Anoitecia e as atividades cotidianas da Fundação Casa de Rui Barbosa, reduto de cultura e pesquisa no Rio de Janeiro, iam sendo encerradas naquela quinta-feira. Nos fundos, um grupo de pessoas quebrava o silêncio dos belos jardins onde, podemos imaginar, refletiu muitas vezes seu antigo e famoso dono. O iminente silêncio dava lugar a diferentes sotaques e idiomas, como é a extensa biblioteca pessoal de Rui Barbosa, relíquia conservada.

As vozes eram de atores de teatro. Ou melhor: Teatro-Fórum, técnica incorporada ao Teatro do Oprimido, idealizada por Augusto Boal (1931-2009). Poucas indumentárias e um cenário que se restringia a 2 caixas e alguns passaportes. O diferencial era outro. Um roteiro pronto até certo momento, quando o espectador dá lugar ao ‘espect-ator’ que entra em cena e participa com suas impressões, soluções e anseios.

Naquela noite, a peça ‘Uma Odisseia reproduzia a vida real de diversos imigrantes e solicitantes de refúgio no país. A dificuldade na comunicação desde o primeiro desembarque, a chegada difícil até a instituição de apoio, o assédio dos nacionais ao verem um estrangeiro (ou estranho?), a mudança de nome pela falta de compreensão, a dureza no trato dos órgãos de segurança pela constante “ameaça” de alguém que busca uma vida melhor pode trazer.

Foi assim, inspirada pela vida real do próprio protagonista, de origem marroquina, que a trama se desenrolou. Ao terminar, aplausos. Ao iniciar o segundo ato, um convite à participação aos espectadores. ‘Espect-atores’, agora. Da mãe que sofre com seu filho portador de transtorno mental e se emociona ao reconhecer-se na exclusão do refugiado; da jovem que se farta de ouvir o descaso com os estrangeiros e quer rebelar-se; dos imigrantes que assistem a peça e relatam que o real pode ser dessa forma, difícil.

Muitos participam, deixam suas impressões e agradecem, mais uma vez, quando o protagonista precisa deixar o Fórum instaurado para seguir em um outro compromisso, afinal, a vida nem sempre é complacente com a arte. Mas é a arte, naquele dia, que faz com que seus participantes vejam a vida com um pouco mais de esperança.

Sobre a metodologia de trabalho do grupo e a reflexão do tema migratório, Daniel Pimentel e Alessandra Vannucci, coordenadores do projeto, responderam nossas duas perguntas:

Por que a proposta de teatro participativa de Augusto Boal é importante para tratarmos do tema da imigração e refúgio?

A peça aplica uma das técnicas do arsenal do Teatro do Oprimido, idealizado por Augusto Boal (1931-2009). Trata-se do Teatro-Fórum: uma peça em dois atos na qual é apresentada uma história de opressão vivida por integrantes da oficina. No 1º ato, o espectador assiste; no 2º ato, ele assume sua condição participativa (de “espect-ator”, como denominada por Boal) e entra em cena, substituindo o protagonista ou atuando como seu aliado. O espect-ator escolhe como e em que momento agir para modificar a realidade de opressão apresentada. Sua intervenção é analisada pela plateia, com a mediação da “curinga” (papel exercido na ocasião pela Alessandra, coordenadora do projeto) de modo que toda a plateia vivencia a possibilidade de transformação da realidade, através da eficácia eventual das soluções propostas na cena ficcional. A técnica do Teatro-Fórum é jogada por grupos no Brasil e no mundo, como escolas, presídios, sindicatos, etc. que militam a favor de ações sociais e práticas políticas de transformação. Considerando as constantes situações de opressão que qualquer pessoa migrante vivencia, desde as barreiras legais e culturais até o tratamento nas instituições burocráticas do aparelho estatal, o Teatro-Fórum surge como uma ferramenta de diálogo e multiplicação que pode expor as dificuldades e incoerências inerentes ao processo de elegibilidade vigente, que raramente são observadas pela mídia ou pelo cidadão comum. Mesmo que nossa análise foque na política de refúgio brasileira, não deixamos de reconhecer que outros migrantes, retirantes, exilados sofrem situações de opressão em menor ou igual escala. Nossa ideia é promover o diálogo dentro da sociedade civil (nacionais e migrantes) e propor intervenções práticas de transformação social. Boal dizia que o teatro não transforma o mundo, mas o dinamiza. Que cidadão não é quem vive na cidade, mas quem a transforma. Nota-se que ele também viveu como refugiado, em exílio forçado boa parte da sua vida.

Para além dos relatos de vida, qual a principal novidade que os atores de diferentes nacionalidades trazem para a organização da peça?

Uma Odisseia‘ é registro do processo criativo realizado durante encontros semanais da “Oficina estético-política com cidadãos nacionais, migrantes e solicitantes de refúgio” oferecida pelo LEP (Laboratório de Estética e Política) da ECO-UFRJ (Escola de Comunicação), desde novembro de 2017. A Oficina é formada por cerca de 30 pessoas de diversas nacionalidades (Marrocos, Namíbia, Síria, Haiti, Colômbia), inclusive brasileira. Dessa convivência surgiram outros registros, como vídeos e exposições fotográficas, além das ideias que aproveitamos no roteiro para a montagem. Durante o processo, percebemos a presença constante e por vezes contraditória de dois relatos de vida distintos. Um deles é resposta à pergunta que muito se faz às pessoas refugiadas: por que você saiu do seu lugar de origem? Esse lugar que não existe mais e só pode ser acessado pela memória. O outro relato é aquele que diz respeito à perspectiva de vida futura no país acolhedor. Este lugar tampouco existe e está em constante construção no momento presente, na experiência. Não é por acaso que a nossa Odisseia terminou com a seguinte frase:

“O lugar de onde eu vim não existe mais e o lugar para onde eu vou não existe ainda”.

Ouso dizer que a interação entre cidadãos de diversos países durante as atividades da Oficina contribuiu para a construção de uma empatia coletiva que ficou muito evidente durante o Teatro-Fórum na Casa Rui. Alguns cidadãos nacionais, brasileiros que por muitos motivos percebem a exclusão como parte de suas vidas, jogaram e se identificaram com as situações relatadas pelas pessoas solicitando refúgio. Ninguém nasce migrante, torna-se. Diante do surgimento cada vez mais terrível de fronteiras e barreiras, entre continentes, nações e internas às próprias nações, as pessoas percebem seu devir-refugiado como alternativa ao “pertencimento”. O título do curta exibido na Casa Rui “Nós, refugiados” citando famoso artigo escrito por Hannah Arendt em 1944, reflete uma ideia de que, na verdade, todos vivemos uma vida refugiada de direitos na sociedade contemporânea.

Acrescentamos: Pimentel, estagiário de Direito do Centro de Proteção aos Refugiados e Imigrantes (CEPRI), vinculado à Fundação Casa de Rui Barbosa, ressalta a importância da parceria entre o CEPRI e o LEP, coordenado por Vannucci. O Centro de Proteção também integra a Cátedra Sérgio Viera de Mello do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Otávio Ávila