Em busca de uma vida melhor, imigrantes vindos do Haiti chegam ao Brasil e encontram dificuldades para sobreviver.

Desde 2010, após o terremoto que devastou o Haiti, parte da sua população sonha em viver no Brasil, na tentativa de reconstruir a vida e ajudar familiares e amigos que ficaram no país caribenho. Mas ao chegar aqui, a realidade é outra.

Há dois meses no Brasil, a haitiana Betty Fills Jerôme quase não fala português. Nascida e criada em Porto Príncipe, ela viu sua vida se transformar drasticamente após o terremoto de 2010. Sem perspectivas para o futuro em meio às ruínas de sua terra natal, resolveu tentar a sorte em outro país. Pegou um ônibus e cruzou parte das Américas Central e do Sul, passou pela região Amazônica e chegou em São Paulo. “Vim para cá pelas oportunidades e também por causa do terremoto. Não conseguia emprego lá”, relata. Ela, longe de ser a única, simboliza a atual conjuntura brasileira. E tem sorte por ter conseguido ao menos livrar-se da situação de sofrimento que passam seus conterrâneos que vivem nas fronteias do Brasil, em Manaus e no Acre.

Nos últimos anos o Brasil tem se tornado uma das opções mais tentadoras para imigrantes que saem de lugares como Bolívia, Peru e Paraguai, em busca de melhores condições de emprego e educação. Nosso país tornou-se o que os Estados Unidos eram nos anos 90 para muitos brasileiros e mexicanos. E desde 2010 os haitianos passaram a integrar esse grupo.

O número de estrangeiros regulares no Brasil aumentou 50% de 2010 para 2011, de acordo com os registros da Polícia Federal. Em dezembro de 2010, havia cerca de 961 mil estrangeiros, enquanto no mesmo mês de 2011 esse número passou para quase um milhão e meio de pessoas. Desses, estima-se que aproximadamente 5 mil sejam haitianos, a grande maioria vivendo em cidades como Tabatinga, no Amazonas (onde está o maior número de imigrantes que entram pela Tríplice Fronteira), Manaus e Acre.

Nessas cidades é difícil lidar com a quantidade de pessoas. Poucos haitianos falam português, expressando-se sempre em francês ou crioulo. Em Tabatinga, a maioria passa os dias caminhando pelas ruas, em busca de qualquer emprego ou bico que rendam alguns trocados ou até mesmo comida. Os alojamentos estão superlotados, com pessoas vivendo dentro de banheiros e quartos apertados, repletos de mosquitos. Igrejas, ONG’s e outras instituições, às vezes até moradores da região, ajudam como podem e oferecem abrigo e alimento. O posto da Polícia Federal da cidade amazonense não consegue dar conta de tantas solicitações de documentação, nem mesmo fazendo marcação de digitais e registro de fotos, o que atrasa ainda mais qualquer melhora na vida desses imigrantes.

Carla Aparecida Silva Aguilar é assistente social e gerente da Casa do Migrante, localizada na Baixada do Glicério, no Centro de  São Paulo. Mantida pelos padres da Igreja Nossa Senhora da Paz, a casa possui capacidade para cem pessoas, mas está superlotada nos últimos meses, a maioria dos quartos com haitianos. O roteiro de viagem a capital paulista é quase sempre o mesmo: do Haiti partem para o Panamá, de lá para o Peru ou a Bolívia e, finalmente, chegam ao Brasil de ônibus, assim como fazem peruanos e bolivianos. Uma minoria consegue sair da região Amazônica e vir para o Sudeste. Na opinião de Aguilar a lei brasileira que protege imigrantes tem uma falha, pois pensa apenas nos aparatos legais da situação, esquecendo a questão da moradia: “O governo pensa em tudo, mas não pensa onde essas pessoas vão ficar. Dão uma carteira de trabalho, mas não dão um lugar para morar. Eles dão ajuda, mas a pessoa precisa comer, morar. Como alguém vai procurar um emprego se não tem nem onde morar? Imagine para uma família viver um albergue”, se indigna.

Se boa parte dos imigrantes sul-americanos chega ao Brasil em busca de um bom emprego e muito dinheiro, os haitianos vem em busca do mínimo, que já não é mais encontrado em seu país de origem. Para Carla Aguilar, o fato de o exército brasileiro estar no Haiti é um dos motivos para que os haitianos queiram vir para cá. “Quer propaganda melhor do que essa? Eles ficam sabendo que as pessoas que estão aqui estão muito bem, conseguiram casa e emprego, então querem tentar também”. Segundo Aguilar, o perfil de quem vem de outro país é sempre de alguém sozinho que pretende, no futuro, trazer mais familiares. Mas infelizmente essa imagem de sucesso em terras brasileiras quase nunca se concretiza.

