVERGÊNCIAS ENTRE COMUNISTAS E TAIWANESES NO RIO
Dentro da pequena comunidade chinesa no Rio de Janeiro, há união e divergências, sobretudo acerca da questão de Taiwan. Alguns defendem a independência da ilha, a maioria defende o status quo (nem a unificação, nem separação), ao passo que outros defendem a unificação no futuro sob a bandeira da República Popular da China. Não obstante, no cotidiano, os taiwaneses se dão muito bem com os compatriotas cantoneses e qingtianeses.
Há amizade e desacordos entre os imigrantes chineses. O Centro Social Chinês do Rio de Janeiro (Chunghwa Huikuan) é fortemente ligado ao governo de Taiwan, enquanto os chineses oriundos da China continental se reúnem em torno da Associação Chinesa do Rio de Janeiro (Hualian), uma organização ligada ao governo de Pequim. No Rio, 30% dos chineses vieram de Taiwan – muitos nasceram no continente, mas exilaram-se na ilha junto com o regime de Chiang Kai-Shek. É o caso, por exemplo, de Tso Chia-Ya, que nasceu no continente em 1948 e, aos 2 anos de idade, foi para Taiwan com a família, após perder o pai, que morreu executado pelos comunistas durante a guerra civil. Tso cresceu em Taiwan, mas emigrou para o Brasil em 1972, quando os Estados Unidos abandonaram a ilha, estabelecendo as relações diplomáticas com o continente comunista. “Tínhamos medo de que os comunistas invadissem Taiwan. Por isso, toda a nossa família emigrou para o Brasil”, conta Tso. Ele afirma que no Rio de Janeiro chegaram cerca de dois mil chineses- taiwaneses até os anos de 1970, mas agora, quase 40 anos depois, restam apenas 700 desses imigrantes. Isso porque a economia de Taiwan cresceu tanto que o país se tornou um dos tigres asiáticos (Coréia do Sul, Singapura, Taiwan e Hong Kong), atraindo os taiwaneses de volta para sua terra natal. A entrada de imigrantes taiwaneses no Brasil diminuiu e o pequeno grupo envelheceu.
A união, a solidariedade e as divergências entre os chineses são exemplificadas pelo qingtianês Chou Huimin (1907-1980), que chegou ao Rio de Janeiro em 1929, via Europa. Ele era um homem generoso e conhecido por ajudar os outros. Falava fluentemente português, gostava de dançar e participava dos desfiles de samba durante o carnaval. Tinha muitos amigos, entre chineses e brasileiros, e foi eleito vice-presidente do Centro Social Chinês. Na década de 1960, manteve amizades com embaixadores do governo de Taiwan. Em 1967, na comemoração do seu 60º aniversário, cerca de 300 imigrantes chineses compareceram. O embaixador Chu Shao-Chang e todos os funcionários da Embaixada da República da China prestigiaram a homenagem.
Mas Chou também mantinha boas relações com o regime comunista. Em 1950, o irmão dele foi executado pelo governo comunista por crime “contra-revolucionário”, no entanto, Chou não guardou rancor contra o regime. Em 1956, uma delegação “ópera de Pequim”, enviada pelo governo chinês, o visitou no Rio e Chou ajudou o governo brasileiro a recepcionar os visitantes comunistas. Na época, muitos chineses refugiados do comunismo protestaram contra os visitantes do regime de Pequim, porque o governo havia estabelecido a reforma agrária e executado muitos proprietários rurais e seguidores de Chiang Kai-Shek. Em 1958, Chou recepcionou outra delegação de “acrobacia de Pequim”, enviada pelo governo comunista, ajudando a delegação a obter sucesso nas apresentações. Em 1973, o Brasil e a China negociaram as relações diplomáticas e Chou participou de todos os receptivos das delegações da China continental.
Em 1971, quando as Nações Unidas expulsaram o regime de Taiwan dos seus organismos e reconheceram a República Popular da China, Chou e os outros qingtianeses pró-comunistas tentaram substituir a bandeira azul da República da China do Centro Social Chinês pela bandeira vermelha da República Popular da China. O ato causou a reação dos chineses pró-nacionalistas. No final desse episódio, a polícia do Rio de Janeiro foi acionada para impedir as tentativas de trocar a bandeira.
Apesar das divergências políticas, os taiwaneses convivem muito bem com os compatriotas cantoneses e qingtianeses, no Rio de janeiro. Durante as festas tradicionais, como o Festival da Primavera, o Centro Social faz comemorações durante o dia e a Associação Chinesa faz comemorações à noite. Assim, todos podem participar das atividades de ambas as organizações. Uma característica comum dos chineses é o orgulho pela própria cultura e o empenho em manter suas tradições. Muitos imigrantes chineses aderiram à Igreja Católica, mas preferem ao mesmo tempo preservar sua identidade cultural chinesa. Em casa, muitas famílias só conversam com os filhos nascidos no Brasil em chinês, para aprimorar a língua materna. As associações chinesas, seja o Centro Social Chinês, dominado pelos chineses pró-nacionalistas, ou a Associação Chinesa, pró-comunista, sempre incentivam o ensino da língua chinesa e promovem a cultura nas datas importantes, como o ano-novo chinês (geralmente em fevereiro, segundo o calendário lunar), com shows artísticos e danças típicas chinesas. Tudo isso é feito para fortalecer os laços culturais que anulam a enorme distância entre o Brasil e a China.
REFERÊNCIAS
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LEITE, José Roberto Teixeira. “Chineses entrados no Brasil 1814-1842.” In: _____. A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivência chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1999. p. 269-275.
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MEAGHER, Arnold. The Coolie Trade: the traffic in Chineses laborers to Latin America 1847-1874. Xlibris Corporation,2008.
(Publicado no Portal da Ciência – sem data)
SHU CHANG-SHENG