No dia 8 de janeiro de 2019, uma das primeiras medidas do novo governo brasileiro foi retirar o país do Pacto Global para a Migração. Mostrava-se aí o tom que a política internacional comandada pelo chanceler Ernesto Araújo daria aos históricos e contemporâneos fluxos de pessoas pelas fronteiras nacionais. Guilherme Antunes Ramos, pesquisador de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apresentou seu estudo sobre o Pacto no VII Simpósio de Pesquisa sobre Migrações (em breve lançaremos o Caderno de Resumos) e foi convidado pela editoria do oestrangeiro.org a contribuir com o tema nesse “aniversário” que recordamos com preocupação.

 

Confira o texto:

 

Dezembro, 2018. Em Marrakech, cidade marroquina, 164 países deram um significativo primeiro passo em direção à afirmação de um grande compromisso coletivo destinado a endereçar a temática das migrações internacionais. Dentre eles, situava-se o Brasil. O apoio brasileiro a essa iniciativa, contudo, foi bastante efêmero: em simultâneo ao endosso oficial do antigo governo, representado na figura do então ministro das Relações Exteriores do país Aloysio Nunes, seu já anunciado sucessor Ernesto Araújo comunicava publicamente que o Brasil deixaria o Pacto tão logo o novo governo assumisse. A decisão prenunciada por Araújo foi formalmente confirmada exatamente há 1 ano, poucos dias após o início do governo presidido por Jair Bolsonaro, corroborando com a possibilidade de uma já antevista inflexão na política migratória brasileira.

A construção de uma governança global sobre a temática das migrações internacionais, intentada a partir de uma primeira aproximação global com o tema, o Pacto Global para a Migração, surge como um reflexo de uma nova conjuntura internacional em que o tópico das migrações internacionais adquire força e centralidade. Com efeito, aumenta exponencialmente o número de indivíduos que, voluntária ou compulsoriamente, deixam seus países de origem e trespassam fronteiras nacionais em busca de melhores oportunidades e condições de vida.

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Bandeiras na sede da ONU. 165 países assinaram o Pacto para uma migração segura. Menos de um mês depois de se comprometer, o Brasil se retira do compromisso firmado. Divulgação/MMA

Adicionalmente, tópicos como refúgio e apatridia adquirem crescente notoriedade à medida que milhões de pessoas, desprovidas da proteção de seus respectivos Estados-Nacionais, veem-se obrigadas a emigrar diante da iminência de terem seus mais básicos direitos violados, inclusive o direito à vida. Em virtude da dimensão internacional que é imanente às migrações contemporâneas, desponta o desafio de a comunidade internacional, reunida em seu principal fórum, a Organização das Nações Unidas, idealizar e implementar iniciativas destinadas a tratar das migrações internacionais e salvaguardar os direitos das populações migrantes. Sendo um tema comum a todos, também deveriam as soluções partirem de um esforço conjunto. Essa é a grande premissa por trás do Pacto Global para a Migração.

Ressalta-se de antemão que o Pacto Global para a Migração é destituído por completo de uma força vinculante. Dito de outra maneira, não estão previstos no Pacto quaisquer mecanismos que possam, em última instância, assegurar que os Estados partícipes observem plenamente as diretrizes ali consagradas. A participação, bem como a aceitação das normas pactuadas, torna-se fruto da ação voluntária dos Estados, não havendo sobre eles nenhum tipo de força de natureza coercitiva.

Nesse sentido, o Pacto Global para a Migração seria apenas uma declaração de intenções, uma espécie de manual de boas práticas que idealmente orientaria os Estados na condução de suas políticas migratórias. Seus 10 princípios orientadores e os 23 objetivos que pretende alcançar teriam a finalidade última de difundir uma visão mais humanizadora sobre o migrante e sobre as migrações internacionais.

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Refugiados residentes em São Paulo. Foto: ACNUR / L. Leite

Buscava-se acima de tudo que os Estados começassem a repensar suas políticas migratórias, tratando menos o migrante como um criminoso, uma ameaça em potencial ou um ser “indesejável” e mais como um sujeito de direitos. Afinal, os direitos humanos, afirmados desde a Declaração Universal de 1945 como direitos universais, devem também ser aplicáveis aos migrantes, independentemente de serem eles documentados ou não. O Pacto, sob essa ótica, apresenta-se como um primeiro grande esforço de projetar a questão migratória como uma temática a ser considerada à luz dos direitos humanos.

Não sendo um tratado internacional vinculante, que obriga e constrange os Estados, há que se questionar: por que então o Brasil decidiu se retirar dessa iniciativa? A resposta possivelmente emana do novo perfil ideológico do grupo que assumiu a presidência neste ano de 2019.

