O Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo, tem registrado casos de passageiros africanos que não conseguem embarcar em seus voos de conexão para o destino final e acabam pedindo refúgio no país. O G1 conversou com três destes passageiros e eles dizem que as companhias aéreas — e não autoridades imigratórias — recusaram o embarque.

Dados da Polícia Federal mostram que, de 1º de janeiro até 30 de junho, dos 949 estrangeiros de diversas nacionalidades que foram encaminhados para o Conector, sala no aeroporto que recebe passageiros em trânsito com problemas de documentação, 268 tiveram seu embarque negado pela companhia aérea que os levaria a outro destino. O levantamento não aponta, no entanto, quais as companhias recusaram o embarque ou o país de origem dos estrangeiros.

A Defensoria Pública da União diz que os casos de recusa de conexão em diferentes empresas têm sido frequentes em Guarulhos. Companhias aéreas dizem analisar, segundo prerrogativas internacionais, a documentação dos passageiros: os passaportes, os vistos e os atestados de vacinação. A Defensoria apura a legalidade desta prática, já que passageiros com visto e passaporte têm tido dificuldades para embarcar.

Três camaroneses, que disseram à reportagem do G1 estar de férias, ficaram até seis semanas no Conector, que se assemelha a uma recepção. O comerciante Njotu Armstrong Atifang, de 24 anos, chegou a São Paulo em 1º de maio e foi surpreendido ao ter o passaporte retido. Ele, que já tinha feito uma escala em um voo da Royal Maroc Airlines em Casablanca, pegaria um voo da Avianca até a República Dominicana. “Funcionários da companhia aérea pegaram meu passaporte e não o devolviam. Pediram para esperar 50 minutos. Eu esperei 24 horas e nada. Ninguém me explicou por que fiquei detido. Eu tinha o visto de turista. Fiquei um mês e duas semanas”, contou.

“Tenho certeza de que a questão da cor da pele influenciou. Eles detiveram só os negros. Éramos seis camaroneses e todos fomos detidos. Quatro foram mandados de volta para Camarões”, disse o comerciante. O G1 tentou, sem sucesso, o contato com a companhia aérea Avianca para esclarecer os motivos que levam à recusa do embarque.

Dias depois a história se repetiu com mais dois de seus compatriotas. O técnico em informática Akang Donald Fombagang, de 27 anos, também viajava com um amigo pela Royal Maroc para Trinidad e Tobago. Em São Paulo, eles fariam uma conexão e pegariam um voo pela Copa Airlines. Apesar de afirmarem ter o visto de turista, os dois dizem que também tiveram o embarque negado e ficaram detidos por cerca de um mês.

A Copa descarta qualquer forma de preconceito e afirma que Fombagang não constava em suas listas de reservas. Por isso, o embarque foi negado. “Nos registros históricos de reserva da companhia, não foi encontrada nenhuma reserva e/ou bilhete em nome de Akang Donald Fombagang”, diz nota emitida pela empresa.

‘Sem razão’

“Tínhamos tudo o que era necessário. Fomos para a Nigéria para tirar o visto. A viagem tinha três paradas previstas: Casablanca (Marrocos), São Paulo e Panamá antes de chegar a Trinidad e Tobago. No controle de passaporte nos colocaram de lado. Não fomos os únicos. Teve gente que retornou ao país sem nenhuma razão”, disse Fombagang.

O amigo dele, um agente comercial de 37 anos que não quis se identificar, também diz estar certo de que foi alvo de preconceito. “Nós tínhamos visto de turismo por três meses. Para mim, foi discriminação da Copa Airlines por causa da cor da pele”, disse. Como o agente comercial pediu para não ser identificado, a companhia aérea não teve como consultar se seu nome constava na lista de reservas.

A Copa Airlines ressalta que “é comum passageiros procedentes de países africanos comprarem bilhetes em separado (ou seja, um bilhete do país de origem para o Brasil e outro para os voos da Copa)”. Quando o viajante não consta na lista de reservas da empresa, ele não tem nenhum vínculo com a Copa, de acordo com a companhia. Nesse caso, cabe à empresa que o trouxe até o Brasil transportá-lo até o país de origem.

Sem cama

Sem visto visto para ficar no Brasil, os estrangeiros ficam no Conector já que não podem desembarcar no país. A sala tem cadeiras e dois banheiros – um feminino e um masculino. Essa área deveria receber, por pouco tempo, apenas viajantes que se deslocam com o passaporte irregular, sem o visto para o país que deseja visitar ou aqueles que tiveram entrada negada no Brasil. A alimentação, segundo a Polícia Federal, fica por conta da companhia aérea que transportou o passageiro até o Guarulhos.

“Nós dormíamos no chão. Eu dormi em cima de um cobertor que peguei durante o voo nesse tempo todo. A sala era climatizada. Você tem ideia de como o chão era gelado? A comida era servida no chão”, contou o agente comercial.

O defensor público da União Daniel Chiaretti conta que as condições de permanência são precárias. Muitos reclamam de não ter acesso à bagagem ou à documentação. A Polícia Federal nega que haja retenção de documentos. “Nesse caso específico a demora pode ter ocorrido devido aos próprios passageiros terem se recusado a retornarem aos seus países de origem”, disse a Polícia Federal, em nota.

