Em SP, tentativas de aliciamento acontecem até na porta de centro de acolhida.

Para centenas dos haitianos que decidiram migrar para o Brasil, o primeiro contato com São Paulo se dá no Terminal Rodoviário da Barra Funda, um dos principais da cidade. É lá que os ônibus pagos pelo governo do Acre terminam a viagem por terra iniciada em Rio Branco, uma rota longa que pode levar até quatro dias para ser concluída. Muitos dos que chegam mal falam português, mas, com auxílio de funcionários da estação local do Metrô, costumam seguir até o Glicério, bairro na região central onde fica a Missão Paz.

Trata-se do centro de acolhida de imigrantes mais antigo em funcionamento na capital, um espaço bem estruturado mantido por missionários scalabrianos, da Igreja Católica. A casa de acolhida é formada por salões amplos, quartos bem estruturados, banheiros limpos, refeitório e até uma sala de brinquedos para crianças. Na área administrativa, funciona o Centro de Estudos Migratórios, um estúdio de rádio para programas para comunidade e salas de atendimento psicológico e social. A estrutura é bastante superior à do abrigo improvisado em Rio Branco, onde os imigrantes foram acolhidos primeiramente ao entrar no Brasil, mas não é suficiente para afastar aliciadores.

“Sábado passado eu vi uma Kombi com um monte de haitianos entrando. Perguntei: ‘Com licença, só uma curiosidade, o senhor está fazendo o quê? Levando para trabalhar? Mas vai registrar?’. E ele me respondeu: ‘Nem pensar, estou ajudando eles”, conta o padre Paolo Parise, missionário italiano que coordena o espaço.

A capacidade padrão é de 110 pessoas, mas, desde abril, é comum que esse número seja ultrapassado – e os imigrantes por vezes acabam tendo de dormir em salões e não nos quartos. Este ano, o centro chegou a abrigar 220 pessoas em uma noite. A concentração de trabalhadores em busca de emprego em situação vulnerável atrai oportunistas.

“Temos que prestar atenção, não sei como podemos fiscalizar. Tem uns haitianos que voltaram e contaram que não receberam. Ficaram dois meses trabalhando na construção civil sem receber. Perguntei onde foram contratados. Responderam que na calçada na Sé, saindo do metrô”, diz o padre. “Fomos atrás, acionamos uma advogada, mas nem o endereço do escritório existe. Já falamos para eles não aceitarem propostas de trabalho na rua. Mas quando tem a necessidade…”, completa.

Direitos trabalhistas

Para Parise, o ideal seria que o Sistema Nacional de Empregos (Sine), criado justamente para minimizar as chances de violações de direitos e facilitar contratações, assumisse a intermediação entre empresas interessadas em estrangeiros em busca de emprego. “Conversamos com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mas eles mesmos falaram: ‘temos um sistema que não funciona, que está falido’, lamenta. A Repórter Brasil questionou o MTE sobre o Sine, por meio da assessoria de imprensa do órgão em Brasília, mas não obteve retorno.

Sem opções, a Missão Paz tem imposto condições para que os interessados em contratar contatem os trabalhadores abrigados. Os empresários são obrigados a assistir palestras de duas horas; os imigrantes, palestras de quatro horas. Os primeiros recebem orientações sobre os direitos trabalhistas que devem observar. Os segundos passam por um curso sobre questões culturais do Brasil, recebem informações sobre direitos assegurados na legislação e sobre como denunciar violações. Entre as orientações, estão inclusive dicas sobre como funciona uma folha de pagamento – não são raros os casos de imigrantes que, inconformados em ver descontos no valor total com os quais foram registrados, vão embora por acharem que estão sendo enganados.

Ao final das palestras, o empregador assina um termo ético falando que está ciente de suas obrigações e que vai respeitar a legislação trabalhista. Nem todos que participam ou ficam sabendo do processo efetuam contratações. Nas contas da direção, cerca de 1.700 empresas estiveram na Missão Paz só este ano, das quais 500 efetuaram as contratações. As demais desistiram.

Monitoramento

Se o Sistema Nacional de Empregos não funciona, em São Paulo, pelo menos, auditores da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE/SP) têm procurado monitorar o sistema desenvolvido pela Missão Paz e tomar medidas preventivas. O nome e CNPJ de todas as empresas que contrataram imigrantes foram encaminhados ao órgão. A partir de tais dados, o MTE realizou rodas de conversas com 98 empresas que contrataram estrangeiros. “Nosso papel é orientar, mas cabe ao MTE fiscalizar”, resume Parise.

Ele estima que dos estrangeiros acolhidos na Missão Paz, 80% são haitianos e 20% de outras nacionalidades, com destaque para nigerianos, camaroneses, angolanos e sírios. A presença de senegaleses ainda não é significativa. De todos, metade fica na cidade e metade segue para destinos como Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A estimativa bate com levantamento recentemente publicado pelo Observatório de Imigrações, que indica que a maioria dos estrangeiros registrados com carteira de trabalho está nas regiões Sul e Sudeste.

Entre os setores que mais têm contratado estão construção civil, restaurantes, limpeza, serviços em gerais, e, mais recentemente, mercados. Além da Missão Paz, mais dois centros têm recebido estrangeiros em São Paulo. O aumento do número de imigrantes motivou a criação nos últimos meses de mais dois abrigos na cidade, um pelo Governo Estadual e um pela Prefeitura. Pelo Governo Federal, a principal iniciativa recente foi a concessão de Bolsa Família para imigrantes em situação vulnerável.

Daniel Santini

(Repórter Brasil – 15/12/2014)