“O Brasil tem uma política fraterna de abrir as fronteiras, mas falta uma política migratória”

O Brasil, visto como um país promissor por milhares de estrangeiros, experimentou nos últimos anos um crescimento significativo do número de refugiados. Porém, diante da falta de políticas migratórias, muitos vêm passando dificuldade no país. A maior parte vem da Síria – onde a guerra civil já provocou a saída de 5 milhões de cidadãos – de Angola, da Colômbia e da República Democrática do Congo, conforme demonstra a pesquisa Sistema de Refúgio Brasileiro, em balanço até abril de 2016. Impulsionadas por eles, mas também por pessoas de outras nacionalidades, as solicitações de refúgio em território brasileiro cresceram nada menos que 2.868% nos últimos cinco anos.

A professora do curso de direito da PUC Minas, Paola Coelho Gersztein, destaca que, apesar de receber bem os refugiados, não há políticas públicas para inseri-los na maior parte das cidades brasileiras. “O Brasil tem uma política fraterna e amorosa de abrir as fronteiras, mas falta uma política migratória”, afirma.

A iniciativas oficiais se mostram insuficientes, especialmente diante da disparada da demanda nos últimos anos. Em 2010, eram 966 solicitações de refúgio em todo o Brasil, número que aumentou para 28.670 em 2015. “Os refugiados são vítimas de perseguição ou fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade, opinião política e pertencimento a grupo social”, explica Paola Gersztein. Entre os países latino-americanos, a fundamentação dos pedidos de refúgio se estende para situações graves e generalizadas de violação dos direitos humanos.

Até 2010, haviam sido reconhecidos 3.904 refugiados no Brasil. Em abril deste ano, esse total chegou a 8.863, o que representa aumento de 127% no acumulado – incluindo os reassentados. Com o aumento do fluxo migratório, o governo brasileiro decidiu tomar medidas que facilitassem a entrada desses imigrantes no território e sua inserção à sociedade.

A professora Paola Gersztein lembra que países signatários da Convenção de Refugiados (1951) e de protocolo sobre o tema das Nações Unidas, de 1967, precisam conceder o status de refugiado a quem sofre perseguições e consegue chegar ao seu território. Ela lembra que, por essa razão, muitos países europeus constroem barreiras, para que não sejam o primeiro destino de refugiados. “Quem chega ao Brasil por qualquer via – aérea, pelo mar ou terrestre – deve ter o status de refugiado reconhecido, mesmo quando em situação migratória irregular”, afirma ela, uma das principais especialistas no assunto no estado.

Casos

Um dos estrangeiros que escolheram Belo Horizonte como uma esperança de porto seguro foi o sírio June Isahak, de 22 anos. Ele veio com um grupo de refugiados em 2014 para o Brasil, desembarcando na capital mineira. Há apenas dois anos em BH, ele não apenas já consegue falar o português de maneira fluente como assimilou mineirismos, como o “nó”, o “uai” ou “Nossa Senhora”. “Uai, já sou mineiro. Nunca peguei aula de português, tudo o que aprendi foi aqui, na loja”, afirma o jovem, que trabalha no Vila Árabe.

A família está em Damasco, a capital da Síria, onde não há tantos atentados quanto em outros locais do país. “Cheguei como refugiado. Ganhei a carteira de imigrante que vale por dois anos. Em 31 de julho vou receber o documento para mais cinco anos”, comemora ele, que se sente completamente inserido na cultura brasileira. “Com a carteira, fico brasileiro mesmo. Gosto muito do brasileiro. Como BH foi o primeiro lugar que cheguei, peguei o jeito de mineiro”, brinca. Nesse meio tempo, ele chegou inclusive a participar das comemorações durante a Copa do Mundo, em 2014, e do carnaval de rua, em 2015 e 2016.

Mas a integração não é tão fácil para todos. O nigeriano B., de 50 anos, que prefere não se identificar, chegou ao Brasil há um ano. Atualmente, desempregado, tenta conseguir recursos com a venda de panos de prato, cofres de barro e tecidos africanos na Praça Sete, Centro de BH. No local, é possível encontrar também ganeses, que deixaram seu país para tentar escapar da guerra. As dificuldades de B. são agravadas pelo fato de não falar português – usa o inglês, língua oficial de seu país, para se comunicar. Depois de uma certa resistência inicial, ele aceitou contar sua história, mas não quis ser fotografado.

O nigeriano deixou esposa e quatro crianças na África do Sul, para onde a família migrou fugindo dos conflitos étnicos que levam ao massacre de milhares de conterrâneos. A xenofobia é uma das marcas mais fortes da experiência de vida de B., que relata como os ataques, motivados simplesmente pelo fato de alguém fazer parte de etnia diferente, são constantes nas cidades em que viveu antes de chegar ao Brasil.

