Burocracia dificulta atendimento a crianças refugiadas desacompanhadas.
O Brasil teve um aumento de mais de 2.000% no número de solicitações de refúgio em quatro anos, entre adultos e crianças, de acordo com o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Dos pedidos que envolvem refugiados na infância, 9,8% eram para crianças separadas ou desacompanhadas de um responsável legal.
O número é proporcionalmente pequeno, mas não para de crescer. Não bastasse o trauma da fuga forçada e a separação dos parentes, essas crianças ainda enfrentam dificuldades burocráticas da solicitação de refúgio, o que impede o acesso a uma série de direitos.
A situação é tão preocupante que foi tema de debate promovido pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em parceria com Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
Burocracia
O assistente de proteção do Acnur Diego Nardi chamou de urgente a situação dessas crianças que, por não terem um representante legal, precisam esperar de dois a oito meses para poder pedir asilo no Brasil. “As crianças que não têm ninguém são encaminhadas para um abrigo e o responsável pelo abrigo se torna o representante legal e dá o encaminhamento ao processo. No caso das crianças que chegam com um adulto, é necessária uma ação de guarda para ele receber a guarda dessa criança e então dar o procedimento de refúgio”, explicou.
Durante o processo, a falta de documento dificulta a matrícula na escola, o acesso a serviços de saúde e aos benefícios das políticas sociais, entre outros direitos, segundo Nardi. “A opção de criança desacompanhada ou separada não está nem no formulário de refúgio.”
Atualmente, a Defensoria Pública do Rio de janeiro cuida de oito casos envolvendo 12 crianças nessa condição. De acordo com a defensora pública Elisa Costa Cruz, subcoordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica) da defensoria, a maioria das crianças chega ao Brasil com algum familiar, porém sem a prova do parentesco.
“A Polícia Federal, nos últimos anos, tem recusado esse pedido [de refúgio] por essas crianças, que exige um documento comprovando o parentesco ou a guarda deferida por um juiz. Só que esse processo judicial demora. Enquanto isso, a criança não tem documento, ela é invisível para o Estado brasileiro”, criticou o assistente do Acnur.
“Essa criança precisa ter o direito de pedir o refúgio e resolver sua situação política com o Brasil e ao mesmo tempo do direito de proteção e bem-estar. Que o acesso ao refúgio não seja condicionado a uma regularização familiar. E só quem pode solucionar isso é a Polícia Federal”, acrescentou.
A policial federal Patrícia Dias Bevilacqua, que trabalha há cinco meses no setor de concessão de protocolo de solicitação de refúgio no Rio de Janeiro, disse que a orientação é assegurar o parentesco da criança para conceder o direito de permanência no país.
“É uma responsabilidade muito grande legitimar um protocolo sem ter certeza se aquele homem e aquela mulher são realmente os pais daquelas crianças, são realmente refugiados. Tenho regras e preciso obedecer alguns critérios para garantir o direito dessas crianças”, argumentou. “Precisa haver uma comunicação como a que está havendo aqui entre todos os órgãos, algum órgão que ampare essas pessoas que chegam indocumentadas”, sugeriu.
Atualmente, a PF orienta as pessoas a procurarem a Defensoria Pública e o consulado para solicitar documentos. Em seguida, um dossiê da Polícia Federal é enviado ao Conare que defere ou indefere o refúgio.
Crianças congolesas são maioria
A maior parte das crianças refugiadas desacompanhas de um representante legal vem do Congo, país africano que vive um conflito armado que já matou centenas de milhares de pessoas e causou o êxodo forçado de outra parte da população.
Há oito anos no Brasil, Charly Kongo é refugiado e hoje trabalha na Cáritas no atendimento a conterrâneos congoleses. Para ele, a falta de documentos faz com que as crianças sejam punidas duplamente por serem refugiadas. “Os adultos fizeram uma escolha de fugir e vir para cá. As crianças nem essa opção tiveram. Por isso, precisamos respeitá-las muito. Elas têm que aprender outro idioma, viver em um país diferente, sofrem muito preconceito nas escolas, acusados de traficantes ou prostitutas”, disse Kongo, que se tornou uma espécie de líder na comunidade congolesa no Rio.
O refugiado diz que conheceu o racismo no Brasil. “Lá [Congo] quase todos somos negros. Então, aqui sofremos o preconceito que os negros brasileiros já sofrem e o preconceito por sermos refugiados. As pessoas confundem com foragido ou fugitivo. Pensam que fizemos algo errado em nosso país e tivemos que fugir para cá”, lamentou.
Flávia Villela
(EBC – 22/06/2016)