Refugiados do Congo buscam a paz lutando pelo sonho Olímpico no Rio de Janeiro.
Eles chegaram ao Rio de Janeiro no fim de agosto de 2013, sem maiores expectativas: iriam disputar o Mundial de Judô, representando seu país, a República Democrática do Congo (que tornou-se independente da Bélgica em 1960 e que, entre 1965 e 1996, adotava o nome Zaire) para ganhar experiência. Dois anos e sete meses depois, ainda estão na cidade. Sem pátria para defender, trabalham por um feito extraordinário: participar dos Jogos Olímpicos Rio 2016 pela primeira equipe de atletas refugiados que o Comitê Olímpico Internacional vai selecionar para competir sob sua bandeira. Serão de cinco a dez nomes, a ser anunciados oficialmente em junho.
Na semana passada, Popole Misenga, 24 anos, e Yolande Mabika, 28, assinaram, na sede do Comitê Olímpico do Brasil uma carta de intenção para participar do programa Solidariedade Olímpica, do COI. Vão passar a ganhar ajuda de custo da entidade, que se somará ao apoio (cesta básica, auxílio transporte) e à valiosa orientação técnica que já recebem há um ano do Instituto Reação, ONG capitaneada pelo medalhista Olímpico brasileiro Flávio Canto, referência no judô nacional.
“É o meu sonho, o sonho de muitos africanos. O Comitê nos enxergou como seres humanos e está dando essa oportunidade… Vou lutar por todos os refugiados” Popole Misenga.
Por que eles pediram refúgio ao Brasil?
Foi Yolande quem decidiu fugir do hotel onde a delegação do Congo estava hospedada no Centro do Rio. Inconformada com o descaso dos dirigentes de seu país, ela nem chegou a competir no Mundial de 2013. “Eles nos deixaram sozinhos, sem dinheiro e sem comida por dois dias”, lembra. Isso se somou à revolta por maus tratos recorrentes ao longo dos anos: após resultados decepcionantes, conta Popole, eles eram obrigados pelos treinadores a dormir em celas. Ele ainda chegou a competir no Mundial, foi eliminado na primeira luta – punido, ironicamente, por falta de combatividade.
Sem falar português, Yolande saiu pelo Centro do Rio abordando todos os negros que via, imaginando que pudessem ser africanos. Dois dias – e uma noite dormida na rua – depois, já estava com conexões em Brás de Pina, zona norte, na favela Cinco Bocas, onde se concentra boa parte da comunidade de congoleses radicada na cidade. A judoca mandou uma amiga buscar Popole no hotel e os dois se reencontraram. “A gente se abraçou, foi uma felicidade”, lembra. Os dois anos seguintes, porém, seriam de muita dificuldade.
Fluxo migratório Congo-Rio de Janeiro em alta
Há cerca de 8.500 pessoas nascidas na República Democrática do Congo vivendo no Brasil – 900 delas no Rio. O país africano é hoje o maior “fornecedor” de refugiados à Cidade Maravilhosa: desde 2014, já chegaram 498 (da Síria, segundo lugar, foram 181 no mesmo período).
Cinco Bocas é um favela horizontal “urbanizada” que nos anos 90 chegou a ser referência para o programa Favela-Bairro, da prefeitura do Rio de Janeiro. Há muitos anos, porém, costuma aparecer nos noticiários por sua segurança degradada. Foi lá que Yolande e Popole tiveram de recomeçar a vida, antes de solicitar oficialmente refúgio, encaminhado através da Cáritas, organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Foram dois anos com pouco tempo para dedicar os músculos ao esporte. Entre bicos e subempregos, Yolande trabalhou limpando máquinas de cortar legumes em Teresópolis; Popole foi auxiliar de cargas de caminhão. Ela mora até hoje de favor, em outra favela, Cidade Alta, na zona norte, com uma amiga e os filhos dela. Ele vive em Brás de Pina com a mulher (desempregada há mais de um ano), enteado e um filho brasileiro, Elias, 13 meses. Pena para pagar as contas todo mês e sonha em se mudar para uma parte mais segura da cidade. “Meu filho vai ter que lutar também, mas só no tatame”, prevê.
“Consegui sair de um país ameaçado por guerras, mas ainda estou buscando a paz. Agradeço a Deus todos os dias ao acordar, por ter sobrevivido a mais um dia” Popole Misenga.
Infâncias trágicas
Yolande Mabika chora ao citar os nomes dos quatro irmãos com quem não tem contato desde a infância, em Bukavu, no leste da República Democrática do Congo. “Não sei se estão bem, se estão vivos…” Em 1998, ela tinha apenas dez anos quando foi impedida de voltar para casa por guerrilheiros e se viu separada de Guillain, Beby, Dody, Bobette – e dos pais. Viu muitos corpos e feridos pelas ruas até ser resgatada por militares, embarcada em um avião e deixada em um estádio em Kinsasha, capital do país, a cerca de 1.500 quilômetros. Lá, crianças e adultos, assim como ela, desgarrados de suas famílias, ficaram amontoados por meses. Pouco depois, Yolande começaria as aulas de luta.
