Ao longo dos próximos meses, os pesquisadores do grupo Diaspotics/UFRJ tentarão traçar algumas análises da pesquisa migratória no escopo nacional a partir das realidades acompanhadas particularmente e nas realidades vividas coletivamente, incluindo a batalha contra o novo coronavírus.

No fim de janeiro, a calamidade que tem exigido isolamento da população, danificado a vida econômica das cidades e insuflado a demanda hospitalar era ainda uma realidade distante e resguardada à China. Longe de despertar comoção nacional, como no caso italiano, chineses perceberam-se, por vezes, do lado inverso da solidariedade a ponto da comunidade de imigrantes chineses pelo mundo lançar a campanha “Eu não sou um vírus”.

No Brasil, a campanha teve como propagadora a professora de chinês-mandariam Sisi Liao, produtora do canal Pula Muralha, o maior do idioma no Youtube, e foi meu objeto de um texto anterior escrito para o MigraMundo. Até lá, o coronavírus não era uma pandemia global. Vinculada a uma nacionalidade, parte da população desconfiava da capacidade móvel da ordem geopolítica do mundo amparada pela aceleração das informações e a diminuição de distâncias espaciais motivadas pelas trocas de mercadorias, de mão-de-obra e de artefatos culturais que povoam o mundo moderno.

O iminente desembarque do vírus na Europa acendeu o alerta no Brasil. Compondo a segunda mais numerosa imigração ao país durante o século XX e casa da nossa mais tradicional religião, a chegada impactante da covid-19 à Itália tornou o problema mais familiar até a confirmação do primeiro caso brasileiro, em 26 de fevereiro. Justamente por um idoso que retornava do país europeu. Dali em diante, a história continuaria sendo escrita sem previsões da volta a uma normalidade já transformada pelas condições atuais.

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A cidade de Wuhan, epicentro dos primeiros casos do vírus, decretou o fim da quarentena há um mês, mas recentes casos surgidos em maio ligaram o alerta novamente. Foto: Getty Images.

No Brasil, os meses seguintes serviram como uma lente de aumento à fissura da pretensa cordialidade nacional. Embates sobre a defesa da vida entraram na rota da opinião pública ao mesmo tempo em que a busca por culpados trabalham por ofuscar responsabilidades civis e governamentais. Neste sentido, a nomeação do novo coronavírus como ‘vírus chinês’ é emblemática.

Subserviência e idolatria

Apelidado por Donald Trump, o vírus também foi rebatizado por simpatizantes dos presidentes do Brasil e Estados Unidos, como o ministro da Educação Abraham Weintraub e seu irmão, assessor da presidência, influenciadores conservadores, como Leandro Ruschel e Bernardo Küster, e até mesmo por recentes aliados do governo brasileiro, como o ‘imortal’ Roberto Jefferson. A legião ainda é grande, mesmo com o desgaste político-ideológico.

Esse espectro se mantém contra um adversário que vive cambaleante desde a implosão – por mãos ávidas de paz – do muro de Berlim, em 1989. Se Cuba e Coreia do Norte não apresentam perigos reais à hegemonia ocidental moldada pelo American Way of Life, a China surgiu como herdeira da potência mundial, ainda que atue na ordem capitalista de mercado. Enquanto para Trump o apontar de dedo ao rival soa como estratégia à guerra comercial vivida pelos países nos últimos anos, no Brasil, o apoio irrestrito ao governo do norte se apresenta como subserviência e idolatria por uma guerra cultural que nada tem a ver com a formação social do país.

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Reprodução de caricatura na página do Facebook do grupo USP Livre, seguida por mais de 200 mil pessoas.

Estranhos e impuros

E por que a nomeação do ‘vírus chinês’ nos importa? Vale lembrar da literatura sobre  estrangeiridade. O estrangeiro é considerado o estranho, aquele que não carrega consigo os padrões socioculturais e morais de um grupo dominante e, na linguagem de Zigmunt Bauman, absorvido como “sujeira”, ou seja, filtrado como “impureza” em uma sociedade pretensamente limpa e pura. É claro que ele ainda considera variáveis de um pós-colonialismo do presente que separa imigrantes, entre indesejados e desejados. E não foi assim também no passado, quando um Brasil que rumava para a modernidade do século XX promulgou políticas de embranquecimento populacional que incluíam a promoção da imigração europeia? 

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No contexto de crise sanitária, a analogia da impureza soa mais adequada ainda. Transferem-se problemas nacionais escancarados pela insuficiência de leitos de UTI, superfaturamento de equipamentos de saúde e líderes que militam contra a ciência para a culpabilização do outro. Jogam com estratégia de uma narrativa cuja significância pretende-se vencedora, seja pelo sucesso na contenção ao vírus, por ora fracassado, seja no empilhamento de corpos oferecidos à guerra cultural travada. “E daí, culpem os comunistas”, dirão?

“Murar o medo”

Já não sabemos se a alcunha despencará sobre os imigrantes chineses que vivem no Brasil, mas certamente trará danos a componentes identitários fundamentais à condução desses indivíduos distantes de seu país e cultura. Os cuidados que as autoridades globais têm destacado contra a covid-19 devem ser respeitados, mas trata-se também de um esforço das autoridades científicas de não deixarem a pandemia afetar a saúde mental. Em algum momento o vírus passará e, com ele, o medo dele, enquanto o medo do outro é mais resistente ao tempo e exige das comunidades humanas novas formas políticas de interculturalidade.

Neste encerramento, cabe lembrar Mia Couto que escreveu sobre “Murar o Medo”. Aproveitando sua lembrança aos chineses, o moçambicano acredita que mais trabalhadores deste país tenham morrido na construção da Grande Muralha do que as vítimas das invasões que realmente aconteceram. Alguns trabalhadores foram emparedados na própria construção que erguiam. E diz: “Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar (…). Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global, e dizer: ‘Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras’. E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe”.

Hoje, quem são os que sobrevivem contra o medo? As vítimas mais afetadas são as minorias, incluindo imigrantes e refugiados. É por eles e com eles também que suscitam novas formas de vida, sem estereotipias.

 

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Reprodução Youtube/Pula Muralha

 

 

Referências

Bauman, Z. (1998) O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lesser, J. (2015) A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Unesp.

Otávio Ávila
Pesquisador do Diaspotics, editor do estrangeiro.org.