Em Mogi das Cruzes, os refugiados árabes recomeçam a vida.
Apesar da grave crise econômica e política enfrentada nos últimos anos pelos brasileiros, o País ainda é considerado um porto seguro para refugiados do Oriente Médio, principalmente sírios, palestinos e egípcios. A comunidade árabe de Mogi das Cruzes, com forte representatividade no comércio e no setor de prestação de serviços, continua recebendo estas famílias que buscam um lugar seguro para refazer a vida longe da guerra a exemplo daqueles que aqui chegaram há quase uma década, conseguiram reescrever a própria história e não pensam em sair tão cedo da Cidade, onde superaram dificuldades, criaram raízes, formaram família e venceram.
Segundo a descendente palestina nascida na Jordânia, Faysa Daoud, presidente da Organização Não-Governamental (ONG) Associação de Refugiados – Refúgio Brasil, de Mogi das Cruzes, a Cidade conta hoje com 38 famílias refugiadas da Síria, Iraque, Palestina e Egito, com uma média de quatro pessoas cada núcleo. “Eles começaram a chegar aqui em 2007 e depois disso não pararam mais. O último grupo chegou há um mês, vindo da Síria. A ONG dá apoio, desde a orientação para documentação, ajuda para moradia, saúde, alimentação e, principalmente, no idioma, que é a maior dificuldade. Logo que chegam, precisam de acompanhamento em todos os lugares que vão”, conta Faysa, que veio para o Brasil há 37 anos como imigrante.
Ela também explica que, na maioria das vezes, depois que conseguem se estabelecer e principalmente manter um trabalho para sustento da família, os refugiados procuram trazer os pais, mulher e filhos para cá. “Aqui, apesar das dificuldades enfrentadas também pelos brasileiros, eles têm condições de refazer a vida. O emprego é complicado, mas eles conseguem trabalho em restaurantes, lanchonetes, lojas de móveis, plantações, como gesseiros, ajudantes gerais… Há as mulheres que fazem doces e salgados árabes para fora e, infelizmente, uma parte está desempregada. Daqueles que vieram solteiros, a maioria se casa com brasileiros”, completa Faysa.
Quem também acompanha de perto as dificuldades enfrentadas pelos refugiados com o idioma é a professora Fatima Mohamad Shaker Agha, 79 anos, que já conhecida no ensino do português à boa parte da comunidade árabe mogiana, passou a dar assistência também aos palestinos, sírios e egípcios que para cá vieram por causa dos conflitos em seus países de origem.
“A comunicação é tudo na vida da gente e a maioria deles chega sem entender e falar o português, então enfrenta muita dificuldade para conseguir emprego e se adaptar ao País. Depois de superada esta etapa, eles se acostumam mais fácil com a nova vida”, explica Fatima, que recebe em casa a visita de vários de seus alunos, que se tornaram amigos. “Criamos um vínculo e sempre que precisam de ajuda sabem com quem podem contar”, enfatiza.
Além do apoio da ONG, de aulas de idiomas e da comunidade árabe em geral, os refugiados têm como ponto de encontro a Mesquita Islâmica de Mogi das Cruzes, no Alto do Ipiranga. “Temos cerca de 30 famílias cadastradas que ajudamos com cestas básicas e em outras necessidades. Ultimamente, Mogi tem recebido mais sírios e a Mesquita sempre ajuda, como fez na época em que vieram quase 100 palestinos para cá, em 2007. Mas sempre ensinamos estas pessoas a pescarem e não a só ganharem o peixe, porque precisam trabalhar para sustentarem suas famílias aqui”, destaca Mohamad Ahmad Saada, 72 anos, presidente da Sociedade Beneficente e Cultural Islâmica de Mogi.
Os mais novos vencem as barreiras mais rápido
Após o bombardeio do prédio em que moravam e a poucos dias da convocação do filho mais velho para a guerra, Samer Alhlak e Noora Olaimi deixaram os três apartamentos e o supermercado que tinham em Damasco, na Síria, para embarcarem rumo ao Brasil com quase nada no bolso. Ao lado dos quatro filhos – Mike, Diana, Firas e Majed – e de mais quatro rapazes refugiados sírios, eles seguiram viagem rumo a uma vida mais tranquila.
Assim chegaram a São Paulo, em dezembro de 2013, onde receberam a informação de que em Mogi das Cruzes a comunidade árabe é bastante acolhedora. E tanto foi assim que a família ainda encontra no casal Ney e Mounira Saada todo apoio. “Nós os adotamos, ajudamos no que podemos e desde então ela trabalha comigo, na cozinha de casa, onde preparamos pratos do restaurante (Imporium Restaurante Árabe)”, conta Mounira.
No estabelecimento comercial comandado pela família, na Avenida Capitão Manoel Rudge, também na Vila Oliveira, há outros três funcionários vindos da Síria – a cozinheira é especializada em pratos assados e os outros dois no preparo de shawarma (sanduíche de carne, frango ou misto servido no pão sírio, com salada e temperos típicos). “Como eles estão acostumados com a culinária, já sabem o jeito de preparar os pratos e como temperá-los. Por isso há maior facilidade de encontrarem trabalho em restaurantes e lanchonetes, principalmente aqueles que chegam ao Brasil sem formação específica”, explica Ney Saada, que cuidou da tradução da entrevista concedida por Samer e Noora a O Diário.
