O dia-a-dia das mulheres muçulmanas no Brasil, postas em evidência pelo traje que as deveria ocultar.
O fim de uma tarde de fevereiro permitia que o céu de São Paulo ensaiasse alguns raios de sol no onipresente branco opaco acima dos prédios. Cristiana Ventura caminhava pela rua envergando um vestido longo e escuro, atraindo olhares de todos os lados. A paulistana de 30 anos participava do projeto de um amigo, o fotógrafo Richard Hodara, chamado Euxperimento. Durante 11 dias ela vestiu traje semelhante a um niqab, tradicional do islamismo wahhabista e que cobre todo o corpo da mulher com exceção da área ao redor dos olhos. A professora e estilista foi orientada a manter sua rotina: deu aulas, saiu com amigos e andou de metrô. Enquanto o fazia, um número espantoso de cabeças e pescoços estalavam feito ratoeiras para lançar um olhar intrigado em direção ao farfalhante pano preto.
“É estranho, de repente todo mundo olha pra você”, ela conta em entrevista a um portal de internet. Entre tirações de sarro e xingamentos, a moça disse ter tido dias em que não queria sair de casa por conta da pressão de ser observada o tempo todo. “Fui xingada por uma senhora. Ela disse que eu merecia uma chibatada, me chamou de biscate, entre outras coisas. Um rapaz gritou que eu iria explodir.”
O wahhabismo é um braço ortodoxo popular na Arábia Saudita, e o niqab não é tão comum em outras regiões onde o islamismo é predominante. A burqa, da mesma forma, é mais proveniente da cultura afegã do que propriamente da religião de um modo geral. Na verdade, o uso de algumas dessas vestes são preliminares ao nascimento do islã. O chador, que também deixa livre a região dos olhos, é tradicional do Irã mas data da Pérsia, tendo registros de uso no século XVIII durante o nascimento da dinastia Qajar. O que Cristiana fazia era só um experimento: depois de 11 dias, ela deixou para trás o véu que lhe atraía tanta atenção e voltou a ser só mais uma pessoa na cidade. As cerca de 3.731 mulheres da capital de São Paulo, por sua vez, ainda andavam pelas ruas desviando das hostilidades, das piadas e convivendo com o que é ser uma muçulmana na metade oeste do planeta.
Desde o começo, os estudiosos vêm tendo que contornar a falta de dados estatísticos confiáveis sobre o número de muçulmanos vivendo no Brasil. Nos extremos das estimativas disponíveis situam-se, por um lado, a oferecida pelas fontes oficiais como o censo do IBGE, que aponta pouco mais de 35 mil muçulmanos declarados, e por outro a contagem de porta-vozes das instituições islâmicas nacionais e internacionais, que se referem a mais de um milhão de fiéis no país.
A tarde já ensaiava um pôr do sol alaranjado quando tomei o metrô em direção à Mesquita da Luz, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. É lá que se instalou a Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, organização que representa os fiéis no estado. Naquela quinta-feira de março encontrei com Fernando Celino, assessor de comunicação da SBMRJ, em meio a uma grande quantidade de materiais para obra que ocupava o chão da mesquita, ainda em fase de finalização. Caixas de livros dividiam o espaço com os guarda-sapatos e característicos tapetes, mas no momento não havia ninguém ali. Antes de começarmos, ele pediu para que eu esperasse um momento: era hora de uma das cinco orações diárias tradicionais.
A SBMRJ nasceu em 1951 na Avenida Gomes Freire, importante via que corta o Centro da cidade até a Lapa. Um grupo de imigrantes árabes sunitas que buscava manter alguma identidade tratou de arrumar um lugar onde pudessem fazer suas orações juntos. Essa pequena sala não era divulgada, reservando-se um caráter quase familiar. Só em 1993 os descendentes dos fundadores, ainda jovens, trataram de expandir a sociedade e abrir as portas para outros fiéis. A mussala, como são chamados esses pequenos espaços de congregação, logo se provou pequena demais, tendo que ser revezada por grupos que, ora um ora outro, faziam suas orações por ali. Em meados de 2007 a sala foi deixada de lado e a sede da sociedade se transferiu para a recém construída Mesquita da Luz, onde agora eu me sentava com Fernando.
