Aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), um Projeto de Lei (2699/2020) que facilita o acesso a direitos básicos pela comunidade migrante no Brasil. O PL surge devido às necessidades de segurança para acesso a serviços essenciais da população estrangeira em tempos de pandemia.
A sociedade civil organizada lançou uma petição pública para coletar assinaturas tendo como objetivo de acelerar em regime de urgência um longo processo que normalmente passa por comissões parlamentares especiais, por uma avaliação no Senado e finaliza com a sanção do presidente da República. O abaixo-assinado foi criado pela Equipe de Base Warmis Convergência das Culturas, um dos coletivos mais ativos na campanha de mobilização e pode ser acessado aqui.
Confira abaixo a justificação do PL. O texto é de autoria da Dep. Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e de toda a bancada do seu partido na Câmara dos Deputados.
Para mais informações, sugerimos a leitura da matéria produzida pelo MigraMundo.

JUSTIFICAÇÃO
A pandemia de COVID-19 e seus impactos socioeconômicos severos e duradouros tendem a aprofundar ainda mais a exclusão e a vulnerabilidade que imigrantes e refugiados, sobretudo aqueles com status migratório irregular, enfrentam no Brasil. Além de prejudicar as condições de vida dessas pessoas, a irregularidade migratória ameaça a efetividade das políticas públicas no combate à pandemia e à crise econômica no país, sendo urgente que este Parlamento tome iniciativas para saná-la.
É notório que esta pandemia tem afetado de maneira diferenciada populações mais vulneráveis em todo o mundo, e é sabido que migrantes e refugiados sempre estiveram entre as pessoas que enfrentam maiores desafios no acesso a serviços e políticas públicas. Ainda, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), quando conseguem encontrar emprego, imigrantes também enfrentam, majoritariamente, condições de informalidade e precariedade trabalhistas alarmantes.
Não à toa, nos anos de 1998 e 2009, mesmo fora de um contexto emergencial como o atual, o Brasil realizou esforços de regularização massivos, conhecidos popularmente como “anistias migratórias”, através das Leis nos 9.675 e 11.961, respectivamente. Tais medidas iam ao encontro dos anseios da sociedade e materializavam os próprios princípios constitucionais do Estado brasileiro em face de leis migratórias já ultrapassadas.
Desde então, a legislação brasileira sobre migrações avançou substancialmente, tendo sido aprovada, em maio de 2017, a Lei no 13.445, conhecida como Lei de Migração. Este importante texto normativo, estabeleceu, em seu Art. 3o, que a política migratória brasileira rege-se, dentre outros princípios pela não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional; pela promoção de entrada regular e de regularização documental; pela acolhida humanitária; pela inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas; e pelo acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social.
A Lei de Migração também instituiu na alínea c do inciso I de seu Art. 30 a “acolhida humanitária” como hipótese para a autorização de residência no país, e estabeleceu que esta autorização pode se dar independentemente da situação migratória do requerente (Art. 31). A presente proposta está, nesse sentido, em linha com esta legislação vigente, a qual já dispõe, inclusive, em seu Art. 54, sobre a possibilidade de retirada compulsória de migrante ou visitante do território nacional, conjugada com o impedimento de reingresso por prazo determinado, em casos de condenação com sentença transitada em julgado de crimes definidos pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional ou de crime comum doloso passível de pena privativa de liberdade, consideradas a gravidade e as possibilidades de ressocialização em território nacional.
O presente Projeto de Lei inova, portanto, apenas ao apresentar medidas complementares e emergenciais às formas regularização e direitos já previstos em Lei, considerando o contexto da atual pandemia de COVID-19 e seus impactos socioeconômicos. Nesse sentido, cabe ressaltar que não há dúvidas quanto aos impactos do estado de calamidade gerado pela pandemia em todo o mundo, ficando evidente que a “acolhida humanitária” de imigrantes que se encontram em território nacional se impõe como dever do Estado brasileiro, seja pela instabilidade política, econômica e social no Brasil, seja pelas condições e impactos dessa crise nos países de origem. Relatório recente do Banco Mundial sobre os impactos esperados em 2020 e 2021 da crise instaurada pela COVID-19 sobre os migrantes ressalta que:
Considerando que migrantes tendem a viver concentrados em centros econômicos urbanos (cidades) e são vulneráveis à infecção pelo coronavírus, há uma necessidade de incluí-los em esforços de combate ao coronavírus. (…) Trabalhadores migrantes tendem a ser mais vulneráveis à perda de emprego e salários em uma crise econômica no país receptor, mais do que trabalhadores nativos.
