Coração de mãe sempre cabe mais uma: estrangeiras presas e Associação Casa Recomeço.
Dona Silvanete Jesus dos Santos, baiana, 54 anos. Foi conhecer a sede de um projeto, em vias de finalização, na zona norte de São Paulo com moradores de rua e de lá nunca mais saiu. Aquela se tornou sua casa e a dos antigos frequentadores que buscavam acolhida.
Fundou ali mesmo a Associação Casa Recomeço. Por força do destino, em 2007, recebeu Lisy, sul-africana negra que havia acabado de sair da cadeia e não tinha onde morar. Cartas rapidamente circularam nas prisões femininas sobre a mãe que a recém-egressa adotara na terra de arranha-céus.
A demanda cresceu e Dona Silvanete levou a cabo o popular ditado brasileiro “coração de mãe sempre cabe mais um”, neste caso, mais umas: bolivianas, peruanas, paraguaias, guineenses, cabo-verdianas, angolanas, sul-africanas, argelinas, moçambicanas, portuguesas, holandesas, ucranianas, gregas, romenas e também brasileiras de outros estados tiveram, e por enquanto ainda têm, a oportunidade de ficar na Recomeço e desfrutar de seus cuidados.
Não há nenhuma estrangeira sequer que a conheça e não a chame de mãe, mãezinha, mamãe. E ela faz jus ao termo: abre as portas de sua pequena casa alugada (com dois quartos, banheiro, cozinha e quintal) a todas que saem da prisão temporária ou definitivamente e não têm onde morar; prepara refeições, dá conselhos e afeto; cuida das doentes e as leva a médicos e hospitais; arruma empregos (informais) para as interessadas em trabalhar; conhece os amigos que as filhas fizeram na cadeia ou na rua (e, às vezes, torna-se também mãe deles); atravessa a cidade de São Paulo atrás de documentos para seus respectivos casos; vai a Polícia Federal, fóruns, consulados e embaixadas em busca de soluções para problemas até então insolúveis; continua recebendo com todo carinho, em momentos de apuros e comemorações, as filhas que saíram de casa; e, por fim, acompanha, aos prantos, cada uma delas aos portões de embarque do Aeroporto Internacional de Guarulhos para dizer “até nunca mais”!
“O que ganha com isso?”, certa vez lhe perguntei. “Filhas, muitas filhas!” – me respondeu. Verdade? Sim, parcial. Em poucos dias de trabalho de campo, não era difícil perceber sua silenciosa angústia de ganhar algo indesejável, as dívidas, e de não ter condições materiais para seguir adiante.
Os problemas se acumularam: não conta, nem nunca contou, com qualquer profissional para compartilhar tarefas e responsabilidades; não dispõe de financiamento institucional nem de renda mensal própria – vive de escassas doações alimentícias e financeiras e da contribuição das próprias filhas estrangeiras; e, por fim, não dispõe de infra-estrutura para realizar seu trabalho – a casa onde vive hoje está literalmente caindo!
Correu atrás de políticos, igrejas e fundações que pudessem financiar seu trabalho. Espalhou cópias de seu projeto, escrito por mim, por onde podia. Mas “quem quer ajudar preso? Ainda mais estrangeiro?!”, ela constatava toda vez que conversávamos sobre o assunto.
Hoje, um pouco mais distante da cidade de São Paulo e de dona Silvanete, recebo o telefonema de uma de suas filhas estrangeiras com a notícia de que ela está prestes a fechar as portas de sua casa. Tem planos de ir morar com a filha que vive no litoral paulista. Os problemas tomaram conta da Casa e estão a lhe expulsar. Fim da Recomeço?
Bruna Bumachar