As respostas da assessoria da SBMRJ reforçam a impressão de que ainda existe uma forte barreira ideológica entre as duas metades do planeta, uma fonte constante de ruídos para os dois lados. Fernando diz que o ocidente tem distorcido, há muito tempo, alguns pontos fundamentais do islã. Do lado de cá, há um consenso de que nesses países as mulheres são inferiorizadas e submissas. Ele explica que segundo as escrituras homens e mulheres são iguais enquanto seres humanos, porém diferem em suas características — e é baseado nessas diferenças que se espera de homens e mulheres que tenham direitos e deveres distintos.
“Muito antes da mulher ocidental conquistar certos direitos, o islã já havia garantido isso a elas há 1436 anos, quando o Alcorão foi revelado. O direito ao voto, à herança, ao casamento, a ter prazer sexual e não ser usada como um objeto. Direito ao trabalho e estudo, que na verdade são obrigações de todo muçulmano. Não falo de conhecimento religioso, mas acadêmico. Principalmente aquela que será mãe e precisa ser uma pessoa sábia para educar os filhos.”
Uma cartilha de boas-maneiras ao se apresentar publicamente coloca a mulher muçulmana em certa evidência nas ruas de cidades onde o islã não é padrão, principalmente nos hábitos de vestuário. Escolha mais comum entre as fiéis, o hijab consiste fundamentalmente em um lenço sobre a cabeça — não existe uma regra quanto a cor, espessura ou formato, desde que cubra os cabelos. Segundo o Alcorão, Alá teria revelado ao profeta que a mulher crente deveria se proteger de olhares estranhos, forma de demonstrar ser muçulmana, casta, honrada e evitar assim qualquer tipo de moléstia. Mas o uso não é obrigatório, estando mais para uma conduta altamente recomendada. “A sensualidade das mulheres é explorada exaustivamente e nós acreditamos que a mulher é muito mais do que isso. Em casa, com seus familiares, ela pode ficar à vontade, usar os trajes que quiser. Na rua, esse é um acessório que a valoriza pelo seu interior, e não pelo físico”, explica.
Diante do mal-entendido, os trajes são frequentemente associados a uma imagem punitiva. Está descrito, porém, que tanto homens quanto mulheres tem um código a cumprir. O homem deve estar coberto pelo menos acima do umbigo e abaixo do joelho, preferencialmente usando calça e camisa. Já a mulher deve estar com todo o corpo coberto e os cabelos, mas não há trajes específicos além dessas instruções. “Muito se fala da burqa, que cobre todo o corpo e deixa apenas uma pequena tela para a visão. Acontece que essa é uma vestimenta específica do Afeganistão, muito mais relacionada ao aspecto cultural do país do que propriamente ao islã. As afegãs costumam fazer muito mais do que a religião pede. A escolha do traje é uma questão pessoal”, esclarece.
É interessante observar que as freiras católicas usam uma vestimenta muito semelhante sem serem relacionadas a uma imagem de submissão, sequer se pensa que são forçadas a usar os trajes. “Entende-se que é uma temência a Deus, e se é uma submissão, é somente a ele.” A formação cultural do ocidente remete à Europa, e esse historicamente importa alguns valores do velho continente para realidades mais miscigenadas, como as americanas. Isso pode explicar a maior aceitação de um conservadorismo religioso cristão, que de certa forma inaugurou as bases da sociedade daqui ao atropelar a religião dos nativos. Com o tempo, imigrantes, escravos e as novas populações nacionais ganharam espaço para cultivar seus próprios credos, resultando no caldeirão cultural em que se transformaram países como Brasil e Estados Unidos.
