Histórias de famílias judias que se confundem com a história recente do Rio de Janeiro.
Entre as ondas de imigrantes das primeiras décadas do século XX, intensificadas com a fuga do horror nazista a partir dos anos 30, até a comunidade atual de mais de 34 mil judeus morando no Rio (dados do IBGE), há um sem-número de trajetórias que valem ser contadas.
São histórias de pessoas que, para escapar da perseguição em seus países de origem, principalmente na Europa, buscaram abrigo na ensolarada metrópole carioca. Aqui formaram famílias, criaram raízes e se tornaram parte essencial da cidade que, em 2015, está completando 450 anos.
— As imigrações para o Rio começam a partir da abertura dos portos, em 1808, mas as grandes ondas de chegada de judeus para a cidade ocorreram nos primeiros vinte anos do século XX e intensificaram com a efervescência da guerra —afirma Paulo Maltz, presidente da Federação Israelita do Rio (Fierj).
— As imigrações judaicas estão muito ligadas à perseguição antissemita. Logo nos primeiros anos do século passado, ocorreram diversas vindas de judeus do Líbano, por exemplo — afirma o historiador Elias Monteiro, especialista em imigração de judeus no Rio pela Unesp.
Eva: “A rua era praticamente uma ONU”
Conhecidos em suas cidades natais, apaixonados no Rio de Janeiro. Esta é a história dos bisavós de Bruna Kac Diamond, hoje com 14 anos. A família tanto pelo lado materno quanto pelo paterno vieram para o Rio e , apesar de já se conhecerem antes, acabaram se envolvendo no Rio. Como toda regra possui uma exceção, dos oitos bisavós, somente um não conhecia os outros anteriormente. Mas nada que dificultasse uma aproximação no Brasil.
Aliás, quase concomitantemente, estas diferentes famílias passaram a morar nas mesmas regiões. O Centro da cidade e a Tijuca se tornaram palcos de encontros que geraram filhos, netos e bisnetos. Foi na praça Onze, por exemplo, que Chico e Rosa, judeus da Ucrânia que buscaram refúgio no Brasil devido às perseguições e até tiveram seus nomes abrasileirados, se conhecerem.
— Minha mãe era muito bonita. Meu pai já era um pouco mais feinho mas tinha uma lábia muito boa. Ele se encantou por ela. Lembro da minha infância numa rua próxima dali. Na rua Aníbal Benévolo, era praticamente uma ONU, tinha judeu, sírio-libanês, português, cigano… E a rua era muito simples. De terra batida com porcos e galinhas caminhando — lembra Eva, filha de Chico e Rosa.
Já a família de Arthur, marido de Eva e exceção neste encontros pelas ruas do Centro, chegou primeiro em São Paulo. Depois de algumas vindas para reuniões de jovens judeus no Rio, Arthur acabou se apaixonando por Eva. Após algumas insistências, conseguiu convencê-la de morarem juntos.
Como todos os oito bisavôs de Bruna, o pai de Eva somente pode vir para o Brasil após comprovar que já tinha um parente morando aqui.
— Ele fugiu da perseguição. O antissemitismo era muito grande. Muitos pensam que ele cresceu somente momentos antes da Segunda Guerra. Não é verdade. Desde muito antes os judeus já sofriam diversos tipos de sanções em variados lugares — conta Eva.
O casamento de Arthur com Eva fez com que ela mudasse de bairro. Em Copacabana, onde até hoje mora, ela vê a vinda da família para o Brasil como um renascimento.
— Nossas famílias renasceram no Brasil. Quando a gente chegou aqui, encontramos um monte de gente risonha, bonita. Saímos de um lugar cinza e triste para um lugar feliz e colorido. Mesmo nos nove anos que moramos em Copacabana e faltava água, a gente estava bem. Estávamos em um lugar que respeitava quem somos.
Sarina: “Na Tijuca, ele se sentia em casa”
As migrações de judeus para o Rio ocorreram dos quatro cantos do mundo. Entre eles estão os sefaradistas, descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha mas que desde a Guerra da Reconquista, terminada no século XV, passaram a se deslocar para diversas regiões após serem expulsos da península Ibérica.
