O Brasil não é um país xenófobo, mas racista, afirma recorrentemente Mohammed ElHajji, professor titular da UFRJ e idealizador do site oestrangeiro.org. Na verdade, prossegue ElHajji, somos xenófilos, gostamos dos imigrantes e, em um passado não tão distante, depositamos neles a esperança de sermos mais “brancos”. Está aí a vinculação entre migração e negritude na irresoluta questão racial brasileira.
Nosso racismo estrutural é um fato histórico. Ao longo de três séculos, entre colônia e nação independente, permitimos que um amplo e lucrativo comércio humano compusesse o modus operandi econômico nos latifúndios e cidades. Estima-se que 12,5 milhões de pessoas embarcaram em navios negreiros para as Américas, sendo que 1,8 milhão morreram na travessia. A gravidade da escravidão é potencializada pelo genocídio: em média, 14 cadáveres lançados ao mar todos os dias em 350 anos. Desses números, afirma Laurentino Gomes, 5 milhões desembarcaram no Brasil, o país que mais dependeu da escravidão no mundo. Em todos os ciclos econômicos, do açúcar ao café, a mão de obra escrava esteve presente.
Mas foi em 1888, quase 40 anos após a proibição do tráfico negreiro, que o Império promulgou a Lei Áurea pondo fim ao trabalho escravo e iniciando a reformulação do panorama étnico-racial de um país majoritariamente negro. A estratégia pensada pela elite financeira e pelo cientificismo eugenista do final do século XIX consistia em promover a imigração europeia, que substituiria a mão de obra escrava ao mesmo tempo em que ajudaria no “embranquecimento” populacional. A estratégia civilizatória, ocidental, católica e branca passaria por uma seleção criteriosa dos estrangeiros desejáveis ao Brasil, o que não impediu que uma grande parcela étnico-racial chegasse e construísse o país que somos.

Cam, de certo, é a idosa, a geração mais velha e mais negra. Cam é um nome bíblico, um dos filhos de Noé e que foi amaldiçoado pelo pai. Diz-se que seus descendentes seriam os povos africanos. A “geração amaldiçoada” olha para o céu pedindo a redenção de sua raça ao bom Deus, cujo presente está ao centro da tela. É a jovem esperança. A branquitude do bebê, o novo Brasil.
O grande período migratório compreendido entre 1880 e 1940 trouxe ao Brasil europeus e asiáticos, em sua maioria, sem que passassem despercebidas as distinções étnico-raciais da imigração. Jeffrey Lesser lembra que em 1885 um jornal tratou os chineses como “homens-animais” pelo “egoísmo, orgulho, uma insensibilidade bárbara alimentada pela prática do abandono ou trucidamento dos filhos (…) A cultura chinesa (…) iria ‘degenerar’ a população brasileira (…)”. Na segunda metade do século XX, novas configurações étnicas chegaram ao país. Diminuindo o fluxo de europeus, foram os brasileiros que iniciaram sua emigração. Em troca, a imigração sul-americana apresentou-se como uma nova relação desse fluxo Sul-Sul que se estabeleceria no cenário global dos deslocamentos humanos.
A chegada de africanos imigrantes e refugiados ao Brasil, especialmente no século XXI, precisa ser diferenciada do passado. Os africanos escravizados não foram nenhuma das duas categorias anteriores, tratava-se de sequestro humano. Diferente dos 300 anos que marcam nosso recorte estrutural, negras e negros que chegam escolhem o país como um lugar de trabalho, segurança, desafio, estudos, descoberta ou redescoberta de si. São bem-vindos em sua plenitude e dignidade e, tal como os brasileiros, merecem acesso aos direitos básicos.
Contudo, é imperativo que organizações de direitos humanos, pesquisadores e cidadãos de boa índole compreendam que, mesmo nos estudos migratórios, é preciso estabelecer um recorte racial frente ao abismo que configura o branco e o negro na premissa “civilizacional”. O mais longo capítulo da história brasileira não pode ser apagado com a estratégia assimilacionista de uma raça sobre a outra e nem com o universalismo da democracia liberal, hoje. Ainda é necessário compreender que o africano de classe média que chega ao Brasil para cursar um mestrado ouvirá aquilo que um europeu com as mesmas características não terá que submeter-se. Há o peso da história sobre nossos ombros e elucidar de qual imigração estamos falando é um passo fundamental à compreensão da formação (constante) do Brasil.
Referências:
[1] BOMFIM, I. Movimentos migratórios, diásporas e identidades culturais: entrevista com o pesquisador Mohammed ElHajji. Revista Internacional de Folkcomunicação, Ponta Grossa, v. 16, n. 36, p.270-279, jan/jun 2018. Leia aqui.
[2] Carta Capital: “Brasil segue marcado por seu passado escravista, diz Laurentino Gomes”. Leia aqui.
[3] LESSER, Jeffrey. A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Unesp, 2015.
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Otávio Ávila
doutorando em Comunicação e Cultura na UFRJ, editor do oestrangeiro.org