Nilópolis é o menor município do estado do Rio, com cerca de 20 mil quilômetros quadrados, a despeito de seus 157 mil habitantes. Numa segunda-feira, enquanto a cidade acordava e o caótico trânsito começava a formar as primeiras filas, o proprietário de um imóvel alugado entrou irritado por sua porta da frente, trazendo o jornal do dia na mão. Brandiu o papel enrolado, como se regesse uma orquestra insubordinada.
Pela terceira vez, Zahrah Carolina Bravo, empresária de 33 anos, teria que iniciar um processo de mudança. Ela já morou nos estados da Bahia e São Paulo, deixando ambos para trás depois que a vizinhança se tornou impraticável. Radicada no Rio de Janeiro, ela e seu marido recentemente tiveram um tiro disparado na janela de sua casa. O motivo: Zahrah, muçulmana de orientação sunita, nunca abriu mão de usar o hijab nas ruas do bairro.
Pouco tempo atrás ela concedeu entrevista a um jornal local — aquele nas mãos do proprietário — contando alguns episódios marcantes de sua estadia no Rio, que considera ser o lugar mais hostil dentre os que já conheceu. A gazeta foi para a banca no dia primeiro de fevereiro de 2015, um domingo. Na segunda-feira, o cafezinho na portaria do condomínio condenava a entrevista de Zahrah. “É um povo terrorista. Cortam cabeças, jogam bombas, e não querem receber nenhum troco. Têm que morrer. Tudo de ruim vem para o Brasil”, debatiam, furiosamente, os outros moradores. Zahrah se aproximava devagar. “Quando me viram, pararam de falar”, conta.
De acordo com os dados do IBGE, o número de muçulmanos no Brasil cresceu 29,1% entre os anos de 2000 e 2010. Seriam cerca de 35.167 pessoas vivendo sob o Alcorão num país majoritariamente cristão. Todos os estados da federação têm islâmicos declarados, e as cinco maiores concentrações ficam no eixo sudeste, com São Paulo em primeiro lugar, seguido do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
A maioria dos adeptos tem entre 15 e 40 anos, e esses são majoritariamente homens e urbanos, ou seja, a maior parte do islã brasileiro compõe a parcela produtora da população. Significa dizer que precisam de um emprego e que contornam, aos trancos, o olhar atravessado do mercado. Naquele ano (o último censo foi realizado em 2010), o Brasil tinha 190,7 milhões de habitantes.
Na nordestina Maceió, capital de Alagoas, não foi contabilizado um único islâmico no último estudo, enquanto só em São Paulo foram 14.778 fiéis anotados. Paralelamente, no estado de Alagoas foram contados os únicos indígenas que se declararam muçulmanos em todo o nordeste. Esses 4 homens, junto com 11 mulheres também indígenas anotadas em Minas Gerais, formam o menor grupo étnico dentro do islamismo brasileiro. A grande maioria é branca, seguida de pardos, negros, amarelos e índios.
O Brasil tem uma política teoricamente amistosa se comparado a outros países, principalmente europeus. O senado francês aprovou, em 2010, uma lei que proíbe uso de véus religiosos de corpo inteiro em qualquer espaço público do país. Ainda que tenha resguardado o direito da crença livre, o Brasil sente um choque cultural muito intenso ao ter que conviver com expressões de cultura estrangeira nas ruas de suas metrópoles.
“Depois da matéria, alguns conhecidos vieram me questionar. ‘Você é tão gente boa, não pode ser muçulmana’, diziam. Ouvi isso de um engenheiro civil, pessoa instruída. Ele ainda pediu que eu não o levasse a mal antes de me aconselhar a procurar uma igreja — católica — para ‘aceitar Jesus’.”
O marido de Zahrah conta que todos os seus 21 colegas de trabalho já o aconselharam a buscar um divórcio. É comum que descrevam um arquétipo da mulher muçulmana, desenhada como interesseira e articuladora. Todos são jornalistas membros da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Ele viu a esposa ser dispensada de seus empregos na TMKT e na operadora Claro por gerentes que sentenciavam não querer na loja uma funcionária que precisasse esconder o rosto ou interromper o expediente para rezar. De lá pra cá, foram várias as situações em que a moça foi discriminada em função do credo. Em 2010, já no Rio de Janeiro, um motorista de ônibus da linha 107 (Central x Urca) empurrou Zahrah para fora do veículo enquanto gritava “terrorista aqui não!”.
