Agora temos uma nova casa,

Uma casa com novos sons e cheiros,

Com sorrisos e pessoas que ajudam.

Será aqui sempre nosso lar,

Ou iremos embora algum dia?

Margriet Ruurs

A poética do livro “Caminho de pedras: a jornada de uma família de refugiados” nos enternece por meio do texto de Margriet Ruurs e da obra do artista sírio Nizar Ali Badr, produzida com pedras recolhidas em uma praia da Síria. O prelúdio para este texto propõe o entrelaçamento de um trecho do livro com a fotografia Partida, de Peter Ilicciev.

Como membro do Diaspotics, fui desafiada a refletir sobre as experiências que compartilho com famílias migrantes na cidade do Rio de Janeiro. O exercício dessa escrita é carregado de sentimentalidades, por se tratar de pessoas com as quais vivencio a partilha de afetos, angústias e sonhos. Para este texto, decidi escolher uma família e contar brevemente a história do nosso encontro e da partida para uma nova migração; que envolveu um processo doloroso, porém carregado de delicadezas e afetos.

Motivada pelas reflexões de Larrosa (2002), acredito que todos nós somos sujeitos da experiência e estamos abertos à transformação, pois por meio dela se dá o conhecimento, a elaboração dos sentidos e a apropriação da própria vida. Com a compreensão da complexidade do processo migratório, também veio a constatação da vulnerabilidade das crianças em meio a estes movimentos. O sentimento comumente experimentado pelos migrantes é de não pertencimento, como os “estranhos à nossa porta” ou os indesejáveis que Bauman (2017) descreve ao abordar a crise humanitária que vivemos, não pelo gigantesco número de migrantes no mundo, mas pela falta de solidariedade dos seres humanos, com a recusa ao diálogo, o silêncio nascido da autoalienação e a indiferença. 

A família Haddad

A história da família Haddad1 – construída por Antônio2, juntamente com a esposa Rana e os três filhos Nour, Escarlate e Majd (respectivamente com três e dois anos e o mais novo com apenas um ano quando fugiram da Síria) – tem passagens por diferentes estados brasileiros desde a partida da Síria.

Nossas vidas se cruzaram em função do trabalho desenvolvido na Feira Chega Junto3, com crianças de famílias migrantes. Em 2015, a família desembarcou no Brasil, porém um ano depois, Rana, sua esposa, decide retornar à Síria. Antônio assume os cuidados dos filhos. As crianças criam a expressão “pãe” para se referir ao pai. Isso ganha força a cada dia, onde os quatro ficam cada vez mais unidos, afinal o pãe faz tudo: prepara o banho, a comida, cuida dos longos cabelos de Nour, Escarlate e do pequeno Majd, além de embalar o sono dos três com uma canção que sua mãe cantava para ele dormir… Algumas vezes, seus olhos se enchem de lágrimas, pois a saudade da família aumenta.

A vida passava com os quatro vivendo no pequeno quarto nos fundos de uma igreja, onde um padre se sensibilizou e os acolheu. Antônio passou a dividir o seu tempo entre cuidar das crianças e vender iguarias em feiras e eventos. Logo, o sírio passou a acreditar que a terra escolhida era seu porto seguro. A vida não é fácil, pois existe muito trabalho e pouco dinheiro… surgem lembranças de sua juventude, da família, dos amigos que ficaram para trás, da cidade onde nasceu… ele se olha no espelho e não se reconhece mais… agora está com vários quilos acima do seu peso, seus cabelos caíram e sua barba está ficando grisalha …. Porém, ver Nour, Escarlate e Majd sorrindo e brincando faz com que o coração de Antônio se acalme e acredite “fiz a escolha certa”. Entretanto, essa história está longe de acabar e surge uma nova guerra que atingiu e devastou todo o planeta: a Pandemia da Covid-19, que fez com que a rotina fosse interrompida e todos tivessem que se isolar.

Antônio lembra da longínqua Síria, observando as ruas silenciosas e vazias. O pequeno espaço onde vivem parece diminuir a cada dia e as crianças começam a ficar agitadas, perguntando quando irão encontrar os amigos novamente. Nossa convivência se tornou remota e eu procurava usar minha experiência para ocupar aqueles dias que pareciam não ter fim. Usando o velho celular de Antônio, fazíamos chamadas de vídeos onde eles contavam sobre as novas rotinas, eu lia histórias e assim conseguíamos algumas horas com boas gargalhadas. Me emocionava ver os rostinhos alegres e sorridentes disputando o espaço na tela do celular.