Segundo o Banco Mundial, há a necessidade de incluir migrantes em estratégias de curto-prazo, “dadas as externalidades associadas com o status de saúde de uma população inteira em face de uma pandemia de alto nível de contágio”. Além disso, o relatório afirma que “governos fariam bem em considerar medidas de intervenção de médio e longo prazo” em âmbito socioeconômico que considerem a situação dos migrantes no país receptor e de suas famílias nos países de origem, as quais, muitas vezes, dependem de remessas enviadas por estes trabalhadores.
Não há dúvidas, portanto, da importância de permitir que migrantes que se encontram atualmente em condição irregular obtenham um status migratório adequado para reduzir suas condições de vulnerabilidade e facilitar o acesso aos direitos já assegurados em lei no contexto de combate ao coronavírus. No entanto, só isso não seria suficiente, dado que a crise econômica intensificada pela pandemia de COVID-19 fará com muitos imigrantes, que hoje se encontram com autorização de residência temporária, sejam lançados à irregularidade migratória quando os prazos dessas residências terminarem.
Isso ocorrerá porque, a partir da experiência derivada do Acordo de Residência do Mercosul (Decreto nº 6975/2009), o Brasil passou a adotar em diversas oportunidades o denominado modelo bifásico de concessão de autorizações de residência: primeiro por tempo determinado, normalmente de dois anos; depois por tempo indeterminado. No entanto, para requerer a conversão da autorização de residência por prazo indeterminado, o imigrante deve apresentar, nos termos do Art. 5 do referido Acordo, “documentos para comprovação de meios de vida lícitos que permitam a subsistência do peticionante e de seu grupo familiar de convívio”. Este modelo bifásico com conversão baseada em comprovação de meios de vida lícitos e de subsistência foi replicado em diversas portarias interministeriais para distintos modelos de regularização, como nos casos das portarias 10/2018, 09/2018, 04/2019, 05/2019, 09/2019, 10/2019, e 12/2019.
Se a exigência desta comprovação já era um óbice à regularização para casos de pessoas impedidas ou impossibilitadas de trabalhar e de se manter, como crianças, idosos, portadores de doenças graves ou mesmo imigrantes que recebem BPC/LOAS por idade ou deficiência; no contexto da pandemia COVID-19, a situação se agrava ainda mais. Como pontuado anteriormente, devido aos impactos socioeconômicos desta crise, muitos imigrantes têm perdido ou perderão sua capacidade financeira de subsistência. Nesse sentido, o presente Projeto de Lei também apresenta providências que solucionam este problema, de modo que migrantes já regularizados por prazo determinado não sejam lançados à irregularidade, evitando-se um aumentando ainda maior das situações de
vulnerabilidade.
O texto também dá providências quanto ao acesso de imigrantes, regulares ou não, aos serviços públicos e programas de assistência como a Renda Básica Emergencial e o Bolsa Família. Ressalta-se que o inciso VIII do caput do Art. 4º da Lei de Migração já garante ao imigrante o “acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória”. No entanto, muitos imigrantes não conseguem sacar seus benefícios, acessar o Sistema Único de Saúde (SUS), ou emitir ou regularizar seus CPFs por ausência de uma instrução clara sobre a necessidade de aceitação de documentos estrangeiros pela Caixa Econômica Federal e pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos; ou sobre a irrelevância da documentação e status migratório para atendimento no SUS.
Não por acaso, no início do mês de maio, a Equipe de Base Warmís, o Canicas, a Associação de Residentes Bolivianos (ADRB), o Coletivo Diásporas Africanas, o PAL – Presença da América Latina, o Fórum Fronteiras Cruzadas, o “Sí, Yo Puedo!”, o Centro da Mulher Imigrante e Refugiada, o MILBI, e o Coletivo de Mulheres Imigrantes Cio da Terra, lançaram a campanha “Regularização Já!”. Inspirados por esforços de regularização emergencial em curso em países como Portugal, França e Espanha, estes coletivos e movimentos de imigrantes têm reivindicado medidas concretas que garantam a segurança coletiva no contexto da pandemia no Brasil.
Ressaltamos, por fim, que o texto deste Projeto de Lei foi elaborado em coordenação com as demandas destes movimentos e coletivos, e também através de consultas à Defensoria Pública da União e a organizações da sociedade civil que prestam atendimento e auxílio direto a imigrantes, como a Missão Paz e o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) – as quais colocaram-se, de antemão, à disposição para colaborar para o entendimento e aperfeiçoamento desta proposição por este Parlamento -, e o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS).
Assim, por todas as razões apresentadas anteriormente, e diante da urgente necessidade enfrentar a pandemia de COVID-19 e seus impactos socioeconômicos considerando a perigosa condição de vulnerabilidade de milhares de imigrantes em território nacional, solicitamos a apreciação para os aperfeiçoamentos necessários e aprovação desta proposição.
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Otávio Avila
Editor do oestrangeiro.org e pesquisador do Diaspotics/UFRJ