Refugiados encaram preconceito e xenofobia por sonho de bola.
“Às vezes a gente…quando a gente fala deste assunto…olha, é muito difícil. Vou sempre ter pesadelos com as coisas horríveis que vi. Não gosto nem de lembrar ou falar sobre este assunto.”
O assunto? A guerra. O som dos disparos de pesados rifles, o grito de desespero dos feridos e a tensão em meio aos confrontos ainda atormentam os pensamentos de Lacine Sanogo. Este marfinense de 23 anos carrega consigo uma arma poderosa para apagar da memória o filme de terror vivido durante boa parte da vida: a bola. Sim, o futebol serve de alicerce em um ambiente hostil e cruel de morte.
Para aliar o sonho da bola com uma vida longe do sofrimento da guerra, Lacine seguiu o caminho de milhares de compatriotas: fugiu do país natal rumo ao desconhecido. O destino? O Brasil, por um simples fator. Mesmo com 7 a 1, Marins, Marco Polos e Teixeiras, a camisa amarela ainda é enxergada com o respeito da alcunha de “país do futebol”.
Há duas semanas, Lacine participou da Copa do Mundo dos Refugiados, torneio organizado em São Paulo para unir diferentes culturas. Ele e mais dois profissionais – Harrison Uche, da Nigéria, e “Ouro”, de Togo – participaram do evento, que reuniu 270 homens, número ínfimo se comparado ao total de pessoas que deixaram a dura realidade de países em guerra por um sonho (utópico?) de paz.
De acordo com números divulgados pelo Centro de Referência para Refugiados, a pedido do ESPN.com.br, a quantidade de consultas aumentou 2000% nos últimos quatro anos; mais de 3.600 pessoas buscaram se estabelecer na capital paulista.
Aqui no Brasil, o jovem marfinense sonhava com oportunidades. Ledo engano. Tarimbado por se formar na renomada Academia Mimosif, casa responsável por lapidar talentos como Yayá Touré para o esporte bretão, Sanogo se surpreendeu. Enquanto relatos de estrangeiros na Copa enfatizavam a hospitalidade do brasileiro, no futebol, o “gringo” sofre. Histórias do marfinense mostram que ele fugiu de uma guerra para entrar em outra – a da oportunidade.
“Nunca pensei que no Brasil seria assim. Quando estava na África, lá na academia, sonhávamos até em jogar aqui, a terra do futebol. A realidade não é assim”, relatou Lacine ao ESPN.com.br, em um bom português para quem está no país desde novembro de 2011.
Afinal, qual é a realidade relatada por Sanogo? O africano agora necessita batalhar contra o preconceito. “Fui a um time da Grande São Paulo, mas não fiquei porque lá e em outros lugares, ninguém dá a oportunidade para estrangeiro. Querem dinheiro para você poder assinar o contrato. Querem que pague para jogar. Já me cobraram até R$ 8 mil com a desculpa de ‘aqui é Brasil, tem muito jogador’. Nunca ouvi falar disso”, indigna-se.
Contemporâneo de Gervinho, atual jogador da Roma, na Academia Mimosif, Lacine Sanogo atualmente procura um clube para jogar. Além da tentativa de atuar na Grande São Paulo, o meio-campista marfinense viajou para Santa Catarina em 2013, quando realizou testes no Inter de Lages. Uma lesão no joelho, no entanto, impediu o acerto e o passo decisivo para viver o profissionalismo.
Um alento veio durante a Copa do Mundo de 2014, quando Lacine Sanogo se deslocou até Guarulhos para rever os amigos de academia. Foi o último encontro com o “parça” Gervinho e os “veteranos” Kolo e Yayá Touré. “Conversei com o Gervinho há dois meses, mas depois não tive mais contato. Encontrei com ele, Kolo e Yayá no aeroporto, quando estavam para o Mundial. Eram três grupos na academia: o mais velho, com Kolo; o segundo, com Yayá, e um terceiro, comigo e Gervinho”, recorda-se, com saudades.
O sonho de deixar o país natal para trás não se resume a Lacine. Mais a oeste do continente africano, Harrison Uche, 23 anos, deixou a Nigéria no ano de 2009 – antes do crescimento do Boko Haram, grupo terrorista responsável por seguidos ataques no norte do país – com o sonho de viver de futebol no Brasil. Assim como o marfinense, o nigeriano frustrou-se pela ganância alheia; neste caso, do empresário argentino Marcelo Hausman, que é acusado de enganá-lo ao vender o sonho do profissionalismo “na terra do futebol”.
“Um pastor lá em Lagos (principal cidade da Nigéria) me conhecia e apresentou um empresário argentino, que foi observar jogadores. Ele gostou e me trouxe para realizar testes no Internacional, de Porto Alegre. Cheguei lá e treinei bem, mas aí ele pediu um dinheiro alto e o clube não quis que eu continuasse”, conta Uche.
