“Migrantes, apátridas e refugiados: subsídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no Brasil”
A pesquisa “Migrantes, apátridas e refugiados: subsídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no Brasil”, realizada pelo Ministério da Justiça, revela o perfil desta população e aponta os principais obstáculos de seu acesso a direitos e serviços; sobretudo documentação, educação, moradia, saúde e renda.
Após 9 meses de pesquisa em todo o território nacional verificou-se a existência de obstáculos múltiplos nos três níveis de pesquisa: normativo (legislação, regulamentação legislativa e políticas públicas), estrutural (moradia e trabalho), e institucional (idioma, falta de recursos humanos e capacitação) e a necessidade de se repensar as migrações e a proteção aos imigrantes no Brasil a partir de um enfoque de direitos humanos.
Segundo a pesquisa, baseada em abordagem empírica qualitativa a partir de entrevistas e questionários com imigrantes, instituições públicas e sociedade civil, os estrangeiros que vivem no Brasil (migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio) relatam que o idioma, a documentação e a falta de informação são os principais obstáculos para o acesso a direitos e/ou serviços. Mas quando se refere à discriminação no acesso a serviços públicos, cerca de 73% não se sentiu discriminado.
A pesquisa
Segundo Liliana Jubilut, coordenadora da pesquisa, um primeiro resultado foi a obtenção de dados empíricos que demonstram as dificuldades de efetivação dos direitos humanos dos imigrantes no país. A partir dos mesmos, foi constatado que existem obstáculos estruturais, institucionais e informacionais para o acesso aos serviços públicos, direitos e políticas públicas por parte desta população. Verificou-se que não existe um único obstáculo ou dificuldade, mas um conjunto de dificuldades em diferentes níveis que acabam criando obstáculos ao acesso a serviços públicos, proteção e realização dos direitos humanos dos imigrantes no Brasil.
A pesquisadora também destacou as dificuldades encontradas para a realização da pesquisa, tais como a obtenção de retorno das instituições contatadas, sobretudo dos órgãos públicos. Além disso, verificou-se que há um foco grande em pesquisas sobre o fenômeno migratório, enquanto o imigrante como sujeito de direitos acaba não sendo objeto de tantas análises.
Quanto à questão da obtenção de números exatos, constatou-se que não existem dados consolidados sobre imigrantes no Brasil, especialmente porque vários órgãos trabalham com o tema a partir de perspectivas diferentes e, ao que parece, não existe coordenação de ações que permitam a aproximação das diferentes abordagens e a sistematização dos números.
Também contribui para a ausência de dados a quantidade de imigrantes em situação migratória irregular. Identificou-se, assim, a necessidade de se desenvolver ações e medidas visando à consolidação dos dados sobre imigrantes em nível nacional. A pesquisa teve um foco qualitativo pelo que essa lacuna de informação, embora relevante para o estudo dos imigrantes e da migração no país, não gerou prejuízos para os dados coletados e sua análise.
Sobre a questão a qualidade do atendimento e o acesso aos serviços públicos prestados aos migrantes, apátridas e refugiados no Brasil, a pesquisadora relatou que o atendimento aos imigrantes no Brasil é difuso, não é guiado por diretrizes centralizadas. Em muitos casos este atendimento não se baseia numa abordagem pautada nos direitos humanos ou desconsidera as particularidades dos migrantes. Foram identificadas algumas práticas interessantes, mas as mesmas decorreram de iniciativas individualizadas, não se configurando como práticas generalizadas.
O Brasil precisa efetivamente avançar no aprimoramento das práticas de atendimento e acesso dos imigrantes aos serviços públicos e a direitos. Essa melhora passa necessariamente pelo aprimoramento do marco normativo migratório a fim de se adequar e incorporar as normas, padrões e diretrizes internacionais e regionais na matéria, que assegurem maior proteção. Isso teria reflexo nas políticas públicas e na efetivação dos direitos humanos dos imigrantes de modo mais amplo.
À pergunta sobre as áreas prioritárias identificadas na pesquisa para a efetivação do acesso aos serviços públicos por migrantes, apátridas e refugiados em termos de gestão pública, Liliana Jubilut respondeu que, como os obstáculos são múltiplos, também são variadas as áreas prioritárias, mas pode-se destacar:
• a necessidade de uma coordenação das ações dos diferentes órgãos públicos com incidência na questão migratória;
• adoção de uma abordagem da migração pautada nos direitos humanos;
• implementação de diretrizes centralizadas que possam guiar e dar certa uniformidade às medidas de atendimento/proteção aos imigrantes;
• desenvolvimento de uma perspectiva de proteção integral do imigrante, que contemple tanto direitos migratórios como direitos humanos;
• incremento dos recursos, tanto humanos quanto financeiros, para a implementação de políticas migratórias e de acesso dos imigrantes aos serviços públicos;
• capacitação dos diferentes agentes que atuam na questão migratória em temas relacionados aos direitos humanos e migrações.