O bolsonarismo, uma variante brasileira de uma ideologia de extrema-direita, assenta suas bases em uma visão securitizadora das migrações internacionais e busca desconstruir a universalidade característica dos direitos humanos, concebendo-os como um projeto a ser ressignificado com base em idiossincrasias próprias. Segundo essa visão, o migrante é percebido como uma ameaça em potencial, e qualquer iniciativa que se proponha a abordar a temática das migrações a partir de uma lógica que não a securitizadora é automaticamente descartada. Ademais, os direitos humanos, longe de serem percebidos como um conjunto de direitos a incidir homogeneamente sobre toda a população global, passam a ser estratificados em funções de critérios bem definidos, sendo um deles o local de origem e a condição social do migrante. Não haveria, sob essa ótica, direitos a serem universalmente usufruídos, cujo fundamento emanaria da própria condição humana. Diversamente, existiriam diferentes conjuntos de direitos, cujo acesso dependeria de uma série de requisitos a serem avaliados segundo diversos critérios, inclusive de ordem moral.

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A decisão de abandonar o apoio inicialmente anunciado ao Pacto Global de Migração é decerto bastante coerente com a trajetória política trilhada por Jair Bolsonaro. Isso se torna evidente quando considerada sua atuação excessivamente combativa durante as discussões sobre o projeto de lei que viria a se tornar a nova Lei de Migração (Lei Nº 13.445 de 24 de maio de 2017). Então deputado federal, Bolsonaro se opôs enfaticamente à mudança da legislação migratória, que buscava substituir o anacrônico Estatuto do Estrangeiro por uma lei mais humana, que enxergasse no indivíduo migrante não uma transgressão ou uma ameaça, mas um ente que gozava de um conjunto mínimo de direitos que o Estado brasileiro deveria assegurar.

O parlamentar buscava salientar o que na sua visão seria um grave equívoco: a seu ver, a flexibilização da legislação migratória e a extensão de direitos aos migrantes atrairia ao país pessoas de toda a sorte, inclusive as mais violentas como assassinos, terroristas e estupradores. Bolsonaro mobilizava ainda discursos estratificadores dos migrantes, utilizando-se de termos pejorativos como “América Latrina” para enfatizar que a nova lei inevitavelmente atrairia ao país indivíduos oriundos de países em situação de vulnerabilidade, que seriam indesejáveis e provocariam repercussões de ordem sócio-econômica e cultural, por disseminarem práticas culturais pretensamente incompatíveis com as brasileiras.

A tônica securitização/humanização orientou os debates sobre a nova lei e, ao pender para o polo securitizador, Bolsonaro já manifestava sua oposição à política migratória que se desenhava. A revisão da posição brasileira referente ao Pacto Global seria, nesse sentido, personificada na figura do ex-capitão e partilhada por seus entusiastas mais próximos, incluindo o ministro Ernesto Araújo.

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Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo. Hélio “Bolsonaro” ao fundo. Foto: WALTER CAMPANATO/ABR

Avalia-se preliminarmente que a decisão brasileira de abandonar o Pacto Global para Migração mantém vínculo umbilical com o fortalecimento do bolsonarismo como ideologia política e, mais particularmente, com a figura do próprio presidente. É deveras prematuro para se avaliar as reais repercussões dessa medida no que se refere à situação real dos migrantes no Brasil. Com efeito, a estrutura política descentralizada, a divisão de poderes e competências e a perpetuação de procedimentos administrativos prévios em burocracias especializadas como o Ministério da Justiça e Cidadania parecem continuar a caminhar em direção a uma “humanização” do tratamento ao migrante no país. Outrossim, legislações nacionais, como a Lei de Migração e a própria Constituição, além dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil sobretudo na esfera dos direitos humanos, interpõem-se à possível intenção do presidente de reverter a política migratória brasileira.

Por ora, a decisão anunciada em janeiro de 2019 parece ser mais simbólica do que prática. Aos apoiadores, transmite a mensagem de que o presidente Jair Bolsonaro está plenamente comprometido com agendas (neo)conservadoras. Aos opositores, prenuncia a atuação internacional do Brasil presidido por uma figura de extrema-direita que, por reiteradas vezes, anunciou publicamente sua objeção aos direitos humanos como projeto universal. O revés brasileiro, no que tange ao Pacto Global para Migração, foi a primeira grande manifestação externa do comportamento de um governo de extrema-direita em se tratando da questão dos direitos humanos. Os reflexos concretos das novas diretrizes e políticas internacionais brasileiras, sobretudo acerca do tema das migrações internacionais, permanecem ainda por serem aferidos.

Guilherme Antunes Ramos é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).