O Líbano se tornou um dos lugares que recebeu essas populações e de onde Tofic Nigri, judeu nascido em 1900, saiu para tentar a vida na América. Após terminar seus estudos em Beirute, Tofic decidiu seguir para o Texas, nos Estados Unidos, em 1919, onde um irmão já residia. Logo depois, motivado por um outro irmão, decidiu ir para Saltillo, no México, onde foi iniciado na Maçonaria. Mas foi em 1921, em uma decisão junto com seus outros irmãos, que a vida de Tofic mudou. A família Nigri desembarcou no Rio e abriu uma pequena loja de tecidos na rua da Alfândega.
— Devido à perseguição que os judeus tinham nos países árabes, eles não podiam ter um comércio, por exemplo. Quando eles chegam aqui e veem a possibilidade de crescer comercialmente, eles passam a empreender. Acho até que eles vieram para o Brasil devido às imigrações anteriores. Eles viam o país como amigo — conta Sarina Nigri, neta de Tofic.
Apesar de trabalhar no Centro, a paixão de Tofic era pelo bairro da Tijuca. Em 1922, casou com Sarina, por tradição a neta ganhou o mesmo nome, e teve oito filhos.
— Meu avô fazia questão que todos morassem na Tijuca até ele morrer. Na Tijuca, ele se sentia em casa — conta Sarina.
O relacionamento com a Tijuca tinha um motivo. Quando chegou no Rio, sem muitas perspectivas, foi na rua Conde de Bonfim que recebeu acolhida de outros imigrantes. Prática que foi reproduzida por Tofic durante os anos de guerra e com a — grande — chegada de imigrantes no Rio.
— Era uma solidariedade muito grande. Meu avô lembrava que a vida no Líbano era muito difícil, com muita perseguição. Aqui no Rio, ele achava tudo muito bom. Foi aqui que pode progredir.
Quando os filhos e o comércio passaram a crescer, Tofic saiu da sociedade com os irmãos e montou uma loja em parceria com os filhos. Porém, foi dentro da comunidade judaica que ganhou destaque. Participando de ações sociais para ajudar judeus no Rio, Tofic chegou a ganhar o título de Cidadão Carioca devido suas atividades.
— Ele era muito atuante. Alguns conhecidos dele já me contaram que ele foi uma liderança junto com outros judeus no pedido ao embaixador Oswaldo Aranha para que o Brasil se posicionasse a favor da criação do estado de Israel — lembra Sarina
Israel: “Vir ao Brasil foi a sorte do meu pai”
Israel Blajberg já tinha passado dos 50 anos quando seu pai morreu. Além do luto, o judeu, que configura como primeira geração carioca da família, teve que lidar com um desconforto a mais: sabia pouco sobre a trajetória de seus pais. A angústia se transformou em uma extensa pesquisa que acabou gerando um outro inconveniente: o do espaço. Em um outro problema familiar, veio a solução. A filha de Israel preferiu não morar no apartamento comprado pelo pai — um andar abaixo de onde morava. O espaço vazio passou a ser usado para armazenar a pesquisa que narra não somente a saga de sua família mas também a de outros membros da comunidade judaica que conviveram com seus antepassados.
— Meu pai morreu e fiquei pensando: sou a primeira geração da família no Brasil, não sei a minha própria história. É uma coisa que os filhos nunca pensam até os pais morrerem. A minha sorte é que meus filhos gravaram umas oito fitas, em uma brincadeira que fizeram, perguntando ao avô sobre sua trajetória. Foi a partir dali que comecei a pesquisar — conta Israel Blajberg.
A trajetória da família também teve seus momentos de sorte. Abram, pai de Israel, era de uma família de doze irmãos e seu pai era comerciante na Polônia. Toda a negociação de seus produtos tinha como base a cotação do dólar e Abram não se sentia interessado por este mundo. Com 18 anos, o polonês da cidade de Ostrowiec agarrou a possibilidade que um amigo lhe ofereceu de vir para o Brasil. Como o visto era caro, pediu ajuda ao seu pai.
— Vir para o Brasil foi a maior sorte do meu pai. Ele foi o que mais deu certo entre os 12 filhos do meu avô. Os dois que eram casados não puderam sair da Polônia e acabaram morrendo na câmara de gás. Um foi para San Diego. Quatro foram para a Palestina e viveram suas vidas lá. Os outros morreram na infância — relata Israel.
No Rio, Abram passou a viver em diferentes lugares, desde pensionatos na ilha das Flores até sobrados no Centro.
— Ele fazia o que todo imigrante recém-chegado fazia: vendia produto de porta em porta. Era muito desgastante. Comia somente um pão e uma banana muitas vezes. O que Abram não esperava é que semanas depois de sua vinda para o Brasil, a crise de 1929 estourasse e a economia de sua família, baseada no dólar, fosse ameaçada.
A história de sua mãe, Perla, também é envolvida com toques de sorte mas também com destinos tristes. A família de Perla morava na cidade de Ilza e parte de sua família conseguiu sair de lá semanas antes da chegada de tropas nazistas.
— Ela já vivia o clima de perseguição na cidade. Quando veio para o Rio, os meus pais até já se conheciam antes mas o contato era pouco. No início, meu pai não tinha demonstrado muito interesse nela. Quando ela chegou, ele tinha se mudado para Uberlândia.
Foi a ida de um conhecido em comum, que fez Abram tentar a sorte — e Perla — no Rio.
— Ele chegou falando: “Volta para o Rio, Abram. Seu destino está lá”.
E estava. Em 1944, se casaram mas sem festas. O contexto mundial não era propício para isso. No Rio, frequentavam ruas do Centro e, quando tiveram Israel, passaram a explorar novas regiões desconhecidas por eles da cidade.
— Meus pais gostavam muito do Brasil. Agradeciam muito por estarem aqui. Íamos ao Campo de Santana e eu corria atrás das cotias. Era uma diversão. Lembro de uma vez que nos levaram até o Recreio dos Bandeirantes, e parecia outro mundo. O Rio se tornou a casa deles e a nova casa de nossa família.
Laks: “Eu renasci nesta cidade”
Filho de um gerente de frigorífico e de uma “do lar”, Aleksander Laks tinha apenas 15 anos quando as tropas nazistas invadiram a cidade de Lôdz, na Polônia, em 1941, e o levaram para o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau junto com seus pais. Antes, a morte ja tinha se aproximado dele.
Com sua cidade cercada, no dia 1º de maio de 1940, todos os alunos da escola em que estudava foram convocados para comparecerem na instituição. No mesmo dia, foram levados para o campo de extermínio de Chelmno. Na ilegalidade dentro de sua própria terra, começou a trabalhar como metalúrgico. A vida difícil se tornava pior com uma tentação diária: as tropas nazistas ofereciam comida para quem quisesse se “voluntariar” para trabalhar em campos na Rússia. A desconfiança sobre a proposta era grande mas, um dia, a fome foi maior e a família de Laks aceitou a proposta.
No caminho, pela janela da locomotiva, Laks viu um complexo de chaminé e um céu vermelho sangue. Acreditou que naquela região poderia ter melhor serventia devido sua experiência com o manejo de metais. A ilusão terminara no desembarque.
— Quando abriram a porta, começaram a gritar: “Fora, fora. Mulheres e crianças para um lado, homens para o outro”. Vi minha mãe sendo levada e foi a última vez que a vi. Entendi depois que ela tinha sido levada para a câmera de gás.
O jovem de 15 anos estava no mais famoso campo de extermínio do regime nazista. Ao perguntar o que estava acontecendo, a resposta que recebeu foi reveladora: “Cala a boca, você está em Auschwitz. A única saída é pela chaminé”.
Em Auschwitz, Laks relembra dias de terror e inúmeras mortes. Após meses no local, e muitos quilos a menos e com uma saúde debilitada, o jovem e seu pai foram chamados para trabalharem na fronteira russa. No início, em janeiro de 1945, eram 800 judeus caminhando em áreas gélidas. Quem saísse da formação era fuzilado. Quem ameaçava sentar ou deitar, também.
— Chegou um momento que meu pai falou que não aguentava mais andar. Conseguimos arrastá-lo até chegarmos em uma estação de trem. Meu pai sempre falava que eu deveria viver para poder contar essa história. Alertar sobre estes terrores para que nunca mais se repitam — relembra Laks.
O trem levou para outro campo. Logo quando chegou, o pai de Laks pegou disenteria e sua morte foi decretada.
— Não se podia chegar perto do cadáver, pedi para me ajudarem a tirar meu pai da sujeira. Ali, vi que meu pai se juntou aos 6 milhões de judeus que foram exterminados. Meu pai foi morto de forma inimaginável. Tinha 45 anos. Ele tinha tudo para viver mas não pode porque era judeu. E eu estava só.
A saga de Laks não havia terminado. Levado para outro campo, o trem em que estava foi interceptado por tropas francesas, no final da guerra, mas não tinha forças para acompanhá-las. Acabou sendo acolhido em uma escola onde conseguiu se recompor. Com 17 anos, 28 quilos e um dente solto, Laks ouviu os últimos bombardeios do conflito. Sem ser prisioneiro dos nazistas, estava livre mas não tinha família, nem bens e nem pátria. Virou garoto de rua até ser atendido em um campo de refugiados. Em uma das conversas no local, lembrou que o pai havia mencionado uma irmã que tinha no Rio de Janeiro.
— Ela veio em 1930, em busca de uma vida melhor. E foi a melhor vida dentre os nossos.
Porém, o sonho de vir para o Brasil teve um contratempo.
— Ouvi de um oficial que ele tinha ordens para não autorizar a ida de judeus para o Brasil. Ele indicou que eu deveria ir para a Igreja, me converter e voltar. Neguei. Depois de tudo que eu tinha vivido, não ia negar o que era. Após dois anos na Alemanha, Laks conseguiu ir para os Estados Unidos onde escreveu uma carta para os seus tios no Brasil. Logo depois, uma passagem, com visto de turista, foi envida para o jovem vir para o Rio.
— E estou aqui desde então. Foi amor a primeira vista ao Rio de Janeiro, ao povo do Rio. Eu renasci nesta cidade. Aqui, as pessoas olham e cumprimentam. Isso me cativou muito
No Rio, Laks constituiu família, teve dois filhos e trabalhou anos como comerciante. Orgulha-se de ser um dos primeiros a vender a crédito na cidade. Além disso, Laks se transformou em um símbolo de sua comunidade. Frequentemente dá palestras em colégios, judaicos ou não, obedecendo às orientações do pai. Uma dessas palestras foi na escola onde Bruna, que montou o livro com a trajetória de sua família, estuda.
Liessin: “É um trabalho de preservação de cultura”
A busca do conhecimento sobre sua própria família é algo que se aprende na escola para a comunidade judaica. Os jovens, perto dos 15 anos, são incentivados a produzirem livros que narram as trajetórias de seus parentes desde a chegada no Rio até os dias atuais. Para valorizar mais esta busca, algumas escolas criam interdisciplinaridade para a atividade que geram volumosos resultados.
— É um trabalho de preservação de cultura, de valorizar a tradição e o legado da comunidade judaica. Existes muitos tipos de herança que uma família pode passar para a próxima geração. Nossa ideia é mostrar que nenhuma delas vale mais do que a nossa cultura — conta Anita Goldebrg, coordenadora do colégio Liessin e responsável pelo projeto.
As alunas Clara Svartz, Bruna Kac, Isabela Bernstein, Tatiana Dorin, Eduarda Gopp e Fernanda Gerchenzan terminaram seus livros no ano passado. O trabalho árduo contou com fotos antigas, entrevistas com parentes e até documentos originais, como passaporte e identidade. O resultado trouxe curiosidades que despertaram o interesse das famílias.
— Descobri que meu sobrenome não é verdadeiro. Ele foi adotado pela minha família. O sobrenome verdadeiro na época da Polônia era Brounstain, mas, como eles recrutavam sempre o primogênito da família, e minha família não queria que o deles fosse para guerra, eles mudaram o nome para o de uma outra família que já tinha mandado, a Gerchenzan. E ficou — lembra Fernanda.
As histórias despertam o interesse dos jovens e, apesar de ser algo que toda geração faça, elas contam que há sempre uma novidade.
— Você vê livros de pessoas que fizeram antes, estuda mas sempre tem uma coisa nova. Eu descobri coisas que nunca imaginei. Acho que isso é muito importante para preservar a cultura — afirma Eduarda Gopp, de 13 anos.
Raphael Kapa
(Globo – 18/04/2015)