“O homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade.” Hannah Arendt, 1998
Uma grande barca atracada ao sul da Inglaterra vem criando polêmica no mundo todo, desde que a Bibby Stockholm foi apresentada como parte da nova política migratória do Reino Unido. A embarcação, com 222 quartos, abrigará, em breve, aproximadamente 500 solicitantes de asilo. Esta é mais uma tentativa do Primeiro-Ministro Rishi Sunak, do partido conservador, cumprir a promessa de impedir a chegada de refugiados à ilha, que agora, após o Brexit, possui grande liberdade para impor políticas migratórias mais agressivas.
A polêmica novidade não é assim tão nova, seja para a cidade de Portland, onde está atracada a barca, seja para a história da humanidade. Entretanto, ainda nos surpreendemos ao pensar como, ainda hoje, algumas nações apresentam ao mundo propostas tão medievais. Os locais, as populações e o status dos indesejáveis vão se alterando com o passar do tempo, mas a forma como a humanidade lida com isso mudou muito pouco.
Dos antigos leprosários do século XII aos portadores de doenças venéreas no século XV ou os pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas”1 que se seguiram, a exclusão e a construção de ambientes que os comportem é a solução proposta pela outra parte desta mesma humanidade. Para os indesejáveis, resta a exclusão, a perda dos laços, o rompimento dos vínculos, a suspensão do convívio com a comunidade, enfim, a deriva.
E assim, o Reino Unido reedita antigas alegorias medievais, que aparecem na arte e literatura dos séculos XV e XVI: o Navio dos Loucos ou a Nau dos Insensatos são os mais conhecidos e foram fontes de estudos de diversas áreas do conhecimento. Foucault, em História da loucura, recompõem os caminhos que levam, de fato, a existência de uma embarcação onde os loucos, os doentes e os vagabundos eram entregues aos marinheiros. Vagavam pelos rios europeus, arrancados da terra, condição primordial de existência na Idade Média, e lançados no completo desenraizamento das águas.


Entretanto, no mesmo livro Foucault pontua:
“Portanto, os loucos não são corridos das cidades de modo sistemático. Por conseguinte, é possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos”. (p. 10)
Assim, fica evidente a hierarquia e o peso da terra e comunidade dada aos seus, e a exclusão do estrangeiro, evidenciando, desde então, a naturalização de soluções espaciais excludentes de grupos indesejados, no contexto sócio-urbano.
É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem
Ao nos aprofundarmos nas imagens disponíveis sobre a nova Barca (é possível visualizar alguns ambientes aqui) é difícil não compreendermos o ambiente como uma prisão: ele é cercado, receberá apenas homens, é desconectado da cidade, do ambiente natural, do contato com o exterior. Terá vigilância 24 horas, e horário de saída e entrada, com possibilidade de contato com as cidades próximas em tempo estipulado e tudo deve ser monitorado e controlado.
A apresentação do projeto britânico ressalta a quase completa autogestão da balsa, prometendo à comunidade exterior a mínima necessidade de contato com estes homens. O atendimento médico, uma das principais justificativas para a rejeição da barca na região, será feito dentro da própria barca, mais uma vez, garantindo o isolamento da barca-prisão-refúgio.
A palavra “refúgio” denota lugar para onde se foge para escapar de um perigo, que serve de amparo e proteção. Os refugiados são pessoas que estão fora de seus países de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados à questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados (ACNUR). Quando partem rumo ao desconhecido, estas pessoas abandonam sua terra natal e tudo o que isso implica: família, vínculos, cultura, hábitos e status sociais.
Ao retomarmos a proposta da barca medieval, o destino dos indesejáveis implicava na perda dos laços, rompimento dos vínculos, suspenção do convívio com a comunidade, território e raízes. Simbolicamente vivendo sobre as águas, sem terra, sem raízes.

A obra de Bosch, Navio dos loucos, representa bem essas analogias. Na obra, uma embarcação superlotada das mais diversas representações humanas em desacordo com as normas católicas predominantes. No lugar da vela, uma arvore já perdendo parte de suas folhas mostra o continente, a terra, ao longe. Estão à deriva. Desenraizados.
Simone Weil (1909-1943) filósofa francesa, conceitua o desenraizamento como uma doença quase mortal, fruto de todas as conquistas militares, mas não se restringindo à estas. Pontua que o poder do dinheiro e a dominação econômica pode exercer uma função tão estrangeira que pode ser capaz de provocar o mesmo sentimento. Ele multiplica a si mesmo, e os verdadeiros desenraizados, ou caem numa inércia da alma semelhante à morte, ou perpetuam o desenraizamento.
Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.”
Então, são os refugiados condenados a viver sem raízes? Não. É preciso reconstruir, participar. O conceito de enraizamento vem sofrendo diversas inflexões, uma vez que considera o socio-ambiente com seus vieses tecnológicos, políticos e econômicos, sempre em transformação. Desta forma, um conceito de enraizamento vinculado fortemente ao passado, se torna limitador e quase incompatível com a mobilidade do mundo contemporâneo. Assim sendo, a possibilidade de articular passado, presente e futuro pessoais e coletivos se apresenta como uma possibilidade de se sustentar em raízes múltiplas, compostas pela possibilidade de participar de uma nova comunidade organizada e livre, onde possa preservar sua memória e construir um novo campo de ação que permita se confundir com suas próprias raízes ao propiciar sustentação.
Imagem destacada: Bibby Stokholm, Portland, 2023
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978
MASSOLA, Gustavo Martineli; SVARTMAN, Bernardo Parodi. Enraizamento, in Psicologia Ambiental: conceitos ara a leitura da relação pessoa-ambiente, Cavalcanti, Sylvia; Elali, Gleice A. (organizadoras) – (pp 75- 88), Petrópolis, RJ, Vozes, 3ª reimpressão , 2022
WEIL, Simone. O Enraizamento. São Paulo: EDUSC, 2001

