Migrantes ‘por natureza’, os libaneses encontraram no Brasil um porto seguro para navegar rumo ao futuro.
Já havia se passado mais de duas horas de conversa e Miguel ainda caminhava de um lado para o outro, explicando todas as curiosidades sobre a Liga Libanesa. Filho de imigrantes libaneses, Miguel é categórico ao afirmar que o Brasil é um destino óbvio para o povo. “É um país acolhedor, o mais acolhedor do mundo”, elogiou. Nascido no Brasil, contou que seus pais – assim como tantos outros – deixaram o Líbano pelas muitas guerras e conflitos que marcaram a história do país.
Os libaneses descendem do povo Fenício. Considerados um grande enigma da história da humanidade, os fenícios sempre foram reconhecidos como excelentes escribas, que deixaram como herança ao mundo ocidental nosso alfabeto. Além disso, seriam exímios navegadores, inventores da vela nos barcos. O que não se sabe é se, de fato, esse povo, como é conhecido hoje, identificava-se a partir de alguma identidade étnica. Como suas cidades eram muradas e raramente estabeleciam relações entre si, os fenícios podem ser considerados mais uma confederação de mercadores do que um país definido por limites territoriais. É possível afirmar, portanto, que o comércio marítimo, e não o território, seria o fator de coesão capaz de defini-los.
Ao longo de muito tempo, os fenícios ficaram sob domínio estrangeiro, devido a sucessivas invasões aos seus territórios. Mesmo assim, mantinham a soberania pelo controle marítimo. Esse cenário se alterou quando os persas e os gregos iniciaram uma série de disputas por terras. Isso levou as cidades fenícias a, compulsoriamente, apoiar os persas. Os fenícios cederam seus navios às batalhas, perdendo grande parte de sua frota e, consequentemente, o controle sobre o mar.
Em 333 a.c., os persas foram derrotados pelo grego Alexandre, o Grande. Sob o comando de Alexandre e seus sucessores, as cidades fenícias se viram incapazes de recuperar sua antiga posição comercial e política. Os gregos se alojaram em grande número no território e a língua fenícia foi desaparecendo aos poucos.
Ruínas otomanas
Já no século XIII, as minorias cristãs e muçulmanas, fugindo dos conflitos do Oriente, instalaram-se nas montanhas libanesas, dando início à diversidade religiosa encontrada hoje no país. Na mesma época, os guerreiros mamelucos – escravos muçulmanos a serviço do exército do grande Império Turco-Otomano –, conseguiram vitória sobre diversos outros povos que disputavam o domínio do Líbano e assumiram o controle do país.
No século XV, o Império Otomano se consolidou e intensificou seu plano de expansão.
A presença dos mamelucos, do século XIII, deu lugar à dominação do Império Otomano até meados do século XIX – quando, na Primeira Guerra Mundial, foi destruído. É deste longo período, de seis séculos de dominação, que vêm a tradição e a fama de árabe dos libaneses.
Com o fim do Império Otomano, em 1918, a Liga das Nações atribuiu o mandato do Líbano à França. Em 1920, o Líbano ainda estava anexado à Síria, constituindo assim o Grande Líbano, que só se transformou em República do Líbano, em 1926, quando teve sua constituição promulgada. Para tentar equilibrar as forças religiosas presentes no país, em 1943, houve a Proclamação do Pacto Nacional. As regras foram estabelecidas, de modo que o presidente deveria ser cristão maronita; o primeiro ministro, um muçulmano sunita; e o porta-voz da Câmara dos Deputados, um muçulmano xiita. No mesmo ano, é proclamada, oficialmente, a Independência do país, em relação ao domínio francês, porém, as tropas francesas só deixam o território libanês três anos mais tarde, em 1946.
De 1975 a 1990, o Líbano enfrentou 15 anos de uma sangrenta guerra civil. Os libaneses dividiam-se em uma minoria de cristãos maronitas e muçulmanos. Cada região era governada por um grupo, cristão ou islâmico, que organizava a defesa, cobrava tributos e exercia a justiça de acordo com seus interesses. Antagonismos entre os dois grupos religiosos libaneses sempre houve, mas, após a criação do Estado de Israel, as sucessivas guerras entre árabes e israelenses, no Oriente Médio, criaram um cenário propício à eclosão de uma guerra civil no Líbano.
A ocupação israelense sobre a quase totalidade do território palestino obrigou um número muito grande de pessoas a buscar refúgio nos países vizinhos. Milhares de palestinos migraram para o sul do Líbano, onde passaram a viver em situação precária e, o que é pior, de onde grupos radicais islâmicos – dentre eles, o Hizbollah – iniciaram ataques militares contra o norte de Israel. Todos esses conflitos fizeram com que houvesse uma migração em massa de libaneses.
Destinos múltiplos
Atualmente, Líbano possui uma população de, aproximadamente, 4 milhões de habitantes e o número de libaneses e seus descendentes fora do país é de 14 milhões. Quase a metade deles vive no Brasil – “o melhor país do mundo”, segundo Miguel.