Segundo ela, a opção pela Cidade foi certa. “Gostamos de Mogi e aqui nossos filhos estão bem. O mais velho (Mike) se casou com uma mogiana e os outros também estão estudando”, comemora Noora.
A maior dificuldade, segundo Samer, foi o idioma. “É complicado chegar a um país diferente do nosso sem conseguir se comunicar, mas encontramos apoio na comunidade. Nossos filhos fizeram amizade na escola e também falam o português. Só eu e minha mulher continuamos falando em árabe, mas estamos bem mais seguros do que lá”, conta.
O plano é ficar por muito tempo
Há uma década, o refugiado palestino Qades Khaled Abu Taha, hoje com 34 anos, viu a história de sua família mudar. Após viverem quatro anos no campo de refugiados Paz e Conflito, no Iraque, eles chegaram ao Brasil em 5 de outubro de 2007. Ele, o pai Khaled, a mãe Donya e os irmãos Said e Ali encontraram em Mogi das Cruzes o primeiro apoio para refazer a vida. Hoje, Qades se preparar para abertura do segundo restaurante com pratos da culinária típica árabe em Guararema – o primeiro já tem fiel clientela no Distrito de Luís Carlos.
“Fomos muito bem recebidos e viemos pela ONU (Organização das Nações Unidas), que fez um trato com o governo brasileiro para um programa de apoio aos refugiados durante 2 anos. A ONU recebia o dinheiro do aluguel do governo iraquiano e conseguiu nos manter neste período, mas não fiquei nem um mês sem emprego quando cheguei. Em novembro de 2007 já estava trabalhando como ajudante em uma loja de móveis, depois fui para um comércio de materiais de construção, vendi comida no trem, depois em barraca da feira noturna de Mogi, ainda passei pela Demax e outros lugares até abrir o restaurante Al Mahata, em Luís Carlos”, conta Qades, que comanda o comércio ao lado da mãe, Donya, e da mulher, a brasileira Rosane Leão.
A vida nova em terras brasileiras deu tão certo que o plano é permanecer por aqui por muito tempo. Os irmãos, embora não estejam mais no Alto Tietê, também não deixaram o Brasil. Um deles trabalha em Rondônia e o outro no Mato Grosso.
“Alguns refugiados que vieram para cá foram para outros lugares, mas muitos ficaram em Mogi e cidades da Região porque foram bem acolhidos e conseguiram refazer a vida, principalmente longe da guerra”, revela, contando que o trabalho no restaurante exige tanta dedicação que não consegue manter ter contato frequente com os outros refugiados que vieram com ele e família – ao todo eram 100 pessoas -, assim como com as pessoas da comunidade árabe daqui, com exceção dos que viraram seus clientes no restaurante. Que não são poucos.
Shahim abriu loja e fez família
Com tradição no comércio desde os tempos em que vivia em Bagdá, no Iraque, o refugiado palestino Baha Shahin, 37 anos, se manteve neste segmento de negócios em Mogi das Cruzes. Em 2007, ele chegou na Cidade com o pai, a madrasta e três irmãos, ao lado de mais 50 pessoas que também buscavam no Brasil a esperança de uma vida longe da guerra. Alguns foram para o Rio Grande do Sul, outros seguiram rumo a Santa Catarina e ele e outros ficaram em São Paulo.
“Saímos do Iraque em 2003, quando os Estados entraram e fomos para um campo de refugiados da ONU (Organização das Nações Unidas). De lá, viemos para cá. Por 2 anos tivemos ajuda, mas nos últimos tempos, o Brasil entrou nesta crise econômica grave e está muito difícil se manter no emprego ou mesmo conseguir um lugar no mercado. Se para os próprios brasileiros a situação ficou complicada, imagine para quem veio de fora, embora o povo daqui seja muito tranquilo, carinhoso e tenha paciência para ajudar os outros”, considera Shahin, que há 8 anos comanda a loja Rosa da Palestina, especializada em artigos de decoração e presentes, na região central de Mogi.
Mas apesar das dificuldades enfrentadas principalmente no início, até aprender a se comunicar em português, ele conseguiu refazer a vida na Cidade. E aqui fincou raízes. Casou-se com a mogiana Adriana da Silva Gomes, com quem dois filhos também nascidos na Cidade: Aisha e Sorraibe.
“Sem dúvidas que mesmo com todo o problema da violência, de assaltos e furtos, que existe em todos os lugares e também aqui, isso não é nada comparado com a tensão que vivíamos lá. Estávamos no meio da guerra. Não tem comparação. Aqui é muito mais tranquilo. Antes de vir para Mogi fiquei três meses em Santo Amaro e quatro dias em Brasília, mas gostei daqui desde que cheguei e não pretendo sair da Cidade”, revela o filho de refugiados palestinos que foram para o Iraque após a criação do Estado de Israel e encontraram no Brasil a oportunidade de uma vida melhor.
Quem quiser colabora com a ONG Refúgio Brasil pode entrar em contato com Faysa pelo telefone (11) 96402-1176. São aceitas doações em dinheiro no Banco do Brasil, agência 3568-8, conta corrente 31.338-6.
Carla Olivo
(O Diário – 21/05/2017)