A tampa dessa histórica panela de pressão foi colocada no dia 12 de setembro de 2001, em Nova Iorque. No dia seguinte ao atentado no World Trade Center foi oficializada a culpa do povo muçulmano diante dos acontecimentos. A opinião pública caiu como um raio no link entre Al Qaeda e islamismo, e de lá pra cá isso não deu sinais de amansamento. “Hoje, até um traficante ou estuprador tem mais respeito à sua integridade física e moral do que um muçulmano. A sociedade nos condenou por sermos adeptos da nossa religião. Não se distingue islâmico de terrorista”, ela desabafa.
Em 2010, Zahrah ingressou no curso de Pedagogia na Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). Durante o trote universitário um de seus veteranos apagou um cigarro em seu hijab, que consequentemente pegou fogo. Ela carrega uma cicatriz no couro cabeludo onde os fios jamais voltaram a crescer. “Ao entrar na sala, era chamada de esposa do Bin Laden”, lembra. Em pouco tempo ela desistiu do curso.
Grande parte das implicâncias com as mulheres na rua nasce com um tom de brincadeira. Elas são chamadas de Jade, aludindo à novela O Clone. Na Europa e nos Estados Unidos o preconceito tem um contorno mais perigoso, chegando a discursos xenófobos e agressões físicas, em casos extremos evoluindo para atentados diretos, como aconteceu recentemente no jornal Charlie Hebdo. A SBMRJ, que fala oficialmente pelos fiéis no estado, condenou os ataques, esclarecendo que “matar alguém é um crime muito pior do que ofender a honra do profeta”. No Natal de 2013 o grupo Porta dos Fundos fez um especial de 20 minutos parodiando as tradições da cerimônia, e a SBMRJ, junto da igreja católica, entrou com uma ação judicial contra o grupo. “Engana-se quem pensa que nós temos apenas um profeta. Jesus também era um profeta, e a forma de retratação foi absolutamente desrespeitosa.”
A história se repete: cada vez que o noticiário traz algum choque de cultura com o cristianismo e seus desdobramentos, os muçulmanos brasileiros sentem o termômetro de hostilidade disparar. Em 2013, após uma reportagem em telejornal da Globo mostrar a vida de algumas mulheres no Líbano, Zahrah foi verbalmente agredida na rua. Quando a tevê falava sobre os homens-bomba usados pelo Hamas na Palestina, foi chamada de “mulher-bomba” na manhã seguinte. Em ambas as situações, foi o véu sobre sua cabeça que intrigou os passantes. “No trem, um homem gritou ‘é muçulmana! Mulher-bomba! Terrorista! Vou sair daqui!’ e então saiu correndo do vagão.”
A passagem da Avenida Martin Luther King é uma ruazinha estreita que liga a estação de Del Castilho à sempre engarrafada Avenida Dom Hélder Câmara, uma das principais vias da cidade. Saindo da estação de metrô no início da viela, um rapaz caminhava enquanto ouvia música em seus fones de ouvido. De pele muito clara e cabelos descoloridos, vestia uma camiseta do Chicago Bulls alguns números maior que o seu. Cruzou com uma mulher que vestia um hijab azul turquesa, o que chamou sua atenção, mas não o suficiente para que ele pausasse a música. A moça tinha o passo apertado e protegia um pequeno livro preto da fina chuva que caía. Analía Jalil corria para chegar ao shopping próximo da estação antes que a garoa engrossasse. Carioca de 39 anos, era uma muçulmana iniciante e ainda estava se acostumando com a nova carga de responsabilidade sobre sua imagem.