Em fevereiro, um acordo com a Polícia Federal permitiu que servidores do Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, da Prefeitura de Guarulhos, tenha acesso ao Conector. “A situação agora está melhorando. Eles vão conseguir fazer uma triagem e convocar a defensoria pública no caso de violação de direitos”. O posto humanizado ainda não divulgou informações sobre as primeiras visitas previstas para começar em neste mês de julho.

Análise de perfil

Entre todas nacionalidades que passaram pelo Conector entre janeiro e junho, lideram os nigerianos (187), seguidos pelos indianos (136), pelos ganeses (66) e pelos viajantes de Bangladesh (58), segundo estimativa da Polícia Federal. Nesse período, 25 camaroneses ficaram retidos. As informações sobre aqueles que foram barrados pelas companhias aéreas não foram divulgadas pela Polícia Federal.

Chiaretti explica que, na prática, viajantes negros e de origem africana estão entre os passageiros que costumam ter problemas para fazer a conexão. “A constatação empírica que a gente faz é que são barrados jovens, negros, vindos de países africanos. Muitos deles estão viajando sem esposa ou filhos. Muitas vezes se generaliza ao associar esse perfil à prática de crimes, o que na maioria das vezes não é o caso”, observou.

A reportagem do G1 teve acesso a cópias de documentos com o logotipo da Avianca que foram entregues a camaroneses em que se pode ler a descrição “perfil de risco: motivo da viagem da viagem não condizente com o destino”. A empresa não se posicionou sobre o assunto.

A Polícia Federal afirma que, nos casos de passageiros que não têm o Brasil como destino final, a companhia aérea faz uma análise do “perfil do passageiro” antes de permitir o embarque com o objetivo de se antecipar a uma provável recusa pelo agente de imigração do país de destino.

Ainda de acordo com a polícia, o visto representa “uma expectativa de direito de ingresso no país sendo a autorização para entrada um ato discricionário”. Na prática, as autoridades de fronteira têm liberdade de decisão e podem recusar a entrada do viajante estrangeiro.

De maneira que, se a companhia se arrisca a levar o passageiro que não possui o perfil mínimo e a entrada dele é recusada pelo agente de imigração, a empresa é responsável por trazê-lo de volta. Nos casos relatados pela reportagem, a demora pode ter ocorrido devido aos próprios passageiros que se recusaram a retornar aos seus países de origem.

“A permanência no Conector gera diversas violações do ponto de vista de direitos humanos. Por isso, a defensoria abriu um procedimento para apurar essa dificuldade de embarque. Estamos inicialmente coletando informações com as agências reguladoras. O objetivo é avaliar como é feita a avaliação de perfil pelas companhias aéreas e verificar a legalidade desta prática”, afirmou Chiaretti.

“Nós pagamos cerca de US$ 2,6 mil dólares pelo bilhete ida e volta. Também pagamos US$ 500 por cinco dias de hotel em Trinidad e Tobago. Entre as pessoas retidas estavam passageiros paquistaneses que não tinham sequer passaporte. Nós, não, tínhamos todos os documentos. Não temos nenhum motivo para voltar ao nosso país”, desabafa o agente comercial.

Diante da recusa das companhias aéreas para que eles embarcassem, os viajantes que não querem voltar para o país de origem de imediato acabam assinando, mesmo contrariados, um pedido de refúgio no Brasil. Os camaroneses deixaram o aeroporto e, quando conversaram com a reportagem, ainda negociavam um novo embarque com as companhias. Fombagang e o amigo ainda queriam seguir para Trinidad e Tobago pela Copa Airlines. Cansado, Atifang queria apenas voltar para Camarões. “Se eles me derem a passagem eu volto”, afirma.

Em julho, pelo menos 14 estrangeiros que não queriam ficar no Brasil passaram pelo abrigo para migrantes da Missão Paz, no Glicério, no Centro, enquanto aguardavam a resolução do imbróglio com a companhia aérea. Desses, pelo menos outros quatro camaroneses possuíam passaporte e não conseguiram pegar o voo da Avianca que os levaria para Belize ou para o Equador, segundo a Missão Paz. Um dos viajantes declarou que iria estudar e não precisava de visto para o Equador, ainda segundo a instituição.

Regras

A Copa Airlines afirma que as regras de entrada do passageiro no destino desejado “não são impostas pelas empresas aéreas, mas sim pelas autoridades migratórias de cada país que faça parte do itinerário do viajante”. De acordo com a companhia, “o viajante tem o dever de assegurar que realizará a viagem portando toda documentação necessária ao propósito de sua viagem e fundos suficientes para sua subsistência”.

“Deixamos claro que os procedimentos da companhia em casos como esse estão sempre regidos pelas regras soberanas das autoridades de imigração. Caso o passageiro tivesse algum trecho confirmado para continuar a viagem com a Copa, mas não possuísse a documentação requerida pela autoridade de imigração do país de destino e de conexão (no caso, o Panamá), a empresa que o transportou até o Brasil seria responsável por esse passageiro e teria de remarcar seu bilhete para que pudesse retornar ao ponto de origem, mediante deliberação da Polícia Federal”, afirmou em nota a Copa Airlines.

Letícia Macedo

(G1 – 08/08/2015)