As trajetórias das famílias portuguesas que redescobriram o Rio de Janeiro.

“Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. ” Desta forma, Pero Vaz de Caminha terminou sua carta relatando a terra descoberta pelas expedições cabralinas há cinco séculos. Sem encontrar riquezas imediatamente, a sugestão era a catequese dos índios. Porém, 400 anos depois do descobrimento, os portugueses voltaram a olhar para o território brasileiro. A ideia não era mais desbravar as terras tropicais, extraírem seus recursos e retornarem para o país de origem. Portugal, por sua vez, também deixara de ser a potência ultramarina da época das Grandes Navegações e vivia instabilidades econômicas na virada do século XIX para o XX. O Brasil, portanto, se tornou o local de recomeço e de busca de prosperidade para muitos imigrantes lusitanos.

A vinda de imigrantes portugueses nos primeiros anos da República contou com números elevados. Somente nas três primeiras décadas do século XX, cerca de 754 mil portugueses desembarcaram no Brasil, segundo o IBGE. O Rio de Janeiro foi o local onde a comunidade lusitana mais se integrou e isto pode ser visto no número de associações portuguesas na cidade: 57, o maior entre os municípios brasileiros. Os motivos para a chegada de tantos em solo carioca são similares.

— O principal era de ordem econômica. A parte do norte de Portugal possuía uma escassez muito grande e o Brasil tinha uma grande perspectiva de prosperidade, de construir a América. Além disso, existia uma facilidade com o idioma e a religiosidade, majoritariamente católica, atraia mais — afirma Roberto Ribeiro, geógrafo especialista em imigrações portuguesas no Rio e professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro — Além disso, a chegada de portugueses criava uma articulação de redes de amizades para que outros também viessem.

Nas ruas da Zona Portuária, Leopoldina e Tijuca, a presença lusitana aparece na paisagem carioca.

— O patrimônio cultural que os portugueses trouxeram para o Rio está muito associado à paisagem da cidade. Eles deram um novo traçado para os morros da cidade, uma prática que já era conhecida por eles em Portugal — afirma Roberto.

A concentração de portugueses num mesmo espaço não era uma questão de exclusão. Era uma forma de cooperação entre iguais que chegavam na cidade sem rendimentos e contavam com a solidariedade de outros que aqui já estavam..

— Isto é uma característica muito forte da imigração portuguesa. Eles formavam redes de negócios na cidade. Era o dono do bar português que comprava carne no açougue lusitano e que, por sua vez, namorava uma portuguesa… Foi desta forma que alguns bairros como Santo Cristo, Tijuca e Leopoldina passaram a ter uma forte presença de portugueses — analisa Roberto.

Antônio: “O Rio desenvolveu a cultura da colônia”

Quando o pai de Antonio Pereira dos Santos tentou se estabelecer no Rio pela primeira vez,logo na primeira onda de imigração do século XX, não imaginava que precisaria de mais duas tentativas para, enfim, se manter por aqui. A primeira vez, com somente 14 anos, acabou virando somente uma visita aos irmãos que aqui estavam. Foi somente na quarta vez que acabou morando no Largo do Catumbi e passou a vender frutas e legumes na Praça XV. Ressabiado de ser mais uma investida sem sucesso, Antonio tinha deixado a família na cidade do Porto, em Portugal. Em 1935, conseguiu trazê-los para a nova terra.

— Nossa lojinha de subsistência na Praça XV tornou-se uma empresa . Deixamos de vender para o consumidor final para trabalhar como uma grande distribuidora de supermercados. Eu era criança, mas não tinha moleza, todo mundo trabalhava. As horas de estudo eram respeitadas, mas na folga fazíamos serviços de confiança da família, como ir no banco, pagar uma conta, cuidar das cobranças — afirma Antonio Pereira dos Santos, filho com o mesmo nome do pai.

As vendas começaram a crescer de forma exponencial e Antonio, o filho, passou a desbravar novos mercados. O sucesso o fez se tornar o primeiro presidente do Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara, a Cadeg.

— O pessoal da minha faixa etária, os filhos de imigrantes, se mobilizou e construiu o Cadeg. Eu fui um dos líderes e tornei-me o primeiro presidente. Também fui presidente da companhia que construiu o Mercado de Madureira — relembra Antonio.

Os pais e a irmã de Antonio acabaram voltando para Portugal em 1947. Antonio continuou com os seus empreendimentos na Cadeg.

— O Rio desenvolveu a cultura da colônia. Deu para nossos filhos um meio de desenvolvimento humano através da convivência de etnias diferentes e prepará-lo para o mundo de amanhã — afirma Antonio.

Domingos:”Na verdade, sou carioca de Santo Cristo”

“Toma que os filhos são seus”. Foi com essa frase que Domingos Gomes da Rocha e Souza, na época com sete anos, chegou no Rio de Janeiro e reencontrou seu pai, Domingos de Souza. Oriundos de Arouca, um distrito do interior de Aveiro, região portuguesa permeada de fazendas nas décadas de 50 e 60 e, hoje, uma reserva ambiental, a família Souza teve seus primeiros membros desembarcando em território nacional na virada do século.

