Com o surgimento do COVID-19 a mobilidade humana adquire novos contornos em que as muitas formas de movimentação humana passam a ser suspensas de forma temporária ou permanente. Nesse contexto, as pessoas migrantes, refugiadas ou em reassentamentos ficaram ainda mais vulneráveis, já que muitos países aproveitaram esse tempo para adotarem restrições aos visitantes e migrantes. No intuito de “achatar a curva” de contágio que ameaça sobrecarregar o sistema de saúde foram diversas as medidas que cada país tomou. Assistimos àqueles que coercitivamente proibiram a circulação das pessoas e que mesmo com um número de mortos elevado conseguiram restabelecer as atividades e interações sociais, econômicas e familiares.

Outros países sugeriram que o distanciamento fosse observado contando com a colaboração da sociedade para que a intervenção tivesse sucesso, mesmo sem impor medidas que restringiam a circulação. Em alguns países veio do próprio governo federal a sugestão de que o isolamento representava uma ameaça à economia e que uma maioria da população estaria fadada a contrair a infecção, como é o caso do Brasil.

Dentre aqueles que minimizaram a letalidade do vírus, alguns rapidamente voltaram atrás devido ao aumento no número de contágios, outros prosseguiram com o que vem sendo chamado por alguns na mídia independente e redes sociais de “necropolítica”. Uma ação deliberada e intencional de certos governos de vitimar uma a população desfavorecida que já se encontra em situação de precariedade. Em muitos casos restrições na circulação de pessoas foram implementadas.

A pandemia colocou a humanidade em um lugar sem precedentes. Nele um “distanciamento social” foi imposto para todos, porém para muitos se apresenta como um luxo a ser seguido. Este é o caso dos trabalhadores dos serviços considerados essenciais e/ou que trabalham em atividades que não podem ser feitas de forma remota (supondo que tivessem estrutura de internet e informática adequadas) e precisam trabalhar para sobreviver, como é o caso dos trabalhadores informais.

Essa imposição que paralisou as atividades econômicas tem impacto na vida das pessoas. Aquilo que se praticava na dita “normalidade” passa a ser perigoso e/ou proibido. As restrições, no entanto, são percebidas de maneira mais ou menos importante dependendo do lugar social ao qual se pertence – para aqueles que já se encontravam numa precariedade social, o impacto foi desastroso. Quem conquista seu ganha pão no dia a dia não pode parar de trabalhar, se quiser alimentar a si e à sua família. Quem tem emprego fixo e pôde fazer reservas de dinheiro encarou esta situação com um pouco mais de tranquilidade.

Muitos autônomos que dependem de empregos sazonais passaram a não contar mais com sua fonte de renda tradicional. Somente uma pequena parcela da população pode se entregar ao confinamento trabalhando em esquema de home office. Para alguns o desafio foi preencher seus dias. Aprender algo novo, praticar exercício físico, meditar, comer de forma saudável, ler livros, aprender a tocar um novo instrumento, fazer pão são todas atividades que para quem está na precariedade soam difíceis. Esta pandemia serviu para expor as desigualdades sociais que, mesmo conhecidas, ficaram ainda mais evidentes.

Angústia pelo deslocamento

Diante do pedido de distanciamento feito pelos órgãos de saúde pública percebeu-se que nem todos têm o privilégio de poder respeitar. Por causa da paralisação das atividades econômicas muitos perderam o emprego e, com isso, alguns foram obrigados a retornar ao seu território natal. Alguns destes cenário foram retratados em artigos de jornais que expuseram as condições de precariedade e medo em que estes retornos se deram. Este é o caso de migrantes internos na Índia, e o de migrantes venezuelanos que perderam seu emprego na Colômbia e no Equador durante a pandemia, entre tantos outros. Tanto pelo fechamento dos espaços onde o comércio, mesmo que informal, se dá ou até mesmo pela falta de clientes, milhares de trabalhadores deixaram de ter uma fonte de renda.

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No confinamento, muitos viram crescendo suas angústias em relação às incertezas que esta situação coloca o sujeito, gerando muita ansiedade. Diante de uma situação de medo extremo, as atitudes que cada um pode tomar deixam de ser racionais e planejadas e se tornam reações ao medo, baseadas em vieses cognitivos fundados em experiências anteriores ou próximas (Sibony, 2020). A manutenção da saúde mental nesse contexto se faz indispensável, pois o isolamento e a ansiedade são uma combinação ideal para o abuso de substâncias, aparecimento ou agravamento de doenças mentais e aumento do risco de suicídio.