A imagem de um povo alegre foi o que o conquistou. Ao chegar ao país, obteve o visto para ficar e trabalhar, mas não consegue emprego. Mesmo assim, ele, que atuava como comerciante no país de origem, destaca a hospitalidade do povo brasileiro. “As pessoas te recebem, dão um canto na sua casa para que você possa dormir, te dão o que comer…” Um dos sonhos do imigrante é trazer a família. Enquanto não o realiza, ele só consegue dizer à esposa e aos filhos, por telefone, que anda bem. “Ligo para dizer que estou vivo”, afirma.

Causos

Preconceitos, dificuldades para encontrar emprego e, ao mesmo tempo, hospitalidade da população. Foi assim que quatro refugiados — dois congoleses, um sírio e uma colombiana — descreveram sua vida no Brasil, durante seminário organizado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e parceiros no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.

Há quase dois anos no Brasil, a congolesa Mireille Mulanga fugiu da violência de milícias e grupos rebeldes, que vêm utilizando o estupro massivo de mulheres e crianças como arma de guerra em seu país. Trabalhando como intérprete na Cáritas do Rio, organização parceira do ACNUR, ela notou uma recente mudança no fluxo de refugiados congoleses.

“É uma situação bem grave que estou percebendo hoje. Metade dos refugiados que chegam são mulheres grávidas ou com filhos. Os rebeldes estão cada vez mais visando às mulheres”, disse Mireille, explicando que as próprias famílias têm enviado suas mulheres ao exterior como forma de protegê-las da violência.

Dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) confirmam essa situação. Segundo o órgão, as mulheres representavam 15,9 mil dos 28,7 mil pedidos de refúgio pendentes no Brasil até o fim de 2015. Entre os 8.493 refugiados já reconhecidos até o fim do ano passado, quase 30% são mulheres.

“[A República Democrática do] Congo é hoje a capital mundial do estupro”, declarou Mirrelle, explicando que, além da extrema violência à qual são submetidas, elas têm sua vida praticamente inviabilizada na comunidade local após o estupro. “A mulher passa a ser considerada lixo, ninguém mais quer conversar com ela. Fica bem marginalizada na sociedade”, disse.

Há oito anos no país, o congolês Charly Kongo Nzalambila, que também fugiu da violência, chamou atenção para o preconceito enfrentado pelos africanos no Brasil. “Muitas vezes somos tratados como ignorantes, dizem que moramos com macacos e leões na floresta, só pelo fato de sermos africanos”, afirmou em sua apresentação no evento “Vozes do Refúgio: dados globais, olhares locais”.

Segundo ele, nos momentos em que o fluxo de chegadas ao Brasil aumenta, os refugiados passam a ser serem cada vez mais associados à criminalidade. No entanto, ele acredita que esse sentimento não seja homogêneo em toda a população.

“O povo brasileiro é maravilhoso, se oferece para ajudar, para dar comida, ensinar português. Se alguns parassem de confundir refugiados com foragidos, já seria uma coisa boa”, disse Charly, completando que o Estado brasileiro também tem sido receptivo, uma vez que a lei do refúgio (Lei nº 9.474/97) prevê que logo após o pedido de asilo o refugiado já possa obter documentos para trabalhar.

As dificuldades para encontrar um emprego digno no Brasil foi justamente um dos pontos levantados pela colombiana Nelly Camacho Barbosa, no país há quatro anos. Ela fugiu do conflito entre Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), exército e milícias paramilitares na Colômbia, onde viu famílias e povoados inteiros serem massacrados.

Depois de trabalhar em uma empresa privada onde ganhava cerca de 1 mil reais por mês e não conseguia sustentar a família, Nelly tenta agora ganhar a vida vendendo artesanato nas ruas da capital fluminense. No entanto, como não obteve autorização da prefeitura para tal, preocupa-se com sua situação. “Fico angustiada, porque é tudo o que tenho para me sustentar”, declarou.

“Não é fácil deixar o país, principalmente nas condições difíceis como saem os refugiados”, afirmou. “É um pouco difícil conseguir trabalho, já que temos outra cultura, outro idioma. Não é fácil recomeçar a vida.”

O sírio Khaled Feres, 27 anos, também passou a trabalhar como ambulante, vendendo comida típica de seu país nas ruas do Rio, depois de tentativas frustradas para continuar seus estudos em Odontologia, aos quais se dedicava em Damasco.

Refugiado no Brasil há dois anos, ele criticou a burocracia das universidades brasileiras. “Me pediram histórico escolar, comprovante de residência. Não tenho todos esses documentos”, disse.

Apesar disso, ele é grato ao acolhimento do Brasil, após ter fugido de uma guerra que já deixou pelo menos 500 mil mortos desde 2011.

“Muitos pensam que na Síria sempre teve guerra, mas não é isso. É um país em que se tinha uma boa vida”, afirmou, lembrando que o país recebeu muitos refugiados durante duas guerras mundiais, o que lhe está sendo negado agora por muitos países, principalmente europeus. “Quero que meus filhos tenham sangue brasileiro”, concluiu.

(A partir de: EM e ACNUR)