De qualquer modo, a pesquisa possibilitou a coleta, análise e sistematização de dados empíricos sobre o tema no Brasil, que permitem identificar os principais obstáculos de acesso dos imigrantes aos serviços públicos e realização de seus direitos humanos. A identificação dos obstáculos existentes é o primeiro passo para a adoção de medidas capazes de aprimorar as políticas, normas e estruturas existentes a fim de transpor estas barreiras e assim melhorar o atendimento aos migrantes, apátridas e refugiados no Brasil.
Outra questão importante, ainda no contexto dos dados coletados, é que além de trazerem o panorama nacional, o que permite que o governo federal adote estratégias coordenadas de ação, a pesquisa empírica permitiu identificar os principais obstáculos em cada um dos Estados estudados. Tais dados permitem a construção de uma intervenção especializada e adaptada às realidades migratória e institucional de cada Estado.
Um segundo ponto é que os resultados evidenciaram a necessidade de revisão do marco normativo migratório no Brasil, especialmente para incorporar e se adequar aos padrões internacionais e regionais de proteção dos imigrantes e de seus direitos humanos, e que este marco normativo se construa a partir de uma abordagem pautada nos direitos humanos. A revisão do marco normativo é essencial para o aprimoramento das políticas públicas, que refletirão, na prática, as diretrizes adotadas no âmbito normativo. Um marco normativo revisado e atualizado nestes moldes proporcionará os instrumentos para que tais políticas sejam mais efetivas e capazes de superar os obstáculos identificados, bem como gerará maior segurança aos imigrantes, auxiliando em sua proteção integral.
Um terceiro ponto que os resultados da pesquisa permitem identificar é a necessidade de maior capacitação e coordenação de esforços no âmbito nacional para se construir e colocar em prática uma efetiva política migratória nacional pautada nos direitos humanos e capaz de proporcionar uma proteção integral aos imigrantes no Brasil.
Sobre os motivos do aumento dos fluxos migratórios para o Brasil, a pesquisadora indicou que poucos imigrantes entrevistados quiseram explicar os motivos da escolha do Brasil como país de destino. Porém, foi possível perceber a influência nesta escolha de uma combinação de maiores oportunidades no país durante o período de crescimento econômico e de uma maior disponibilidade de informações sobre o Brasil no exterior. Além destas circunstâncias, verificou-se que, por vezes, a vinda para o Brasil se deu por razões aleatórias.
O percurso
A pesquisa mostra um retrato de como estão e por onde circulam os imigrantes até entrar em solo brasileiro e para onde vão ao chegar ao país. Segundo Liliana, a intenção foi mapear os imigrantes. Hoje, não se tem um número exato de quantos estão no Brasil, mas a estimativa é que é em torno de 1,5 milhão. Entre ele, mais de oito mil refugiados de 80 nações diferentes. Além do perfil dos estrangeiros, a pesquisa pôde verificar diversos fatos, inclusive de relatos de tráfico de pessoas, principalmente no Norte e Sudeste.
O estudo também desenhou a rota dos haitianos que entram no Brasil. Por via terrestre, a rota principal é pelo Acre. Os primeiros que vieram para o país, segundo o estudo, sofreram xenofobia, além de críticas pela abertura das fronteiras. O documento mostra um detalhe importante: a questão da imigração na região só virou tema de debate agora, mesmo o Acre abrigando centenas de bolivianos ou peruanos. “Bolivianos e peruanos são praticamente invisíveis aos olhos do poder público, gerando poucas ações governamentais efetivas”, observa o relatório sobre o estado.
O Amazonas, mais concretamente a cidade de Tabatinga, na fronteira com a Colômbia, foi a segunda porta de entrada dos haitianos, mas em menor escala. Enquanto que pelo Acre chegaram pelo menos 28 mil estrangeiros provenientes de Porto Príncipe, pelo estado vizinho entraram em torno de cinco mil pessoas. E a questão dos imigrantes “invisíveis” também existe por lá. Do outro lado do Rio Solimões estão a cidade de Letícia, na Colômbia, e a vila de Santa Rosa, no Peru. A população de ambas as localidades transita normalmente por território brasileiro, com ou sem documentos de imigração.