A imigração libanesa teve quatro fases. A primeira fase se deu de 1850 a 1900. É o período de aventuras, onde a América era um mistério para o povo libanês, sem autonomia própria e ainda dependentes do Império Otomano. O objetivo dos primeiros migrantes era a obtenção de riqueza fácil. A borracha, o café e as riquezas minerais,
indiretamente, determinaram a dispersão dos primeiros árabes aqui chegados. O sucesso econômico obtido pelos primeiros árabes foi responsável pela vinda de outros. Os lucros rápidos e fáceis da Amazônia criaram lendas e incentivaram a imigração. Formaram-se agrupamentos de parentes, amigos ou conterrâneos, porém, o desejo de todos era retornar ao seu país de origem.
A segunda onda migratória vai de 1900 a 1918. Com a aceleração da imigração neste período, já se podia falar na formação de “colônias árabes”. O imigrante recém chegado já estava com seu emprego garantido. As casas comerciais de libaneses, já estabelecidos no Brasil, agenciavam os mascates e lhes forneciam as mercadorias. Estabelecidos, num primeiro momento, na faixa litorânea brasileira, os libaneses, sentindo a concorrência dos mascates italianos e portugueses, se dirigiram para o interior do país vencendo, assim, essa concorrência.
Por volta de 1908, a obrigatoriedade de os jovens servirem o exército otomano fez com que muitos deles desertassem e viessem para a América. Mais instruídos e com um pequeno capital, estes novos imigrantes tenderam a abandonar a vida de mascate e a se estabelecerem comercialmente nas pequenas cidades do interior. Quando venciam e obtinham lucros, os libaneses sempre mandavam expressivas somas em dinheiro para seu país de origem, contribuindo assim para a intensificação do movimento imigratório.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, inicia-se a terceira onda de imigrantes árabes para o Brasil. Dos primeiros imigrantes libaneses aqui radicados, alguns já haviam falecido, porém, deixaram inúmeros descendentes com famílias constituídas. Em 1914, já era considerável o número de fábricas pilotadas por sírios e libaneses. Só em São Paulo, o número delas chegava a 47, onde se fabricavam os mais diversos produtos.
A crise de 1929 e o contínuo progresso da indústria nacional levaram os ricos libaneses e sírios para a criação de novas indústrias e à abertura de novos estabelecimentos comerciais. Começaram, também, a adquirir propriedades, ao invés de mandar toda a soma de dinheiro adquirida para seu país de origem.
Sentindo que sua fixação no Brasil não é mais provisória, os árabes passaram a assumir novas posturas econômicas e sociais. Nesta fase, famílias inteiras chegaram ao Brasil, porém, não tinham qualquer proteção das leis de imigração do governo brasileiro. No plano social também já se sente uma mudança no comportamento das famílias de imigrantes: diminuiu o número de jovens que voltam para a terra natal para se casarem com parentes ou conhecidos, porque neste período a família vinha inteira.
O terceiro período termina com a segunda guerra mundial. Depois de 1945 os árabes-brasileiros consolidaram sua posição de comerciantes e industriais e abriram novas relações diplomáticas com o Brasil, principalmente com as mudanças introduzidas nas leis migratórias.
Culinária e língua natal
Ao mesmo tempo em que ia enchendo os braços de montes e mais montes de revistas libanesas, Miguel contava, com muita empolgação, que, entre 1890 e 1950, a imprensa árabe foi muito importante para a união dos imigrantes da época. Eram cerca de 50 jornais e havia, inclusive, um sindicato dos jornalistas árabes. Esses periódicos eram escritos em árabe e foi o que permitiu, em grande parte, que se criasse uma comunidade no Rio de Janeiro. As revistas tratavam dos mais diversos assuntos, entre cultura, historia e modernidade. “Nada de cursos e fotos de dançarinas de dança do ventre, embora até houvesse alguns”, advertiu Miguel, antes de uma pausa constrangida. Enquanto revivia momentos familiares em suas memórias, ele sentou e encheu um copo d’água.
A identidade dos que, hoje, formam a comunidade de descendentes de árabes é múltipla. Os laços com as suas origens se mantêm pela relação afetiva com algum membro da família, pela culinária e pelo aprendizado da língua natal. Mas o conteúdo cultural, em cada membro da comunidade árabe, foi mudando com o passar do tempo, e também com a vinda das novas gerações. “A primeira geração sabia falar e escrever em árabe, a segunda geração fala, mas não escreve e a terceira geração, dos netos de árabes, não fala nada. Muito se perde da cultura árabe. Os árabes estão muito brasileiros”, observou, enquanto mostrava as bandeiras libanesas espalhadas pelo salão da Liga.
Algumas pessoas se consideram árabes pela tradição familiar, alguns por participarem de instituições árabes – como é o caso da Liga Libanesa – e outros usam a origem como fonte de inspiração – a exemplo de escritores e atores de ascendência libanesa. No entanto, para se registrar, de fato, como libanês, o descendente tem que ter todas as suas raízes no Líbano, ou seja, toda a sua família tem que ser de origem libanesa. Não pode haver casamentos com brasileiros, por exemplo.
