Nos últimos anos, a crise política, econômica e social venezuelana vem chocando o mundo inteiro: desde as notícias sobre graves conflitos políticos no país vizinho, até as de apagões e outros desastres, acompanhadas sempre pelas imagens de grandes filas de emigrantes caminhando pelo continente e inclusive entrando para o Brasil, onde a complexa situação humanitária em Roraima levou à criação — há vários anos — do inovador e polêmico programa Operação Acolhida, além de algumas das mais ousadas e generosas políticas de refúgio na nossa história.
Mas, embora a evidente complexidade da situação venezuelana, na política brasileira o país vizinho é frequentemente reduzido a uma imagem unidimensional, distópica ou utópica segundo os interesses em jogo. Mas a Venezuela é extremamente complexa: com a população de São Paulo e área do Mato Grosso, foi o único petroestado da região e, até há alguns anos, um importante fator na política latino americana e sua queda teve implicações continentais, incluindo o nascimento de uma das maiores diásporas do planeta.
Mas o fato de que Venezuela faz fronteira com a Região Norte do país — numa área historicamente relegada e longe das grandes metrópoles brasileiras — contribui para uma profunda incompreensão da do nosso vizinho. Nesse sentido, a tese do sociólogo e refugiado venezuelano Jeudiel Martinez em seu texto “Com saudades do Arquipélago” para o site “Sler.com” é que, no Brasil, Venezuela virou uma “metáfora” com uma opinião pública mais interessada no que na Venezuela representa em nossas narrativas mais do que ela é de fato.
E, o que a Venezuela é não se encaixa nas nossas narrativas de jeito nenhum.
No seu artigo, Martinez, aponta algumas contradições muito marcantes: a satanização pela direita de um chavismo que, seguindo o sociólogo, tem muito em comum como fenômeno “neo-militarista” com o Bolsonarismo, ou na simpatia de importantes setores da esquerda com um regime cujas práticas são semelhantes às da ditadura militar brasileira: “Para nós, uma história como a de ‘Ainda Estou Aqui’ é o presente, atualidade (…)”.
De fato desde a mesma semana da publicação do artigo de Martinez, uma série de eventos dramáticos parecem estar mudando a percepção do regime venezuelano na esquerda continental: Seguindo organizações venezuelanas de direitos humanos, na terça-feira (05/08), no centro de Caracas, um grupo para-policial bateu e roubou um grupo de mães de presos políticos, que estavam numa vigília à frente do Supremo Tribunal e logo, na sexta, foi detida Martha Lia Grajales, ativista de direitos humanos colombo-venezuelana vinculada ao Surgentes, um grupo com afiliações de esquerda que, inclusive, está ligado ao chavismo.
Esse novo padrão de repressão de figuras da esquerda e do movimento operário venezuelano — como Enrique Marquez, ex-candidato presidencial que foi detido e desaparecido após fazer denúncias de fraude na eleição do julho do ano passado — já estavam causando mudanças na percepção do regime venezuelano na esquerda do continente, que não estava acostumada a escutar denúncias do Partido Comunista da Venezuela contra o governo; saber de protestos em favelas contra os resultados eleitorais ou do surgimento de grupos organizados de mães e parentes de presos políticos, como os surgidos no cone sul nos anos 1970, numa crescente sensação de dissonância.
Após uma campanha de solidariedade à qual se somaram inclusive as mães da Praça de Maio Grajales foi liberada na noite desta terça feira embora vai enfrentar um juízo enfrentando acusaçoes de terrorismo e instigação ao odio. Mas os venezuelanos estão acostumados a essa “porta giratória” de sequestros e liberações: seguindo organizações de direitos humanos desse país ao redor de 1000 presos políticos detidos, a maioria jovens e pobres capturados após os protestos pós-eleitorais do ano passado, de alguns, como o Enrique Marquez não se sabe nada desde há meses e a saúde de muitos estão em risco.
Os eventos da semana passada parecem parecem ser um ponto de inflexão, mesmo dentro da Venezuela, onde os movimentos pelos direitos humanos e os direitos trabalhistas viraram, de facto, a oposição real e se começam a questionar as divisões sectárias e ideológicas diante da violação de direitos fundamentais, como no resto do continente onde o sequestro de Martha Lia Grajales parece estar mudando — ou consolidando — mudanças nos alinhamentos da esquerda diante do governo venezolano.
Porém, a o sequestro de Martha Grajales é também uma questão migratória: parte da diáspora colombiana, casada com un venezuelano e com filhos dessa nacionalidade, Grajales e representante de um dos movimentos migratórios más grandes do continente que, ao longo das décadas, tem levado milhões de Colombianos a Venezuela e, mais recentemente, milhões de Venezuelanos a Colômbia. Embora pouco conhecido e discutido no Brasil, a situação da Colômbia e da Venezuela se encaixam em um continuum caribenho, andino e amazônico que abrange não só os governos mas duas diásporas e vários atores armados na fronteira.
De qualquer forma, no meio da perseguição de emigrantes nos EUA, o genocidio em Gaza e viradas políticas inéditas como o acercamento entre Trump e Putin resulta evidente que as velhas metáforas com ás que, no Brasil, tentávamos entender o mundo e a nosso vizinhos não dão para mais: os venezuelanos seguramente viraram a primeira comunidade estrangeira no país e a instabilidade nesse país vai afetar a seus vizinhos de formas diferentes. Talvez seja o momento para lembrar que também somos parte da sul america e começar a enxergar os nossos vizinhos pelo que eles são mais do que por aquilo que a gente quer projetar neles, sejam terrores ou ilusões.
Abaixo-assinado: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLScuPZZ9TrRDvs-63DsC70D18a6fydzxkFd9CEU_yXORmyuRtw/viewform?fbzx=-8454058218254018849