Ações práticas do campo da saúde mental: “E-Psi”

Assistimos diante desse cenário a uma mobilização importante de profissionais de saúde que reconheceram que este seria um tempo de muito sofrimento, gerando movimentos de apoio psicológico e psiquiátrico gratuitos para atendimento à população. No início da pandemia, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) rapidamente se pronunciou autorizando os atendimentos online sem a necessidade de aguardar a resposta do pedido de cadastro para atendimento virtual. Esta medida teve como objetivo facilitar e agilizar o cadastro dos profissionais diante do aumento do número de demandas. O próprio CFP orientou que os psicólogos passassem a atender virtualmente seus pacientes cujo encontros anteriormente, eram realizados de maneira presencial.

O processo de certificação do CFP visa garantir a intervenção do profissional na rede virtual e nele, sua situação cadastral, financeira e ética é verificada e validada no Cadastro e-Psi (Cadastro Nacional de Profissionais para Prestação de Serviços Psicológicos por meio de TICs), recebendo uma autorização da prestação de serviços mediados por TICs. Num primeiro momento, alguns terapeutas ofereceram atendimentos gratuitos que foram divulgados entre diversos grupos de Facebook e WhatsApp. Entretanto, diante da necessidade de organizar estes movimentos e garantir uma escuta profissional, diversos grupo de psicólogos se organizaram criando plataformas para os atendimentos voluntários online para aqueles que, durante o período de distanciamento isolamento social, estavam precisando de uma escuta profissional.

A partir das plataformas virtuais concebidas, em pouco tempo os psicólogos podem ser contatados pelos usuários. Tratando-se de uma proposta que acontece nesses moldes, é de se refletir sobre seu acesso, na medida em que nem todos sabem como navegar pelo mundo virtual com facilidade, além das questões que envolvem a língua, como os migrantes, por exemplo, porque muitos não possuem telefone celular.

Migrantes e as tecnologias de comunicação

Existe uma ampla literatura em torno das relações que as comunidades migrantes vêm desenvolvendo com as tecnologias da informação e comunicação. Uma apropriação que reflete um “modelo de organização social virtual em torno de elementos culturais compartilhados” (ElHajji, Malerba, 2016).

Pouco se sabe sobre o uso das tecnologias para a manutenção da saúde mental. Em parte por se tratar de um campo relativamente novo, mas assim como acontece nas apropriações de grupos culturais em diáspora no espaço virtual, a acessibilidade deve ser levada em conta. Diante da precariedade vivida por muitos migrantes, qual o alcance real destes recursos tecnológicos propostos? Como e quem consegue atendimento virtual?

Estas questões não têm uma resposta única. Além das plataformas virtuais, existem redes organizadas de profissionais que respondem a partir de indicações de colegas às necessidades dos migrantes em situação de risco. Destas redes fazem parte psicólogos, advogados, sociólogos, antropólogos e profissionais dos direitos humanos. Organizados também em grupos de WhatsApp, estas redes têm uma capilaridade que permite detectar rapidamente determinadas necessidades e, assim, encaminhar para um atendimento tempestivo.

Eles atuam como mediadores ou facilitadores entre aquele que precisa e aquele que pode eventualmente ajudar. Muitos não têm acesso a uma escuta e permanecem numa situação de exclusão social em que as violências e sofrimento se repetem sem que possam reverter suas realidades. Outros têm acesso e fazem dessa possibilidade um lugar para compartilhar suas angústias e também necessidades. É em torno das narrativas que emergem dos migrantes que puderam ter este espaço de escuta que este artigo se desdobra. Migrantes que a partir de indicação de colegas ou divulgação em rede puderam chegar até mim e outros.

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Um testemunho pessoal de atendimento clínico

Como psicóloga clínica venho atuando com os recursos virtuais, assim como outros colegas. Minha escuta tem atraído migrantes, talvez por eu mesma ser uma e realizar minhas pesquisas junto a essa população. A partir da minha experiência de escuta, pude ter acesso às narrativas que refletem o que mais se faz presente em suas falas nesse tempo de pandemia. É comum o relato de uma certa apatia, que é atribuída a uma falta de perspectivas e incertezas sobre como será o futuro. Este sentimento foi descrito em diversas sessões por um paciente que, vivendo em uma instituição de forma temporária, aguardava o avanço do próprio processo de reconhecimento de refúgio para iniciar “uma nova vida”.

O isolamento representa uma pausa ou suspensão no andamento dos projetos. Esta pausa oferece tempo que, sem ocupação, é propicio para inquietações. É grande a preocupação que muitos têm com seus familiares que vivem longe. Para alguns, é não saber quando terão novamente a possibilidade de revê-los. Para outros, o que angustia é a impossibilidade dos familiares se manterem isolados devido a necessidade de sustento.