No final de 2021, Antônio decidiu migrar novamente, pois as dificuldades financeiras aumentavam. A escola havia suspendido as bolsas de estudos das crianças e ele não conseguia trabalho. Em meio ao seu momento dramático, uma prima que vive em um país europeu se dispôs a ajudá-los, mas era preciso conseguir dinheiro, então fizemos uma “vaquinha virtual” para a compra das passagens. Relembro os encontros que antecederam à partida da família quando ouvi de Majd: “meu pai falou que pra viver, um adulto precisa de trabalho e dinheiro, pois as coisas são muito caras e os filhos também precisam de dinheiro pra muitas coisas”.

O “pãe” preparou as crianças para essa mudança, porém o diálogo franco e amoroso não tornou simples esse processo complexo, como a decisão de escolher apenas um brinquedo para levar na mochila que cada um carregaria. Algumas malas com roupas, sapatos e objetos pessoais e afetivos, como a panela de pressão trazida da Síria que Antônio se negava a deixar, pois havia sido um presente da sua mãe. O espaço onde viviam depois de deixarem a igreja estava completamente desarrumado…confuso como a situação que viviam, o que levar? o que deixar? Lembro de abraçar o pequeno Majd e ouvir dele “tia, você vai visitar a gente? Eu já tô com saudade de você.” Meu coração se apertava e eu tentava ajudar na preparação para a viagem. Na última semana no Brasil, as crianças passavam os dias em minha casa, enquanto o pai tentava vender móveis e objetos. Todos esses momentos foram carregados de subjetividades e me levam a pensar sobre a força dessa experiência que tanto nos tocou e ainda nos toca quando reflito sobre as vivências com essa família. 

Na tentativa de tornar aquele momento menos tenso, organizei alguns passeios com os três, enquanto buscava doações de roupas adequadas ao inverno europeu. Quando as roupas chegavam em minha casa, eles se divertiam experimentando tudo, como crianças que vivem uma mistura de excitação e apreensão. Um dia, fui ao apartamento onde eles viviam e, em meio a muitas coisas espalhadas pela sala, Antônio pegou uma caixa com duas garrafas douradas e pequenos copos de porcelana. Disse que queria que eu recebesse aquele presente, pois era algo muito importante assim como seu “dallah”. Nour explicou que me ensinaria a fazer o café: “com dallah você vai fazer café do jeitinho que o Baba faz todo dia”. Logo compreendi que eram objetos carregados de afetividade que tornavam essa partilha muito especial.

No dia da partida, ficamos muitas horas no aeroporto e as conversas com as crianças giravam em torno da mudança. Falavam sobre os planos do pai e as promessas de uma reunião familiar no futuro.  O “pãe” procurava disfarçar o nervosismo, mas continuava carinhoso e brincalhão. Próximo ao embarque descobrimos que Antônio havia feito uma confusão com o horário e corremos pelo aeroporto temendo que perdessem o vôo. Lembro dos olhos de Nour cheios de lágrimas ao cruzar o portão de embarque e me olhar rapidamente.

Desde a chegada deles na Europa, tento manter o contato por meio de chamadas de vídeo no whatsapp, buscando preservar os afetos, porém as conversas vão ficando mais espaçadas e o vocabulário está mais restrito. As crianças agora falam árabe em família. Com outras crianças venezuelanas exercitam o espanhol e aprendem holandês em uma classe para migrantes. Antônio parece cansado da espera por um documento “que o juiz não deu, ainda mais depois que chegaram muitos ucranianos por aqui e os ucranianos sempre recebem prioridade.”

As crianças cresceram e os rostos vão mudando com a chegada da adolescência. Aos poucos, estão esquecendo o português e durante nossas conversas precisam trocar informações em árabe para que possamos continuar o diálogo. Nour fica sempre calada e séria, tem um olhar apreensivo. Escarlate e Majd falam sobre a vida no campo de refugiados onde estão vivendo, sempre lembrando que lá não tem uma escola, como aquela que conheceram no Brasil. Na “escolinha” que frequentam no campo, aprendem a nova língua e um pouco de matemática “pra saber gastar o dinheiro, comprar coisas daqui” me diz Escarlate.

Minhas memórias afetivas são provocadas ao observar os presentes que ganhei, quando Antônio falou sobre sua mãe e o desejo de deixar aqueles objetos comigo pelo seu significado. Reflito a respeito desse gesto e do caráter simbólico do café – tão presente na vida dessa família – ligado à generosidade e à hospitalidade.

Imagem: Peter Ilicciev, 2022

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. N.19, p. 20-28, Jan/Fev/Mar/Abri, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/i/2002.n1. Acesso em 19 jun. 2023.

RUURS, Margriet. Caminho de Pedras: a jornada de uma família de refugiados. São Paulo: Moderna, 2017.

1 Todos os nomes são fictícios para manter o anonimato da família.

2 Antônio é seu nome cristão, diferente do registro civil.

3 Feira organizada mensalmente no bairro de Botafogo para migrantes trabalharem com artesanato, vestuário e alimentação até 2019. https://www.instagram.com/feirachegajunto/