Havia uma movimentação incomum no bairro naquele dia. Marcelo Rossi, o padre, lançava sua mais nova autobiografia em uma livraria próxima. Filas quilométricas invadiam as calçadas do bairro em busca de um autógrafo. Os presentes diziam que aquilo estava assim desde cedo, quando Marcelo Rossi começou o lançamento. Enquanto os muitos que desejavam espiar o padre passavam apressados pela mesinha em que eu conversava com Analía na porta do shopping, contei dois ou três olhares de relance para o véu da moça, o que também não passou despercebido por ela. “Eu prefiro pensar que é curiosidade. No trem, no metrô, no ônibus, muita gente olha, pergunta, e parece insatisfeito com a resposta. A gente teme aquilo que não conhece”, disse.
Quando perguntada sobre eventuais intolerâncias por parte dos curiosos, ela se esquivou algumas vezes até contar que a pior resistência veio de casa. “Meus pais são evangélicos, do tipo bem fervoroso, e durante toda a minha adolescência me passaram os valores deles. Eu me considerava uma boa cristã quando fui a uma mesquita com uma amiga que insistiu muito. Saí de lá com minha fé restaurada, mas não exatamente no cristianismo. Tudo no islã fez sentido pra mim, e hoje tenho a sensação de sossego de que fiz a escolha certa”, contou. A moça pediu que seu nome real não fosse escrito, mas permitiu que fosse usado um fictício, que escolhemos ali mesmo, naquela mesa. “Analía. Vi num filme, uma vez. É um nome muito bonito.”
É fato que as religiões, mesmo sem querer, criam uma espécie de tradicionalismo em torno da família, o que sugere que uma geração será sempre influenciada em algum nível pela escolha espiritual dos pais. No islamismo ainda se soma uma alta carga de estereótipos, fruto da midiatização irresponsável em torno de eventos recentes que de alguma forma tinha uma ligação com os fiéis. Histórias como a de Analía nem sempre terminam com a protagonista escrevendo seu próprio roteiro.
“O islã é a religião que dá a cada qual o que lhe é de direito. Nós entendemos que Deus já definiu, através das revelações, os direitos e deveres de cada um. Não tem discussão. Países onde os direitos não são garantidos não só podem como devem buscá-los, mas tenho ressalvas quando se cria um movimento que pretende colocar os gêneros em total pé de igualdade”, diz Fernando Celino, da SBMRJ.
O islã se engaja nas complexidades sociais tratando as pautas de minorias no viés conservador que geralmente vem na bagagem das religiões. A efervescência ininterrupta desses temas pode gerar grandes desconfortos, principalmente nos que não se adequam a nenhuma vertente religiosa. O aborto é permitido em casos de estupro, até o quarto mês de gestação, ou se a gravidez representar risco de vida para a mulher. “A vida dela tem preferência. Essa mulher já tem uma família e uma história. Se não tiver jeito, é melhor que seja feito”, explica.
A união gay (civil ou meramente afetuosa) é fortemente desaconselhada, vista como um pecado frente à família. Mas Fernando esclarece que “isso não faz com que o fiel deixe de ser muçulmano, ele sabe que é um pecado e o comete, isso não o exclui do rito. Ele responderá por isso diante de Deus”.
Enquanto conversávamos naquela quinta-feira, Fernando me contou uma história para esclarecer as diferenças de interpretação dentro do islã, fonte de eterna discussão entre as partes. Certa vez, uma vertente proclamou que Maomé desaprovava a música. Essa certeza viria diante de um relato de que ao passar por um grupo que tocava, o profeta tapou os ouvidos. Uma segunda corrente afirmava que, ao fazer esse gesto, o profeta condenava aquele ritmo, especificamente — a música seria permitida desde que fosse religiosa. Por fim, um terceiro grupo de intérpretes defendia que, se desaprovasse a música, Maomé teria dito algo em um de seus discursos, ao invés de esperar que todos adivinhassem seus pensamentos. Ao levar as mãos à cabeça e cobrir os ouvidos, o profeta expressava sua simples vontade de não ouvir àquele som. Três grandes metáforas.