Esta é uma situação que se estende a eles e, mesmo que vivendo em situações precárias, também precisam se expor e assumir o risco de renunciar ao isolamento para conseguir o alimento. Portanto, também se expor à possibilidade de ser infectado, não conseguir atendimento e morrer sozinho. Cenário este que aparece muitas vezes veiculado pelas mídias, devido ao alto risco de contágio que impede os familiares de estarem próximos do enfermo ou até velar aquele que faleceu. Em alguns casos, é a forma como a epidemia está sendo tratada pelo governo que suscita dúvidas sobre a segurança daqueles que se ama e que vivem longe. O medo de não poder retornar também emerge nos relatos daqueles que de alguma forma tinham tal possibilidade considerada.

Tempo para observar o tempo que passou

Para outra migrante, este está sendo um tempo para observar. Observar o tempo que passou e a relação que estabeleceu com ele. Ela conta que nesse compasso mais lento restabelecer o que é essencial está sendo uma experiência diária. Nesse resgate de uma possibilidade diferente de lidar consigo mesma e com o outro, o que realmente importa, ela diz, são os laços familiares. No seu caso, foi o resgate de relações que, segundo ela, não estavam no “devido lugar” e mereciam mais investimento de tempo e de escuta. Agradece e reconhece o privilégio de ter essa oportunidade, mesmo diante da angústia do futuro incerto. Para muitos, com o passar dos dias, o privilégio concretizou a ameaça do fim do emprego. Para os autônomos ou que vivem de projetos pontuais, como para muitas outras categorias, a parada/suspensão das atividades econômicas têm um preço alto.

O que tem para contar nem sempre é tranquilizador

É de se observar que nestes relatos não há algo que possamos dizer que é próprio à categoria migrante, mas o lugar que sua condição os coloca é atravessado por determinados fatores que interferem em suas experiências. Estar na condição de migrante implica depender da razão pela qual se deslocou, o lugar para o qual se migrou, as condições materiais, emocionais e psíquicas que se dispõe, como também o gênero ao qual se pertence. A relação com as redes sociais torna-se a forma quase exclusiva para saber daquele que está longe. A habilidade de navegar nos territórios virtuais se faz primordial para quem quer manter o laço. Em outro relato de minha clínica, a pessoa dizia não entrar em contato com a própria mãe que vive longe por não querer preocupá-la, além da dificuldade da outra de interagir dessa forma. Todas as interações devem passar pela ajuda de outros familiares, o que tira a privacidade da conversa e a dissuade de tentar novos contatos, porque o que tem para contar nem sempre é tranquilizador.

O que fazer com nossos medos?

Nesse cenário de incertezas, as narrativas materializam algumas angústias específicas e mostram como outras que já faziam parte da estrutura do sujeito, encontram-se potencializadas. Quando o ser humano se sente ameaçado e percebe sua vida em risco, o que se faz presente para todos é o medo. Medo de perder, medo de não ser mais, medo do que está por vir, medo do que não vai nunca ser. Existem medos que paralisam, outros aos quais se responde pela fuga ou “combate”.

A experiência do isolamento parece provocar respostas diversas e ainda há muito para se aprender sobre seus efeitos a longo prazo. Ninguém sabe ao certo sobre estes efeitos, mas em um primeiro momento houve aqueles que compartilharam da ideia de que o isolamento fosse uma possibilidade de mudança estrutural no funcionamento da nossa sociedade. Esse entusiasmo inicial foi se dissipando com o tempo, sobretudo, com a percepção da forma como cada um podia aderir a esta prática. O que era para ser uma oportunidade de reverter modelos e pensar uma sociedade mais justa em que todos tivessem as mesmas oportunidades não se mostra poder sê-la. A desigualdade social ainda presente na forma como cada um pode parar para ficar em casa ou se expor sem escolha pela necessidade de conseguir seu sustento é uma prova disso.

Nesse contexto, diante dos medos, os traços de cada um ficaram mais exacerbados diante do desconhecido. Os desafios continuam iguais a todos com a mesma desproporcionalidade e injustiça de sempre. Continuamos com a responsabilidade de estar nesse mundo não sendo apenas aquilo que fizeram de nós, mas sim dar um novo sentido: “o que fazer com isso”. Uma responsabilidade que podemos assumir no percurso do autoconhecimento que a escuta clínica oferece para quem puder acessá-la.

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Bibliografia

ELHAJJI, M; MALERBA, J. (2016) Dos usos comunitários da webradiofonia no contexto migratório transnacional.

SIBONY, O. Comprendre les biais cognitifs en pleine crise du coronavirus avec Olivier Sibony – Conférence.

 

Suzana Duarte Santos Mallard
Doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics.