A trajetória de uma colônia que impôs sua marca no comércio e na cultura do Rio de Janeiro.
Guerras civis, crise econômica e intolerância religiosa fizeram sírios e libaneses trocarem sua vida no Oriente Médio pelas Américas, uma região que pouco conheciam, mas onde esperavam contar com oportunidades. Boa parte parou no Brasil e se dispersou por todo o país como caixeiros-viajantes, em um intercâmbio interminável de mercadorias das grandes cidades para o remoto interior.
— Esta atividade foi exercida por portugueses, judeus e armênios, mas foi popularizada e intensificada com os imigrantes de origem árabe — conta Samira Adel Osman, professora de História da Ásia da Unifesp e autora do livro “Imigração Árabe no Brasil: histórias de vida de libaneses muçulmanos e cristãos” (editora Xamã). — Eles tinham o papel de transportar mercadorias, informações e notícias. Por isso, foram fundamentais para a integração do território e o desbravamento do país.
Capital federal até 1960 e uma das cidades mais populosas do país, o Rio está entre as cidades com maior presença árabe. Aqui, consolidaram o comércio principalmente no Centro. A atividade econômica despertou desconfiança e, em certos casos, hostilidade. Segundo Samira, muitos artigos de jornais da época associaram os imigrantes a negócios desleais. De fato, a adaptação dos recém-chegados foi inicialmente difícil, segundo o historiador Roberto Khatlab. Aos poucos, porém, sírios e libaneses conseguiram marcar seu próprio espaço na identidade nacional.
— Os imigrantes tiveram um choque cultural ao chegarem no Brasil, um país diferente geograficamente, com idioma diferente e costumes diferentes — destaca Khatlab, autor de vários livros sobre a imigração libanesa no Brasil e América latina, como “Mahjar, Saga Libanesa no Brasil” (editora Mokhtarat). – Mas houve abertura para sua adaptação e, ao mesmo tempo, as famílias conseguiram conservar suas tradições culturais e religiosas por gerações.
A seguir, O GLOBO conta quatro histórias sobre personagens que chegaram ao Rio em diferentes épocas e conseguiram prosperar, conjugando o passado árabe com os jeitinhos tão típicos da cultura brasileira.
Maurília: “As famílias cresceram aqui”
Quando era jovem, Maurília Gabriel Koury acostumou-se em ver navios trazendo imigrantes na Praça Mauá. Os seus próprios pais chegaram assim ao Rio.
Maria Zidde, a mãe, veio primeiro, quando tinha apenas 2 anos. Sua família deixou às pressas a aldeia síria de Soda, no Sudoeste da Síria, em 1915. Fugiam de soldados do Império Turco-Otomano, que invadiram o país durante a Primeira Guerra Mundial. Gabriel Koury, o pai, veio depois do conflito, já na década de 1920. Contrariado, teve de deixar os estudos, porque sua tia não poderia viajar sozinha para o Brasil.
— Meu pai se lamentava, dizia que estava indo muito bem nos estudos. Ele queria fazer Medicina — lembra Maurília, de 74 anos.
Apesar de serem da mesma aldeia, Maria e Gabriel só se conheceram no Brasil. Casaram-se em 1935 e, no ano seguinte, nasceu o primeiro dos três filhos, Faouri, já falecido. Coube ao filho do meio, Jorge Eduardo, realizar o sonho do pai, formando-se em Medicina. Hoje aposentado, mora hoje na Tijuca com Maurília, a caçula, professora também aposentada.
Até inaugurar sua loja de tecidos na Rua São Francisco Xavier, no Maracanã, Gabriel levava seus tecidos de porta em porta às senhorinhas da Zona Sul.
— Meu pai teve uma vida difícil. Era um bom comerciante, levava sua malinha pela cidade, mas teve que se virar, inclusive para aprender a falar português — ressalta Marília Koury. — Quem saiu da Síria só sabia que viria para um país novo, onde teria oportunidades. Enquanto prosperavam, chamavam mais parentes. As famílias cresceram aqui.
A família testemunhou o aumento da colônia árabe e as reviravoltas do Rio — a rivalidade política entre o trabalhista Getúlio Vargas e o udenista Eduardo Gomes, a demolição da grande favela do Esqueleto (onde hoje é a Uerj, ao lado da antiga casa da família) e, claro, a construção daquele que seria o maior estádio do mundo.
— Para o meu pai, um flamenguista fanático, este foi o maior marco da construção da cidade — conta Jorge Eduardo, de 77 anos. — Os jipes da Segunda Guerra Mundial protegiam a imensa região vazia onde o Maracanã seria construído. Os meninos da vizinhança costumavam brincar em cima deles.
Gabriel morreu em 2010, uma semana antes de completar 104 anos, sem jamais ter voltado para a Síria. Queixava-se das rixas entre os países da região e da falta de netos.
Jorge Eduardo não conheceu a terra dos pais. Maurília foi apenas duas vezes. No entanto, um século depois dos Koury chegarem ao Rio, Soda ainda é motivo de preocupação.
— Temos muitos primos naquela região, que está ameaçada pelo Estado Islâmico — explica Maurília. — Se os terroristas passarem pelo Porto de Tartus, que é próximo dali, podem chegar à aldeia. E nossos parentes, que são cristãos, para onde eles podem ir? A família é grande e é caro vir para o Brasil, mas, se a crise se agravar, este será o único jeito.
Barakat: “Passei por situações constrangedoras”
Se não fosse a vesícula, talvez Roger Barakat, de 52 anos, nunca conheceria o Brasil. O padre sentiu-se mal e precisou extrair o órgão em 1999, em Trípoli, a 70 quilômetros de Beirute, a capital libanesa. Durante sua recuperação, diz que sonhou com nosso país. Dois anos depois, entrou em um avião com destino ao Rio.
Era mais do que uma visita. Barakat comandaria a missão libanesa maronita no Brasil. A Igreja Maronita é a maior Igreja Católica do Oriente, e também reconhece o Papa como autoridade máxima.
O padre confessa que aceitou a função antes de saber qualquer coisa sobre seu destino. O idioma foi aprendido às pressas, quando já havia aterrissado aqui.
— Sei falar um pouco de francês, árabe e aramaico. Mas, até chegar aqui, nada de português — admite. — Passei por situações constrangedoras, já que comecei a rezar missas na Igreja Nossa Senhora do Líbano, na Tijuca, logo nas primeiras semanas. Aprendi com uma professora, filha de libaneses, a falar “bom dia”, “boa tarde”, “como está?”. Via um canal francês com legendas em português. Precisei de três meses para me acostumar.
Agora, Barakat dá o troco — a missa dominical em árabe é concorrida, frequentada inclusive por quem não entende a língua. Montou um coral com cerca de 20 brasileiros, que cantam músicas no idioma do Oriente Médio.
Segundo o líder maronita, 3 mil pessoas frequentam a igreja tijucana. Além dos habituês, há cada vez mais curiosos, gente que já foi espírita, evangélico, entre outras crenças. Para ele, a culpa deste troca-troca não é do povo, e sim da falta de carisma dos padres.
— Fiquei impressionado com a ignorância espiritual do carioca — admite. — Todos buscam uma religião fácil, em que não precisam assumir compromissos, passaram por outras crenças antes de chegar aqui.
A cerimônia que mais chama atenção dos novatos é o casamento. No ritual maronita, o noivo espera a noiva na porta da igreja. Ambos usam uma coroa durante toda a oração. Eles são acompanhados por somente um casal de padrinhos. As alianças são postas nos dedos pelo próprio padre. Barakat, no entanto, confessa a dificuldade para entender a diferença entre a vida conjugal libanesa e a brasileira.
— No Líbano, a mulher é bem dengosa. Depois de casar, às vezes deixa o emprego para cuidar da casa. Ela faz tudo, e o homem a ajuda, sem faxineira ou empregada — conta.
Nem tudo se aprende em 14 anos de Brasil.
Me disseram: “No Rio, vocês têm futebol e samba”
Nascidos no Brasil, Paulo César, 62 anos, e Flávia Arbes, 59, têm uma trajetória tipicamente síria, o país de seus pais. O pai de Flávia, Wadih Haddad, veio ao Brasil no início dos anos 1930, com 5 anos, mas voltou ao Oriente Médio para cumprir uma tradição — casar com uma prima que não conhecia. O costume foi rompido quando ele se apaixonou por outra prima, provocando uma guerra familiar — não só pelos corações partidos, como pela ansiedade das moças em deixar logo a nação.
— As pretendentes ficaram inimigas — diverte-se a brasileira Flávia Arbes, filha de Wadih. — Todos os casamentos eram arranjados, os homens não conheciam as noivas. Os problemas conjugais só apareciam depois das cerimônias. Os brasileiros brincavam que os imigrantes casavam com primos para não ter que dividir herança. Na verdade, é porque as famílias se sentiam protegidas, quando todos os assuntos ficavam dentro delas.
Paulo também é filho de dois primos sírios. Seu pai, Jorge Arbes, quando chegou ao Rio, montou logo uma lojinha de roupas na Rua da Alfândega, no Centro. Tocou o negócio por décadas, mas demorou para convencer Paulo a acompanhá-lo. O “argumento” final foi o Plano Cruzado, em 1986, que fez Paulo trocar o emprego na Comlurb pelos negócios no Saara.
A companheira de balcão de Paulo é Flávia, com quem se casou em 1978 na cidade mineira de Santos Dumont, a cerca de 200 quilômetros de Belo Horizonte. O matrimônio foi à moda árabe, com direito a noivos usando coroas e tendo as alianças colocadas pelo próprio padre.
— A cidade ficou em êxtase, as pessoas nunca viram nada parecido — lembra Flávia. — Eu ainda sou de uma época em que se casava para sempre. Estou com meu marido há 37 anos. Não sei se isso tem a ver com a raça, a descendência. Mas hoje parece que as moças têm menos disposição para tolerar algumas coisas. Qualquer coisa, pegam a bolsa e vão embora.
Alguns costumes da família, porém, não resistiram à passagem do tempo.
— Nossos filhos não aprenderam árabe — lamenta Paulo. — Gostaria que aprendessem, mas não dá tempo. Hoje a vida é muito corrida.
— Agora tenho outras prioridades — confirma Laila Arbes, de 27 anos, a caçula dos três filhos. — Só falo algumas palavras avulsas. Por exemplo, quando estamos em frente a um comerciante, discutimos os preços em árabe. Falamos expressões como “tá caro”.
Os Arbes acompanham preocupados os acontecimentos da Síria, arrasada com uma guerra civil que já se arrasta há quatro anos. Em setembro de 2011, Paulo e Flávia tentaram fazer sua quarta viagem à terra dos pais, onde ainda tem parentes. A eclosão da Primeira Árabe os obrigou a desviar de rota e encontrar parte da família em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Depois da visita, seus tios e sobrinhos voltaram para Damasco, a capital síria.
— Eles evitam comentar o que acontece na Síria. Todo o sistema de comunicação é monitorado — conta Paulo. — A cidade onde fica a casa de campo deles foi bombardeada. Eles ficam no centro de Damasco, que é intensamente protegido pelo Exército. São partidários do regime (do presidente Bashar) al-Assad. Não porque concordam com o que ele faz, mas pela proteção que oferece.
Flávia insiste para que os parentes arrumem as malas e reconstruam a vida longe dos bombardeios. Por enquanto, o chamado tem sido em vão.
— Sempre os convidamos para morar aqui, mas eles não querem sair da Síria de jeito nenhum — ressalta. — Me disseram: “No Rio, vocês têm futebol e samba. Nós temos guerra”. Quando vi um canhão passando pela rua, fiquei enlouquecida. Mas é isso que eles conhecem.
Antônio: “O brasileiro não dá valor ao que tem”
O libanês Antônio Saade fez 15 anos em alto-mar. Deixava o Líbano arrasado após a Segunda Guerra Mundial para se encontrar com o pai, Hannah Saade, que vendia tecidos em uma loja na Praça da República, no Centro do Rio.
— Era 1955 e a guerra já havia acabado há dez anos, mas o Líbano ainda não havia se recuperado — recorda-se o comerciante aposentado. — Passou tudo quanto é exército pelo país. Algumas cidades próximas à minha aldeia, a 100 quilômetros de Beirute, foram bombardeadas.
Três dos seis irmãos de Antônio também deixaram o país. A comunidade libanesa já era grande no Rio e fez a família se sentir em casa. Mas as aulas práticas de português provocaram frustrações em alguns membros da família, como a irmã, a dona de casa Chafica Obeid.
— Quando cheguei aqui, em 1969, fui ao supermercado para comprar palito. Rodei por todas as prateleiras e não achava, me ofereceram ajuda mas não aceitei. Voltei para casa chorando: se não conseguia comprar palito, nem acompanhar uma conversa, o que estava fazendo tão longe de casa? — lembra.
Chafica chegou ao país casada com um primo. Antônio trabalhava na loja e fazia ginástica na Lapa. Mas foi em Botafogo, em um baile de carnaval de 1964 no Clube Sírio-Libanês, que ele foi fisgado por Glória, filha de libaneses. Em 1980, Chafica e Antônio resolveram voltar definitivamente para o Oriente Médio, que já visitavam frequentemente. Esbarraram na guerra civil do Líbano e fizeram as malas novamente para o Rio. Têm cidadania brasileira e defendem a terra adotada como poucos.
— Eu sou mais brasileiro do que você, porque você nasceu aqui — aponta para o repórter. — Eu, não. Eu quis ser brasileiro, e já tenho 60 anos de país. O brasileiro não dá valor ao que tem. Tirando a falta de segurança, não pode reclamar de nada. O povo fala sobre os países que visitam, mas só viaja para ver os pontos turísticos. Vai morar ou trabalhar, para você ver como é diferente. Este país é maravilhoso.
Renato Grandelle
(O Globo – 25/04/2015)