Ao longo da pesquisa sobre imigração transnacional, sou impactada com observações, relatos e leituras que, da mesma forma que abrem novas possibilidades para a pesquisa, me faz refletir sobre as várias perspectivas presentes, absorta pela experimentação da alteridade.
Neste texto reflito como o medo e a desconfiança “do outro” pode impactar nas sociabilidades entre os imigrantes-refugiados que escolheram a cidade do Rio de Janeiro para fixar residência e seus moradores, trazendo dificuldades ao processo de vinculação, tanto física quanto simbólica.
Falar das migrações transnacionais é falar, também, sobre a questão da mobilidade humana. Paul Virilio, em seu livro Velocidade e Política, de 1997, já nos dizia que o mundo é essencialmente dromológico, ou seja, é imerso na circulação, no trânsito e no nomadismo, fatos que imprimem ao tempo um ritmo cada vez mais intenso. Desta forma, percebo o sujeito da atualidade como um sujeito cinético, vivendo uma movimentação ininterrupta no plano social, cognitivo, emocional e afetivo. Isso o torna desenraizado, tanto no aspecto material (geográfico) quanto no aspecto imaterial (social e cultural). Se por um lado isso favorece trocas, hibridismos e ressignificações, por outro evidencia a falta da alteridade e o medo do diferente.
Quando chegam, fragilizadas fisicamente e emocionalmente, estas pessoas se deparam com que eu chamo de “a força do lugar”, que é reflexo dos processos disciplinares que evidenciam a formação social vigente. A cidade, em seu vívido pulsar, possui regras e códigos próprios, que são tangibilizados no cotidiano dos moradores. De um modo geral, as leis vigentes servem a uma vontade humana de impor regras no intuito de criar normas pacíficas de convivência, coibindo comportamentos indesejáveis, sendo assim, uma forma de normatizar e controlar a vida social.
Embora haja o imaginário recorrente que apresenta a cidade como solidária e hospitaleira, que convive bem com as diferenças, muitas vezes o processo de vinculação destas pessoas com a sociedade carioca se dá na presença pujante da desconfiança e da violência, principalmente a simbólica. E é neste cenário que elas negociam seus próprios espaços, onde a adaptação ao novo lugar é atravessada pela administração de conflitos. E tem início, então, os medos e as tensões. Por parte dos moradores da cidade, há o medo do diferente e da não conformidade; por parte dos imigrantes-refugiados, há o medo do incerto e da não aceitação. No continuum desterritorialização-reterritorialização, estas pessoas se veem envolvidas num fenômeno de exclusão sócio-espacial, que Haesbaert, em seu livro Viver no Limite chama de “aglomerados humanos de exclusão”.
O medo de vivenciar experiências negativas pode tornar intimidador o encontro (e o confronto) com o desconhecido. Em muita medida, os imigrantes-refugiados são vistos por parte da sociedade carioca como corpos dóceis, manipuláveis, obedientes e, porque não dizer, carregados de invisibilidade, onde lhes são impostos obrigações e limitações.
A leitura da obra The Cultural Politics of Emotion, de Sara Ahmed, ajudou a me aproximar do entendimento desta emoção, o medo, tão presente na dinâmica interacional entre os imigrantes-refugiados e os moradores da cidade. Nestas interações, além do medo, as emoções percorrem diferentes caminhos, como raiva, tristeza, saudade, nostalgia, solidariedade, empatia, comiseração, descaso e apatia. Esta miríade de sentimentos pode, de maneira dicotômica, minimizar ou recrudescer as diferenças. De um modo ou de outro, a diferença é evidenciada.

Muitos destes sentimentos são usados para tornar perene a narrativa de não aceitação da diferença, em muitos casos reforçada pela mídia, que cria um enredo estetizado que exprime um juízo de valor e orienta a opinião e o sentimento da sociedade em relação a estas pessoas. Estes sentimentos permeiam, ao mesmo tempo, os corpos e os objetos e são responsáveis pela distância e pelos estereótipos.
As diferentes cores, idiomas, sotaques, paladares e vestimentas deveriam nos lembrar de que diante de nós existe um “alguém”, para além da existência de um “outro”. As singularidades deveriam enaltecer a inexistência da banalidade entre nós, humanos. Porém, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que despertam nossa curiosidade, faz vir à tona um certo repúdio e o consequente afastamento. Num mesmo instante, nos sentimos atraídos e repelidos pela diferença.

Na sociedade brasileira da atualidade, ao medo do negro, do pobre e do imigrante interno (especialmente do nordestino) juntou-se o medo do imigrante transnacional, principalmente do refugiado. Ao ser tratada como indesejada, esta pequena população vê aflorar seus próprios medos e dores. O medo da rejeição, do estranhamento e da rejeição, restringem, cada vez mais, seu espaço e mobilidade social.
É necessário questionar e suspeitar dos valores que negam a coexistência da diferença, pois os mesmos são históricos e produzidos socialmente, sendo por isso, necessário revisitá-los com a frequência imposta pelo tempo e pelas transformações sociais, culturais e econômicas. Creio que dessa forma será possível fazer emergir uma nova urbanidade, que dará origem a novos imaginários e representações, proporcionando um exercício cotidiano de mútuos e plurais aprendizados.
Referências:
AHMED, Sara. The cultural politics of emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.
FOUCAUT, M. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
HAESBAERT, Rogério. Viver no Limite: território e multiterritorialidade/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crime, violência e sociabilidades urbanas: as fronteiras da ordem e da desordem no sul brasileiro no final do séc. XIX. In: Estudos Íbero-Americanos. PUC-RS, v.XXX, n.2, p. 27-37, dezembro 2004.
VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.
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Conceição Souza
Pesquisadora do Diaspotics/UFRJ e do LACON/UERJ.