“Ele queria que eu fosse embora para a Nigéria e disse que depois me arrumaria um time. Mas já sabia dele. Ele já me levou para o Hertha Berlim, na Alemanha, e no Espanyol, da Espanha, e fez a mesma coisa: pediu um dinheiro para os clubes pelo negócio. Eu jogava bem e ele vinha com conversinha de que o time não queria pagar o que eu queria. Pessoalmente, ele era muito gente boa, mas, como empresário, muito sujo”, complementa o nigeriano, outro desempregado da bola no momento.
Xenofobia fora das quatro linhas
Lacine Sanogo mostra-se descrente. O sonho de vencer no futebol brasileiro e jogar em “qualquer equipe”, como reforçou por diversas vezes durante a entrevista, surge como algo distante. O preconceito relatado – especialmente pela cobrança de “propinas” pelo simples fato de ele ser estrangeiro – dentro do futebol surge como a menor parte das dificuldades de encarar o Brasil.
Morador da capital paulista, Sanogo surpreendeu-se de forma negativa nas ruas. Em tempos de intolerância e xenofobia – preconceito ainda mais exposto no início do mês de agosto, quando seis haitianos foram baleados em um bairro central de São Paulo pelo simples fato de serem haitianos -, o marfinense sofreu na pele o comportamento mesquinho de alguns brasileiros.
“Olha, aqui tem bastante preconceito. Muitas vezes me falaram: ‘você está no Brasil! Aqui não é a África não, viu?'”, relatou. “Já falaram muitas vezes comigo assim. Acham que a gente veio por estar sofrendo com dinheiro, que somos miseráveis. A Costa do Marfim tem dinheiro, e eu saí de lá por um motivo de guerra. É muito triste”, lamenta Sanogo.
Dono de uma imagem de país acolhedor, o Brasil vive uma onda de intolerância cada vez mais crescente, seja na vida “normal”, seja na “internet”.
Segundo levantamento da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da ONG SaferNet Brasil, somente em 2014, o número de reclamações chegou a 189.211. Deste grupo de denunciados, assusta o crescimento do sentimento de xenofobia: 365,46% a mais do que o registrado no ano de 2013.
“Quando cheguei no Brasil, pensava em viver meu sonho. Jamais imaginaria que seria assim. Aqui é muito mais difícil do que pensava, porque não dão chance para estrangeiros. Na minha cabeça era assim: lá é a terra do futebol, se você jogar bem terá chances. Mas não, não dão chances”, encerra Sanogo, que relaciona as dificuldades no futebol com o desafio diário de viver longe de casa.
Ele vê o sonho todo dia
A vida longe de casa, segundo os dois africanos, torna ainda mais difícil o sonho do profissionalismo no Brasil. Se Sanogo sofreu com o preconceito, Uche travou guerras com a burocracia daqui. O nigeriano rodou o país atrás de uma chance, mas o papelório pelo visto de trabalho dificultou as coisas. Somente após se casar com uma brasileira, o volante conseguiu o protocolo que o liberou para assinar contratos profissionais.
Uche defendeu nesta temporada o Estanciano, participando da campanha do vice-campeonato sergipano deste ano. Após o estadual, o compromisso de quatro meses, o primeiro profissional assinado pelo jovem volante de 23 anos, chegou ao fim. À procura do sonho da bola, o nigeriano passou pelo CSA de Alagoas – time no qual não ficou pela falta de documentos que comprovassem a sua legalidade no país -, Bahia de Feira de Santana e futebol paranaense.
No entanto, São Paulo se tornou o seu lar. Na metrópole, onde permaneceu graças a um compatriota que já vivia na capital paulista, o nigeriano encontrou duas paixões: a mulher e um clube de futebol, que sonha, um dia, vestir a camisa.
“Encontrei minha esposa em São Paulo. Hoje sou casado com uma brasileira, tenho uma filha de um ano e quatro meses. Estou em casa esperando uma nova oportunidade”, relata o nigeriano, que não esconde a paixão por um “vizinho”. Uche tem residência em Itaquera e observa diariamente a imponente Arena Corinthians.
“Sonho em defender um time grande um dia. Sei que é muito difícil, mas não há nada que Deus possa fazer. Qualquer time grande está valendo, mas um deles é sonho: o Corinthians. Moro em Itaquera, perto do estádio, e vejo sempre a torcida, é muito legal. Gosto muito do Corinthians”, declara Uche, que ainda não prestigiou o time adotado no Brasil dentro do estádio.
Para Uche e Sanogo, a realidade difícil dos seus países ficou para trás. No entanto, em uma terra nova, o preconceito, xenofobia e a batalha para se colocarem em um mercado tão competitivo tornam a estadia aqui frustrada. Mas, como o próprio nigeriano repete, “sonhos não são impossíveis”, especialmente para quem conviveu boa parte da vida diante de pesadelos reais.
José Edgar de Matos
(ESPN – 21/08/2015)