Nícollas Witzel
Making Of
Durante uma semana, a estilista Cristiana Ventura, de 30 anos, chamou a atenção por onde passava – mas não pelo cabelo loiro platinado ou pelas roupas e acessórios chamativos que costuma usar. Nos últimos sete dias, ela andou por São Paulo toda coberta por uma roupa que lembra um traje usado por muçulmanas e só deixa à mostra os pés e os olhos.
A experiência é parte do projeto de um amigo dela, o fotógrafo Richard Hodara, chamado “Euxperimento”. “Quis criar algo que faça as pessoas pararem para pensar no dia a dia, que mostrasse os preconceitos e lide com temas polêmicos”, diz ele. No primeiro “desafio”, um amigo de Richard saiu pela cidade vestido inteiramente de cor-de-rosa. No segundo, uma jovem passou dez dias ajudando as pessoas.
Cristiana resolveu sentir na pele o que é andar coberta de preto por São Paulo. “Queria algo que mexesse comigo e com relação com as outras pessoas, me colocar no lugar do outro e fazer tudo o que faço normalmente, mas com essa ‘carcaça’”, explica ela.
A “burca” improvisada foi encomendada a uma costureira, já que eles não encontraram nada pronto. Diferentemente da burca verdadeira, traje tadicional das tribos pashtuns no Afeganistão, que tampa inclusive os olhos por meio de uma rede, a vestimenta de Cristiana deixa parte do rosto descoberta — algo semelhante ao traje conhecido como niqab.
A experiência durou do dia 26 até esta quinta-feira (5). Cristiana, que é professora e dona de uma marca de roupas, seguiu sua rotina normal: deu aulas, jogou tênis, foi ao curso de desenho, dirigiu, andou de metrô e saiu com os amigos, sempre com a roupa preta e o véu. A experiência foi relatada no Facebook e no Instagram do projeto.
A reação das pessoas nos lugares públicos não foi nada discreta. “Todo mundo olha. É bem desconfortável”, conta. “Vai explodir!”, gritou um rapaz em uma estação de metrô. Uma senhora a chamou de “biscate” e disse que ela iria levar “umas chibatadas”. Uma moradora de rua desejou “Namastê” (cumprimento comumente usado na Índia) e um homem surpreendeu-a com uma cantada: “Você é maravilhosa”, disse.
Uma volta no centro da cidade ao lado de Cristiana comprova o que ela diz. (Veja o vídeo no topo da página.) Os passantes viram o pescoço, comentam entre si e, em alguns casos, falam diretamente com ela, como um rapaz que disse “Essa é assassina” e outro que gritou “Olha o Estado Islâmico!”.
Tanta atenção “suga a energia”, diz Cristiana. “Nos dois primeiros dias cheguei em casa muito cansada. Nos dias seguintes não conseguia acordar, enrolava para sair de casa porque sabia que ia ficar todo mundo olhando”, lembra.
O calor é outro problema. No início, ela colocava a vestimenta por cima das roupas, como fazem as muçulmanas. “Eu ficava encharcada. Aí comecei a usar como um vestido”, conta.
Outra questão à qual ela teve que se acostumar foi ao visual monotemático. “No primeiro dia, pensei: ‘Que bom, não vou precisar escolher o look’. No segundo dia eu já estava pirando”, diz. Depois de algum tempo Cristiana tirou do armário uma bolsa de marca e vários anéis para usar como acessórios. “Aí entendi por que as muçulmanas costumam usar anéis imensos de brilhantes, salto, bolsa de marca. É o que você tem para se diferenciar”, afirma.
A estilista, que é de família católica, hoje se define como “espiritualista”, mas não segue nenhuma religião. Ela ficou com receio da reação dos muçulmanos ao seu projeto, mas diz que não teve nenhum problema. “Tenho vários amigos muçulmanos e eles estão curtindo. Conheci uma africana muçulmana na rua e ela também adorou. Ela me contou a história dela, disse que sofre muito preconceito”, conta.
O fim da experiência coincidiu com uma viagem de férias de Cristiana para o Rio de Janeiro. “Aí vou terminar o projeto. Não dá para sair de ‘burca’ no calor do Rio, aí já seria demais”, disse, rindo.
Flávia Mantovani