“Eram muitas crianças. A gente tinha de brigar por tudo. Eu vi o judô como uma forma de me defender e sobreviver” Yolande Mabika.
O esporte foi uma das saídas que o governo congolês encontrou para dar rumo a tantas daquelas crianças órfãs. Com Popole, campeão nacional e medalha de bronze no Campeonato Africano sub-20, em 2010, não foi diferente. Ele conta que, aos seis anos, depois de ter a mãe assassinada em Kisangani, a terceira maior cidade do país, na região nordeste, fugiu e se embrenhou pela floresta. Teria ficado, calcula, três dias vagando até ser resgatado por um barco e levado a Kinshasa. Para trás ficaram seus três irmãos, Naomi, Joli e Chico, dos quais não teve mais notícias. “Tenho muita saudade. Deles e de alguns amigos que me ajudaram depois no Congo. Quero fazer bonito por eles.”
Mais de cinco milhões de mortos
Segundo as Nações Unidas, a expectativa de vida no República Democrática do Congo é de apenas 48 anos para homens e 51 anos para mulheres. Esses são apenas alguns dos números dramáticos do país, o segundo maior da África e 11º maior do mundo em área territorial. A guerra que aterrorizou o leste do Congo e envolveu nações vizinhas entre 1997 e 2003 matou, segundo estimativas, cerca de 5,4 milhões de pessoas. Desde então, periodicamente, a violência de milícias e guerrilhas volta a assolar algumas regiões do país, que permanece sob o comando de Joseph Kabila (no poder desde 2001).
“Agressivos” entre feras brasileiras
Popole e Yolande praticam três vezes por semana sob supervisão de Geraldo Bernardes, 73 anos, técnico que comandou a equipe brasileira de judô em quatro Jogos Olímpicos (de Seul 1988 a Sydney 2000). Eles contam também com o trabalho da mesma equipe multidisciplinar (nutricionista, fisioterapeuta, psicóloga) que atende à ex-campeã mundial Rafaela Silva, cotada para medalha Olímpica na categoria até 57kg. “Aqui o nível é alto, treinamos outro dia com o Victor Penalber (bronze no Pan de Toronto 2015), esperança brasileira nos meio médios (até 81 kg). Eles ainda vão participar do campeonato carioca e de torneios em São Paulo para melhorar a dinâmica de competição e se adaptar melhor às regras mais recentes (em vigor desde 2014)”, descreve Geraldo.
“Os dois são joias a ser lapidadas. Se forem aos Jogos, vão contabilizar só 16 meses de preparação adequada. Trabalhamos em busca do tempo perdido” Geraldo Bernardes, treinador.
A adaptação não foi fácil. Com agressividade à flor da pele, os dois judocas congoleses foram logo intimados a se adaptar ao fair-play vigente entre os companheiros de treinos na unidade Jacarepaguá do Reação. “Precisei conversar, disse que não era para brigar, para pegar na porrada. Eles estavam acostumados a ser punidos, eram maltratados quando perdiam. Esse ímpeto pode ser bem canalizado para a competição, mas a técnica vem antes”, conta Geraldo.
“Eu sou um guerreiro, mas entendi que aqui é um treino entre amigos. A gente conversa muito, sem perder a concentração. Já aprendi muito na parte técnica” Popole Misenga.
O preparador físico Paulo Caruso completa: “O clima aqui é de família, um ajuda o outro, mesmo entre atletas que disputam vagas na seleção”. Ele observou de perto Popole ganhar sete quilos de massa desde o início do trabalho. “Ficou grande, com 95 kg, mas dá bem para bater o peso da categoria (até 90kg).” O congolês vibra com a evolução em todos os sentidos: “Estou sentindo no corpo o que estava faltando ao meu judô”. Yolande também se vê transformada pelo contato com a escola de um país de boa tradição no esporte: o Brasil conquistou 19 medalhas Olímpicas na modalidade:
“É muito diferente do judô que aprendemos na África. Mas já me habituei ao estilo brasileiro” Yolande Mabika.
Opção pelo Rio
O sotaque carregado é só detalhe. Popole já se considera à vontade no Rio de Janeiro: torce pelo Flamengo, aprecia um bom pagode, gosta do filme “Cidade de Deus” e adora açaí e a sopa de ervilha que sua mulher prepara. “Meu filho é carioca”, cita, como se contasse vantagem.
“Quero ganhar uma medalha e inspirar refugiados do mundo todo. Mas depois quero seguir aqui no Rio. Deus colocou muita magia nesta cidade” Popole Misenga.
Yolande também quer seguir desfrutando a cidade, vivendo do esporte ou de alguma profissão relacionada (ela e Popole passarão a ter aulas de português, matemática e outras disciplinas, através de convênio entre o Instituto Reação e a universidade Estácio de Sá). “Se eu ficar lembrando, remoendo coisas do meu pais, vou ficar doente da cabeça. Quero pensar no Brasil como minha casa. Nunca vou esquecer como o país me recebeu”, conta, emocionada.
Pedro Só
(Rio 2016 – 01/04/2016)