O texto tem o objetivo de resumir os principais pontos da tese Hoje é dia de festa: a construção e expressão das identidades sociais e culturais do imigrante nas celebrações das origens, defendida pela autora na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), sob a orientação do professor Mohammed ElHajji, em março de 2017. O trabalho tratou, de maneira geral, das construções identitárias do sujeito deslocado e suas relações espaço-temporais materializadas em manifestações festivas, folclóricas e culturais produzidas por imigrantes no país de acolhida. De maneira específica, focamos no aspecto peculiar da organização dos grupos de imigrantes – os repertórios culturais – e sua relação com o substrato comunicacional inerente ao atual processo de globalização. Considerou as mediações culturais e trocas simbólicas (MARTÍN-BARBERO, 1991) na construção de espaços subjetivos e identidades explorando processos de ressignificação e ressimbolização a partir de uma relação de alteridade, do reconhecimento do “outro”.
De modo prático, nos propomos a pesquisar: 1) de que modo são construídas, expressas e projetadas as identidades culturais, étnicas, sociais e nacionais em situações de migração e deslocamento espacial; 2) quais são os sentidos de pertencimento, identificação e lealdade (‘allegiance’) dos indivíduos e grupos deslocados na temporalidade do atual quadro civilizacional e organizacional marcado pela globalização econômica e cultural, mobilidade humana e aceleração das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs); 3) Quais são as estratégias discursivas (midiáticas e não midiáticas) empreendidas por esses grupos e indivíduos no afã de construir e expressar suas novas configurações identitárias; e 4) Qual é a finalidade desses investimentos sociais e subjetivos.
Partimos da hipótese central de que, em situação de deslocamento, o reconhecimento do “outro” possibilita que relações de contato e trocas simbólica e cultural se efetivem em espaços próprios construídos a partir de diferentes formas de enunciação (midiáticas e não midiáticas) das identidades étnicas, culturais, nacionais e sociais. Nessas instâncias de produção de subjetividade e de defesa das singularidades, a produção do ethos do imigrante (individual e/ou coletivo) é reelaborada de modo a garantir pluripertencimentos, conexões e afetividades, independentemente de um território geograficamente localizado, um centro definido e/ou uma temporalidade contínua.
Para atingir os objetivos descritos acima, fizemos uso de dois principais recursos teórico-metodológicos – transnacionalismo (BASCH; BLANC-SZANTON; SCHILLER, 1992, 1995) e interculturalismo (CANCLINI, 1998; 2005) – conjugados com a análise de material empírico. Para isso, aplicamos seis técnicas de pesquisas, todas de abordagem qualitativa: pesquisa bibliográfica (STUMPF, 2011) e documental (MOREIRA, 2011); entrevista em profundidade semi-aberta com questões semi-estruturada (TRIVIÑOS, 1990); análise do discurso (PINTO, 199; FAIRCLOUGH, 2001); observação sistemática (GIL, 2008); e análise de conteúdo (KRIPPENDORFF, 1990; BARDIN, 1977).
Determinamos como recorte do universo para pesquisa, as associações, entidades cívicas e organizações envolvendo imigrantes latino-americanos que se dedicam à realização e promoção de festividades que remetem a seus países de origem em Chicago (Estados Unidos) e São Paulo (Brasil), entre elas: performances musicais, de danças e folclóricas; feiras de comidas típicas e artesanato; mostras de cinema; encontros de literatura e celebrações em geral (festas de Independência e datas comemorativas dos países).
Assim, nosso objeto de estudo foi composto por três elementos: 1) sujeitos imigrantes; 2) suas manifestações artísticas, folclóricas e culturais; e 3) seus sites, páginas no Facebook, Twitter, Meetup e Instagram – principais plataformas virtuais de comunicação utilizadas pelos grupos envolvidos, que denominamos webdiáspora. No total, participaram 45 imigrantes de origem latino-americana divididos em 28 organizações, a saber: 15 brasileiros e 15 mexicanos estabelecidos em Chicago, e 15 latinos que vivem em São Paulo (três paraguaios, dois chilenos, cinco peruanos, dois argentinos e três bolivianos). Todos se encontram em etapas avançadas de seus respectivos processos migratórios – vivem no país de acolhida há, pelo menos, dez anos.
Entre os principais resultados, destacamos em um primeiro momento que, de caráter plural, as identidades – a partir do conceito de Hall (2005) –, potencializadas nos eventos estudados, são frutos de um modelo de organização social do planeta imposto por relações de poder ancoradas em processos históricos. Elas são incorporadas, transformadas e recriadas, a todo momento, no interior de um sistema de representações a partir da relação transnacional do sujeito com o ambiente em que vive (e tudo que isso implica). Assim, identidades nacionais, étnicas, sociais e culturais costumam aflorar em processos de deslocamento, ou seja, na mudança de um ambiente, até então um ponto de referência.
Em um segundo momento, observa-se que uma condição essencial para que elas ocorram, nos diferentes níveis em que pesquisamos ao longo da tese, é a ação coletiva. Tais atividades só aparecem e ganham visibilidade na sociedade de acolhida quando organizadas em grupos, associações, clubes, comunidades, ainda que a partir de uma iniciativa individual, independentemente de sua forma e/ou estrutura.
Por fim, acreditamos que os repertórios culturais de sujeitos e coletivos de imigrantes costumam resultar em novas formas de participação cidadã que transformam profundamente a vida dos sujeitos deslocados, familiares e das pessoas que estão em sua volta, no território de acolhida, de recepção ou outros. Envolvem esferas políticas e sociais tradicionais, mas inovam na instituição de espaços sociais (BOURDIEU, 1983; 1989; 2016) entre fronteiras físicas e subjetivas, motivadas, por exemplo, por sentimento de solidariedade e/ou pertencimento, remetendo à noção de “espaços nostálgicos”, de Sayad (1998). Eles são responsáveis pela criação e manutenção de um vínculo entre tempo – espaço – sociedade, transitando entre um ou mais pertencimentos, ‘nem daqui nem de lá’ – que influenciam percepções e realidades de vulnerabilidade e marginalização, mas também de trocas simbólicas e enriquecimento cultural.
Camila Escudero é doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com período de pesquisa na University of Illinois at Chicago (UIC). Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail para contato: camilaescudero@uol.com.br.
Referências
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BASCH, Linda; BLANC-SZANTON, Cristina; SCHILLER, Nina Glick. Transnationalism – A new analytic framework for understanding migration. Annais New York Academy of Science, Vol.645, p.1-24, 1992. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1749-6632.1992.tb33484.x/abstract. Acesso em: 23 mar. 2015.
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