Aspecto da religiosidade açoriana é uma das diversas contribuições das imigrações para a cultura brasileira. Descobrir suas origens e porquês é um saudável desafio ao mundo da pesquisa.

Na última quinta-feira de maio foi celebrado o dia de Corpus Christi, feriado católico que homenageia o sacramento da Eucaristia, ou o “Corpo de Cristo”, como a religião com mais adeptos no país enxerga o pão consagrado nas celebrações litúrgicas. Mas este não é um texto teológico, embora seja difícil dissociarmos a fé dos hábitos e modos de vida dos grupos e indivíduos que convivem em sociedade.
O que nos traz a falar sobre o feriado é a imigração açoriana no Brasil que difundiu a cultura de enfeitar as ruas tendo em vista a procissão da Eucaristia.
Antes de ser padronizada pelo catolicismo, essa prática surgiu na Bélgica em meados do século XIII. Mesmo antiga, os viventes das Ilhas dos Açores mantiveram a tradição enquanto Portugal já havia se distanciado da prática. E, ao vir para o Brasil, os açorianos carregaram essa raiz que se espalhou na tradição e na fé.
Açorianos no Brasil
Quem já foi ao sul, especialmente a Florianópolis, pode reconhecer a cultura açoriana presente nas tradições, prédios e no próprio sotaque do morador do litoral catarinense. (Sobre isso, o artigo “250 anos de influência açoriana no português do Brasil”, do linguista Oswaldo Furlan, debruça-se sobre essa influência). Segundo alguns autores, desenvolvida especialmente entre 1748 e 1756, a imigração açoriana na região de Santa Catarina – e seus 6.000 indivíduos que ali chegaram – teve como pano de fundo o interesse da Coroa portuguesa em sedimentar-se no sul do Brasil, que também utilizou tal estratégia para ocupar o Rio Grande do Sul. Embora a área tivesse sido percorrida por vicentistas e bandeirantes paulistas, a colonização portuguesa ainda era escassa e competia com a colonização castelhana, segundo consta na pesquisa de João Leal, professor da Universidade Nova de Lisboa.
São vastos os estudos sobre a presença açoriana no país. Além do enfoque se dar em Santa Catarina, há registros da chegada de açorianos já em 1619 no Maranhão seguindo a mesma motivação de povoamento da região suspeita a invasões europeias. Outros estudos alargam o período da chegada deles ao Brasil, considerando o período oitocentista – especialmente pós-independência – de grande destaque a esta imigração.

A tese em Antropologia pela UFSC de Eugênio Lacerda fala de uma “açorianidade”, ou seja, o autor parte do pressuposto de uma invenção da tradição açoriana no Brasil que reconstituiria esta cultura, como os ritos e festas que seguem um ciclo no calendário religioso: Natal, Páscoa, Divino e São João. É no tempo do “Divino” que se dá a festa de Corpus Christi, momento de honra por meio do cortejo e da aglomeração do povo ao redor do sagrado. Embora a celebração de Corpus Christi não esteja diretamente vinculada à Festa do Divino, ligada a Pentecostes (Espírito Santo), a procissão de populares ao redor de um objeto de culto aproxima ambas celebrações daquilo que há de mais característico no catolicismo popular, oriundo das nossas raízes europeias e rurais.
Não foram encontrados estudos acadêmicos que relatam proximidade direta entre a celebração de Corpus Christi e a cultura açoriana, mas a autoria dada aos açorianos à tradição dos tapetes ornamentados por diversas mídias especializadas é constante. A relação pode ser vista nas tradições que remetem a esta cultura, hoje brasileira. Por exemplo, o importante culto açoriano ao Santo Cristo dos Milagres foi impulsionado a partir do século XVII como reforço das imagens de culto ante a empreitada na Reforma Protestante. Na ocasião, tapetes ornamentados são produzidos nas ruas para a passagem do Cristo.

A Ilha
Na verdade são as ilhas. O Arquipélago de Açores é composto por nove ilhas e é um território autônomo de Portugal. Contém cerca de 250 mil habitantes e pertence economicamente à zona do euro. A historiadora da Universidade dos Açores, Susana Serpa, relata que houve um grande fluxo de deslocamentos para a América do Norte e do Sul, especialmente na segunda metade do século XIX. O êxodo, o aumento populacional, a deficiência da agricultura e a debilidade de infraestrutura que permitisse a fixação populacional, sintomas decorrentes das modificações do capitalismo que chegavam com força na Europa, foram grandes motivadores para as emigrações açorianas.

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Otávio Ávila