A boa relação entre Brasil e Haiti foi reforçada depois do início da missão brasileira de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no país caribenho em 2004, como parte de uma iniciativa mais ampla para se posicionar como líder global.

As promessas de emprego, principalmente na construção civil, uma vez que o Brasil se prepara para sediar a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, levam não somente haitianos, mas também paraguaios, peruanos e bolivianos a tentarem entrar no Brasil da maneira que for possível, quase sempre ilegal e entrando pela Amazônia. No caso dos haitianos, eles procuram agências de viagens clandestinas onde encontram os famosos coiotes, que prometem entrada e vida digna no Brasil por cerca de 3 mil dólares. Em caso de pouco dinheiro, chegam a aceitar até menos. O que acontece é que muitos ficam abandonados no meio do caminho, na fronteira do Peru, por exemplo, onde tem seus objetos roubados e mulheres sofrem tentativas de estupro.

Dirceu Cutti é pesquisador do Centro de Estudos Migratórios da Casa do Migrante, que possui uma biblioteca especializada em estudos migratórios. Ele explica que o CEM não é um centro de pesquisas, mas sim uma mediação entre estudos teóricos e a realidade dos imigrantes: “Nós precisamos ligar esses dois eixos, eles precisam ajudar um ao outro”, opina. A partir do Centro de Estudos, Cutti conseguiu ter uma visão melhor da imigração no Brasil: “Os imigrantes são bem recebidos, mas é claro que há o preconceito. Cidade nenhuma está completamente de braços abertos para o novo, para o diferente, para o imigrante pobre. Aí o mito da cordialidade brasileira é questionado”.

No início de maio um desses grupos atraídos pelos coiotes chegou a cidade de Iñapari, no Peru, na fronteira com Assis Brasil, no Acre. Os 60 haitianos encontram-se na fronteira sem perspectiva do que fazer. Um outro grupo, de 56 pessoas, também vindos do Haiti, furou uma barreira formada pela Polícia Federal e conseguiu entrar no Brasil, de acordo com ativistas de direitos humanos da região. Todo o grupo foi identificado e notificado pela PF para deixarem o país.

Com a intenção de desestimular a atividade dos coiotes e ter um controle maior do número de haitianos que entram no Brasil, a presidente Dilma Roussef fez uma visita ao Haiti em fevereiro desse ano e anunciou a emissão de cem vistos humanitários por mês para os próximos cinco anos, além do reforço da segurança nas fronteiras. Para os haitianos que já estavam no Brasil na época também houve a promessa desses vistos. O aviso ficou para aqueles que pretendiam vir para cá: seriam banidos, a menos que chegassem ao país com o visto já providenciado.

Responsável pela Anistia Migratória, a Lei nº 11.961/2009 foi outro importante fator para o aumento da imigração, pois regularizou cerca de 45 mil imigrantes que estavam em situação irregular no Brasil. Promulgada em 2009, ela dava direito aos estrangeiros que haviam adentrado o país até fevereiro do mesmo ano a se oficializarem cidadãos brasileiros. O fluxo migratório intenso também foi consequência do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados parte do Mercosul, em vigor desde o inicio de 2009, mediado pelo Estatuto do Estrangeiro e o Conselho Nacional de Imigração (CNIg).

O acordo garante aos cidadãos do Mercosul o direito de requerer visto de permanência em países do bloco que não são de sua nacionalidade, ou pedir residência caso já esteja habitando em outro país, mesmo que irregularmente. Em consequência disso, houve um aumento, em 69%, da concessão de vistos de permanência e residência no Brasil a imigrantes nos últimos dois anos, de acordo com um levantamento do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça.

Ainda segundo dados da instituição, a concessão de nacionalidade brasileira também aumentou, em 90% de 2008 para 2010. O imigrante que passa a residir no Brasil possui os mesmos direitos assegurados a todos os brasileiros, inclusive os direitos trabalhistas. Porém, o governo estima que ainda existam por volta de 60 e 300 mil imigrantes ainda irregulares no país, de diversas nacionalidades.

Na opinião do General de Brigada do Exército Mário Antônio Ramos Antunes, há facilidade na transposição das fronteiras: “é uma divisa permeável onde não há selva, rio ou montanha. Na fronteira entre México e Estados Unidos temos um muro imenso, com fiscalização e tecnologia. Aqui não, falta ação do Estado e infraestrutura”. Ele ressalta que o Exército Brasileiro faz o que pode em suas missões e mantém uma relação harmoniosa e de ajuda aos imigrantes que permanecem na fronteira da região Amazônica.

Mas ainda assim, o problema permanece sem uma solução eficaz, com cada vez mais haitianos alocando-se na Amazônia, sem as mínimas condições de sobrevivência.

Ana Carolina Neira