A construção social da imagem do homem negro como uma ameaça é uma entre tantas barreiras enfrentadas na integração dos haitianos e senegaleses.
A internet celebrou, com muitas glórias e concordâncias, o belo discurso de Meryl Streep após receber o Globo de Ouro pelo conjunto de sua obra. Causou uma imensa comoção e algum alento. A indignação com Trump é acertada. Errado é que não tenhamos a capacidade de nos indignar com o trato que é dado aos imigrantes no Brasil. Enquanto vociferamos contra Donald Trump, são violentados e mortos haitianos e senegaleses no nosso pátio. Imigrantes negros.
Os contornos históricos da travessia desses imigrantes de seus locais de origem até o Brasil são diversos do tráfico negreiro, mas as consequências não são tão distintas assim. É comum serem atraídos para empregos em que não receberão salários, há casos de imigrantes negros trabalhando em regime de escravização e a cooptação de trabalhadores pela espessura da canela.
Em um país que trata seus nacionais negros como cidadãos de segunda classe, virou rotina a morte bárbara dos imigrantes. Mortes que não são publicizadas, que não comovem ninguém e que não geram reflexões como o discurso de Meryl Streep.
O mais recente caso de homicídio, publicizado, envolvendo imigrantes ou refugiados negros, se deu nos últimos dias de 2016. Jemps Jannier foi morto a facadas na cidade de Gravataí, no Rio Grande do Sul. Em 2015, no estado de Santa Catarina, Fetierre Stalin também foi assassinado. No caso de Jemps não há indícios que relacionem o homicídio diretamente com o ódio anti-negro. Já no caso de Fetierre, os relatos de sua esposa deixaram explícito a motivação racista do crime. Seus algozes constantemente dirigiam-se a ele através de expressões xenofóbicas e racistas e costumavam dizer que haitianos não tinham nada a fazer em Santa Catarina. As semelhanças com os discursos racistas que a negritude brasileira escuta não é mera coincidência.
Numa tentativa de compreender um pouco melhor a vida dos imigrantes negros no Brasil, particularmente no sul, localidade em que as consequências do racismo anti-negro são tão aprofundadas e violentas, encontrei Mor Ndiaye , presidente da Associação de Senegaleses de Porto Alegre. Mor Ndiaye me relatou que para os senegaleses imigrar é um traço cultural, o que difere das motivações dos haitianos, os quais veem para o Brasil em decorrência das consequências do furação que assolou o Haiti em 2010.
É comum para a comunidade do Senegal imigrar. Contudo, o Brasil moderno surgiu como rota recentemente. O endurecimento na política migratória europeia e norte-americana, combinado com a visibilidade internacional do Brasil no período de preparação para a Copa Mundial bem como o período anterior de emergência econômica, levou os senegaleses a partirem para o território brasileiro em busca da empregos e melhores oportunidades. Enxergaram no Brasil uma possibilidade de viver em um país acolhedor e racialmente democrático. A democracia racial brasileira, vendida com tanta força internacionalmente, logo se provou uma grande falácia. Realidade que os negros brasileiros conhecem muito bem. Ao invés de integração e acolhimento, os imigrantes negros se deparam com algo que lhes era desconhecido até então: o racismo. Mor Ndiaye me conta que não existe palavra correlata a racismo no seu idioma. Para os senegaleses, a compreensão do racismo é um processo duro e conexo as suas experiências no território brasileiro.
Muitos não resistem. Retornam para as suas casas, ou sucumbem à doenças que tanto eu quanto Mor Ndiaye sabemos que estão relacionadas com o sofrimento decorrente do preconceito racial. Ao conversar com Mor Ndiaye compreendi algumas peculiaridades da imigração senegalesa que ainda me eram desconhecidas. Segundo ele a maioria dos imigrantes que exercem atividades no comércio informal, por exemplo, são senegaleses. Estão ocupando estes postos de trabalho para complementar a renda e também pela facilidade que tem com o comércio. Contudo, não conseguem empregos formais em lojas e estabelecimentos comerciais em razão do racismo e das barreiras linguísticas.