Miguel se autointitula o “faz tudo” da Liga Libanesa – localizada no bairro da
Tijuca no Rio de Janeiro – e mostra orgulho ao contar que a Liga foi fundada em maio de 1958, com o objetivo político de apoiar o Líbano contra o governo, que não queria incluir o país no então chamado Estado Árabe.
Aos seus 70 anos, Miguel tem os pais falecidos, mas lembra deles tão constantemente que é quase como se estivessem na sala ao lado. Fala também dos cinco irmãos, todos bem sucedidos, e conta dos demais Libaneses pelo país. Discursa com propriedade sobre tudo a que se propõe. Diz inclusive que, diferentemente de outras comunidades, a imigração árabe é múltipla e particular. Afinal, seus motivos são vários e não é possível caracterizar nenhuma motivação como hegemônica. Enquanto muitos imigrantes deixaram seus países de origem motivados pela crise econômica da indústria da seda, alguns também vieram como parte das ações de escolas missionárias protestantes. Outros, como seus pais, fugiam da Primeira Guerra Mundial, que gerou muita destruição, pobreza e epidemias.
Nem turco nem sírio
No dia em que entrevistei Miguel, sem querer, alguém o chamou de sírio, ao que ele, nem um pouco zangado, respondeu: “Libanês. Não sírio, e muito menos os dois”. E bateu na mesa, explicando atentamente que, quando os imigrantes árabes vieram para o Brasil, Síria e Líbano faziam parte do então Império Otomano – composto pelo atual Iraque, Síria, Israel, Jordânia, Líbano, pelos territórios palestinos e por parte do sul da Turquia –, governado pelos turcos desde 1519. Todos os imigrantes árabes, quando vieram para o Brasil, possuíam passaportes turcos, independente do seu país de origem. Foram então chamados de turcos durante muitos anos e, posteriormente, chamados de sírio-libaneses. “Pura preguiça de explicar se eram um ou outr o”, brincou.
Não é por acaso que a Liga Libanesa se localiza na Tijuca. Até 1920, os imigrantes árabes (em sua maioria comerciante) se estabeleceram na região da Rua da Alfândega, no centro do Rio. Depois começaram a se interiorizar. Na capital, seguiram o ritmo de crescimento da cidade. Então, nos anos 30, foram para a Tijuca e depois para Copacabana. Quando os árabes chegaram, o centro da cidade já era um núcleo de comércio popular, que eles acabaram abraçando. “Eles possuíam estratégias eficazes, como a venda a crédito, em grande escala”, relembrou Miguel. Há alguns anos, quem passasse pela região da Saara, local ecumênico de comércio popular, de varejo e atacado, só escutaria sotaques árabes.
Embora a comunidade libanesa no Brasil seja muito bem-sucedida nos dias de hoje, existe um estereótipo bastante negativo do árabe muçulmano divulgado pela imprensa, relacionando o Islã ao terrorismo e à barbárie. O primeiro erro é: árabe não quer dizer muçulmano. A maioria dos árabes que imigrou para terras brasileiras é cristão maronita. Os muçulmanos fazem parte de uma parcela de seguidores de Maomé, que podem ser árabes ou não.
“As pessoas pensam que todo árabe é o Osama e que nossa religião é explodir torres”, e pela primeira vez na entrevista, Miguel não está sorrindo. Ele fez referência aos atentados de 11 de setembro, nos Estados Unidos, afirmando que os árabes sofreram muito preconceito depois daquele dia e continuam sofrendo até hoje.
Os imigrantes que vieram para o Rio, têm características particulares. Na época, a cidade era a capital do Império e, mesmo depois, continuou sendo capital da República. Diferentemente de São Paulo, centro econômico do país, no Rio estava a representação diplomática de vários países e, por meio dela, os imigrantes puderam manter o diálogo com suas pátrias-mães, ficando antenados com o que ocorria em seus países.
Miguel é bastante branquinho e desfila com os olhos claros, o que causa certo espanto dos leigos, quanto à sua descendência. “Esteticamente, quando se diz que é árabe, as pessoas imaginam logo mulheres trajando burcas, dos pés a cabeça, e homens morenos, com bigodes e cara de terrorista”, reclamou. Segundo ele, há duas gerações, isso poderia até ser uma possibilidade, mas não atualmente, quando existe muita miscigenação de etnias, culturas e, consequentemente, de fenótipos estéticos.
Hoje, os próprios imigrantes já chegam globalizados. No Líbano atual, todos os jovens querem se parecer esteticamente com europeus, guiam-se pela moda europeia, querem carros italianos, ouvem música de toda parte do mundo e falam diversos idiomas. Porém, um dos costumes dos jovens, bem diferente do Brasil, é que lá, a diversão típica é sair para comer frutas e fumar narguilé. Independente do quão miscigenada está a cultura libanesa, a noção de comunidade ainda é muito forte. O nome e a família ainda guiam todas as relações, como foi desde o início da vinda desse grupo para o Brasil.
Fernanda Fonseca