Um fato chamou a atenção dos pesquisadores em Roraima. O estado tem forte fluxo migratório, mas há uma espécie de invisibilidade quanto a eles. O motivo é a falta de estrutura dos órgãos públicos no atendimento. Isso pode representar no futuro, um grande problema, que é a entrada de haitianos no Brasil pelo estado. Isso pelo fato de a estrada ligando Lethem – na fronteira com o Brasil – a Georgetown, estar sendo reformada. A capital da Guiana é próxima do Caribe.
Pará e Amapá, apesar de próximos da Guiana Francesa, são dois estados onde os imigrantes estão presentes, mas são quase imperceptíveis. Assim como Alagoas e Tocantins que, a não ser turistas, não tem atrativos para imigrantes, seja ele reassentado ou refugiado. O mapa gerado pela pesquisa mostra que São Paulo, além de nigerianos, bolivianos e haitianos, que são maioria, tem estrangeiros de praticamente todas as nacionalidades. Os sírios que estão entrando no Brasil se concentram mais em São Paulo, em pequena quantidade em outros estados e no Distrito Federal. No Rio de Janeiro estão pessoas vindas do Congo, fugindo da guerra civil, de Angola, e do Haiti.
Ressabiados de tanta promessa, os imigrantes de São Paulo relutam em conversar com os brasileiros. “Algumas nacionalidades, como os haitianos e bolivianos, estão cansadas da constante abordagem pela mídia e se mostram reticentes a participar de entrevistas, pois consideram que o esforço de evidenciar os problemas vivenciados não trouxe resultados às suas demandas”, relatam os pesquisadores, ao justificarem as dificuldades em obterem mais informações sobre a situação dos estrangeiros na capital paulista.
O retrato
Eles já somam mais de 1,5 milhão, dos quais oito mil são refugiados que abandonaram seus países por causa de guerras, perseguição e miséria. Vivem em todas as regiões do Brasil, mas alguns enfrentam problemas com o idioma e a burocracia.
Quando começa a falar sobre os últimos anos de sua vida, Mohammad Kheir Alnmere, de 35 anos, parece voltar a um passado não tão longe, mas muito triste. O homem olha sempre distante, talvez tentando imaginar o percurso entre a Síria e o Brasil, país onde ele entrou como refugiado, há um ano. Ele fugiu de sua terra natal em busca não apenas de uma vida melhor, mas, sobretudo, de segurança. Afinal, a guerra civil que devassa os sírios, fez uma vítima próxima a Mohammad: seu filho de nove anos, que estava com câncer e morreu por falta de atendimento médico em função do bombardeio ao hospital onde estava internado. Sua filha ficou ferida e sua casa destroçada.
O sírio hoje é um dos milhões de imigrantes, apátridas e refugiados que entraram no país, desde os primeiros anos do descobrimento do Brasil. A história de Mohammad se junta a outros estrangeiros que decidiram sair de suas nações em busca de algo melhor para suas vidas. Ele escolheu viver na Europa, depois de passar por vários outros países do Oriente Médio, mas não foi aceito em nenhum deles. Foi roubado durante a viagem e gastou US$ 12 mil para chegar até Brasília, onde mora com a filha. Achou que o Brasil seria a ponte para outros continentes, mas acabou permanecendo por aqui, e hoje vive de bicos em um comércio.
Entretanto, sua vida não tem sido fácil. “Gosto das pessoas aqui do Brasil, mas é difícil trabalhar. Além disso, tem o problema da língua”, diz Mohammad, em árabe, traduzido por Musa Aheo Sahori, um filho de palestinos, que serve de interprete. Hoje o sírio vive no Distrito Federal com a filha. Já está abandonando a ideia de viajar pela Europa, mas reclama da burocracia para tirar seus documentos no país. “Deveria ser mais ágil”, diz.
Pelos dois problemas também passou Jihal Abdul Qader Issa, um jordaniano de 37 anos que chegou ao Brasil em 2013. Antes de chegar aqui ele tentou outros países e hoje espera sua regularização definitiva no país. O rapaz aguarda a tramitação de seus documentos, que estão na Polícia Federal atualmente. “O problema aqui é a língua e trabalho”, diz ele, que também se declara um entusiasta pelos brasileiros.
(Redação + Agências)