Para Reginete Souza Bispo, socióloga, especialista em Direitos Humanos e coordenadora do Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnias Akanni, “é difícil entender a desconfiança e dificuldades que alguns povos têm em receber outros. Somos contemporâneos de um tempo difícil de ameaças. De dominação política, econômica e cultural fundamentada em concepções etnocêntricas que produz racismos, xenofobia e intolerância.” O instituto que Reginete coordena desenvolve ações voltadas à população negra. O trabalho que começou em 2005, a partir da necessidade de fomentar uma organização focada na luta por reconhecimento e empoderamento das mulheres negras, hoje aglutina entre suas atividades o assessoramento jurídico, político e organizativo dos imigrantes e refugiados, especialmente senegaleses e haitianos.
A socióloga destaca: “Novos rostos da imigração apresentam velhos desafios em um novo contexto. Os imigrantes caribenhos e africanos enfrentam outros problemas que são uma realidade em nosso país, os resquícios de quatro séculos de escravização de homens e mulheres negras formando um estado e sociedade racializado onde, a cor da pele determina o papel e lugar que o indivíduo pode ocupar na sociedade. Hoje agravada pelo quadro político e econômico que, ao meu ver, potencializa o ódio e a intolerância gerando esse quadro de aumento de ações violentas roubo, espancamentos, xingamentos, homicídios contra estes povos”
Reginete ainda menciona que: “a crise política e econômica alterou um ciclo favorável de pleno emprego, alterou o ciclo favorável aos imigrantes. Começou a retenção de crédito, elevação da taxa de juros, redução do consumo internos e do nível de emprego em setores que necessitavam da mão de obra dos imigrantes, setor alimentício, metal mecânica, construção civil e indústria moveleira entre outros. Muda também o perfil do trabalho disponível para o imigrante. Estes passam a atuar no setor de serviços: postos de gasolina, limpeza e higienização, restaurantes, trabalho doméstico, vendedor ambulante nos grandes centros. É maior a possibilidade de passarem desapercebidos no meio da multidão, esmagados pela indiferença.”
Soma-se a isso o pouco empenho do governo brasileiro em integrar devidamente os imigrantes negros. Segundo Mor Ndiaye o Brasil desconsidera os imigrantes negros, assim como desconsidera os negros nativos. As consequências dessa desconsideração produziram em nós, negros brasileiros, um sentimento de não pertencimento, um apagamento do orgulho de nossas origens, algo que os negros africanos e haitianos mantêm com mais força. Mor Ndiyae termina de conversar comigo me dizendo que “independentemente de onde você tenha nascido, há muito o que aprender sobre a África e só isso vai te permitir ter orgulho de quem você é”. Percebi esse orgulho de ser um negro africano em cada frase compartilhada por ele. Me inquietei, contudo, que tenhamos feito tão poucos esforços para impedir que a violência contra os filhos da África, sejam eles imigrantes, refugiados ou brasileiros, adquira nuances tão fortes de naturalização. Nós nos sensibilizamos com os sírios, nos indignamos com os discursos xenofóbicos de Donald Trump, mas o nosso descaso com os imigrantes e refugiados negros não está tão longe assim do ódio racista do presidente norte-americano.
Akanni significa “nosso encontro traz poder” na língua Yorubá, tenho certeza que as articuladoras do Instituto Akanni não escolherem esse nome por acaso. Os encontros entre as populações negras da diáspora ainda são poucos, ainda são insuficientes, precisamos potencializar encontros, saberes, resistências e poderes. Encontros que podem salvar vidas que têm sido sistematicamente ceifados pelo racismo.
Winnie de Campos Bueno
Iyaloríxa do Ile Aiye Orisha Yemanja (Pelotas/RS).
(Justificando – 25/01/2017)