— Antepassados meus chegaram aqui no final do XIX e, principalmente, no início do século XX e ajudaram muito no Rio. Foram eles que atuaram em reflorestamento da Floresta da Tijuca e na urbanização da região. Vieram para cá porque não tinham perspectiva em Portugal. Já aqui era uma beleza. Você trabalhava e ganhava – conta Domingos de Souza que reelembra que a chegada de seu pai não foi pelos mesmos motivos dos outros irmãos — Meu pai tinha uma situação boa em Portugal. Mas, ao visitar o Rio, acabou se encantando por uma brasileira e abandonou a gente lá.

A mãe e os oito filhos, incluindo Domingos, ficaram esperando o patriarca voltar até que o avô materno de Domingos resolveu que levaria a família toda para o Rio, deixaria sobre a responsabilidade do pai fugitivo e também passaria a morar na cidade.

— Viemos para cá em 1958, eu tinha de sete para oito anos. Chegamos aqui e meu avô disse para o meu PAI: “toma que os filhos são seus”. Ele já estava com um comércio em Santo Cristo e passamos todos a morar aqui e nunca mais saí do bairro. Ele acabou voltando com minha mãe e todos os filhos foram criados juntos — reelembra Domingos.

A família foi crescendo e o comércio na região também. O bar na esquina da rua Orestes ganhou um novo companheiro no bairro sob o comando dos Souzas. Na rua principal do bairro, a paisagem parecia retirada de um reduto português: todos os comerciantes eram de lá. Porém, muito próximo dali, um outro grupo de imigrantes acabaram dividindo o morro da Conceição.

— Existia uma richa entre os portugueses e os italianos aqui. Portugueses não namoravam italianos e vice-versa. Teve até um episódio que os italianos queriam fazer uma igreja em celebração a São Francisco de Paula no alto do morro. Rapidamente, os portugueses correram e construíram uma capela para Nossa Senhora de Montserrat e a dos italianos nunca foi feita — conta Domingos.

Com três filhos, casado com uma brasileira depois de uma viuvez e morando a três prédios do bar que seu pai passou ao seu comando, Domingos brinca sobre a sua naturalidade.

— Eu sou português de nascimento mas, na verdade, sou carioca de Santo Cristo.

Luiz: “Viemos para vencer na vida e conseguimos”

Durante o regime salazarista em Portugal, as colônias lusitanas na África buscavam suas independências com guerras. Para poder conter os levantes, o governo português resolveu recrutar os jovens quando faziam 18 anos. A solução dos portugueses para fugir da guerra estava exatamente em uma antiga ex-colônia lusitana, o Brasil. Foi esse o caso da família Lobo. Em 1951, o filho mais velho de três irmãos veio para o Brasil antes de completar a maioridade. Em 1952, chegou o segundo. E Luiz Lobo, o terceiro, veio em 1954.

— Para vir para cá, tínhamos que ter a “carta de chamada”. Era uma carta que tinha que ser mandada por algum familiar que já estava aqui. Um tio a enviou para meu irmão, que chamou o outro, que me chamou — relembra Luiz Lobo.

O começo, como de seus irmãos, foi difícil e contou com a colaboração de uma rede de contatos. Inicialmente, foi morar na rua da Conceição e trabalhava em uma joalheria na rua Uruguaiana, que era de um amigo da família.

— Fiquei lá de 1954 até 1963. Trabalhava de 7h da manhã até 7h da noite na joalheria. E de 8h da noite até 2h da manhã trabalhava como fotógrafo em praças. O que eu ganhava da fotografia, eu consegui bancar minhas despesas. O meu salário da joalheria, eu guardava. – conta Luiz.

Foi desta forma que o português conseguiu juntar dinheiro para comprar uma casa no Catete junto com um primo. Logo depois, uma proposta mudou completamente sua vida profissional.

— Em 1963, apareceu um amigo querendo montar uma sapataria. Mas eu não tinha capital. Acabamos iniciando em uma loja alugada na Cadeg até conseguirmos um bom ponto em 1970.

A vontade de voltar para Portugal neste tempo para rever amigos e familiares era grande mas o medo era maior.

— Eu não podia voltar para Portugal, era melhor viver discreto no Brasil, que estava passando por uma ditadura, do que ser mandado para lá e servir ao exército. Quando fui em 1970, quase me pegaram. Se eu ficasse mais um mês, eu não conseguiria voltar.

Apesar disso, o Rio também exercia uma influência grande para sua estadia.

— Gosto muito dessa cidade. Viemos para vencer na vida e conseguimos. Aqui criei minha família e cresci profissionalmente.

Raphael Kapa e Renato Grandelle

(O Globo – 02/05/2015)