A segunda entrevista ao vivo realizada pelo oestrangeiro.org com imigrantes youtubers contou com a participação do angolano Aylton, o PDF. Vivendo há sete anos no Brasil, praticamente todo esse tempo em Bauru, no interior de São Paulo, ele, que está em processo de naturalização, conversou por uma hora conosco sobre sua experiência de migração, do porquê criou seu canal, falou sobre a relação Angola-Brasil e contribuiu com uma importante fala sobre o racismo.
Aylton não veio solicitando refúgio ao Estado brasileiro. Apesar da Angola ser hoje uma das principais origens dessas regularizações, sobretudo por questões econômicas que por vezes aguçam a saída da África, sua chegada ocorreu pela via estudantil, apoiada pelos pais desejosos de que cursasse Engenharia. Cumpriu por quatro anos o pedido dos parentes, mas o deixou “trancado” por conta das dificuldades financeiras. Acabou utilizando o tempo para se dedicar ainda mais à produção de mídias.
“Graças ao Youtube eu consigo me reconectar com as coisas que eu amo”, disse, ao mesmo tempo anunciando o desenvolvimento de um negócio digital, o Faz Ay. “Já estou me preparando para isso, eu vou criar muitas coisas boas”.
É interessante a relação vital que Aylton manifesta com as mídias. A conexão mencionada por ele está ligada às emoções que sente transmitir ao realizar trabalhos artísticos, algo que para ele era difícil de passar por meio da engenharia ou pelo trabalho técnico de computação, outra área de estudo. “Nas artes, eu me sinto muito feliz. É como se alguém me pagasse para brincar. Me sinto realizado em saber que estou impactando vidas”.
Aylton trata a migração como um reconexão e uma redescoberta. A decisão de vir para o Brasil se concretizou porque um irmão vivia no Rio de Janeiro, mas a cidade não o encantou. “O Rio não era do jeito que eu esperava porque era muito próximo ao que já tinha. Geralmente, quando as pessoas vão para outro lugar, elas têm aquela expectativa toda que a vida vai mudar, que as coisas vão acontecer. O Rio me lembrava muito a capital de Angola, Luanda, de onde eu venho: camelô, lotação, a insegurança na cidade, policiais fortemente armados e até as praias, tudo me lembrava”.
A chegada a Bauru também demonstra a importância das redes afetivas que possibilitam o imigrante mover-se por novos territórios com certa segurança. Mediante conversa com um amigo que residia na cidade e ouvindo sobre a tranquilidade e o espírito universitário propício para focar nos estudos, decidiu morar no interior.
A certeza sobre viver em Bauru não contempla toda sua ideia de futuro. “Essa é uma pergunta que eu respondo de um jeito, depois vai de outro, depende do humor do dia, sabe? Mas na maioria dos casos eu respondo igual ao Zeca Pagodinho: ‘deixa a vida me levar’. Mas com certeza eu vou voltar para a Angola de algum jeito. Já tenho alguns projetos que podem agregar muito ao país. Entre os dois países eu vou estar. São minhas duas casas”.

Um dos motivos de querer passar mais tempo na Angola também está ligado à saudade de sua família. Inclusive, foi tendo ela em vista que o imigrante criou o canal no Youtube com o objetivo de o acompanharem mais de perto, saber como e onde está. Ele lembrou das antigas plataformas tecnológicas que cobravam em dólar para fazer contato com os parentes. Hoje, ele fala com a família quando quer. E conversávamos quando seu celular tocou. Paramos a entrevista por um minuto e ele veio trazendo a novidade. “Adivinha quem era? Minha mãe! Falamos dela, atraiu!”
Sobre o outro motivo de ter criado o canal, foi categórico: “Eu cansei de responder perguntas sobre a Angola. ‘Onde é a Angola?’ ‘Lá, que língua falam?’ E realmente não havia onde achar algumas informações, raramente um leigo encontrava alguma coisa que realmente queria saber sobre a Angola. Então eu resolvi criar esse conteúdo”.
Aylton também contou que o canal não tinha um nome tão individual, no início. A ideia era chamar Gringolândia TV, que reuniria vários imigrantes falando de seu país, porém a falta de rotina fez com que, por consenso, ele continuasse criando os conteúdos sozinho. Aos poucos e, aproveitando o capital cultural e a diversidade explorada nos vídeos, o canal cresceu e, ao longo desses quatro anos, está prestes a bater 27 mil seguidores. “Ainda não fiz 20% do que planejei. Tem muito projeto para o canal ainda”.
Sobre os principais conteúdos, Aylton elencou principalmente três: um, que lhe deu uma audiência inesperada e no qual mostra diferentes aberturas de desenhos da Disney entre as produções brasileira e portuguesa. Outro, discute o status de negra da princesa britânica Megan Markle. E outro que explica a independência angolana, a qual exclamou: “Meu, que história bonita!”.
Aylton expressou também a decepção que é para os angolanos descobrirem o pouco conhecimento que os brasileiros têm do seu país.
“Isso é uma decepção total para os angolanos. Nós consumimos bastante coisa sobre o Brasil. Nós temos a Globo, Record, Band e desde pequenininho eu acompanho a realidade brasileira. Sabe quando você acompanha muito a Taís Araújo ou algum outro famoso e você o cumprimenta na rua como se ele já o te conhecesse? É isso que acontece com nós, angolanos. Quando chega aqui, você fala, ‘qual língua fala em Angola?’ Você só quer saber isso. E a pessoa fala, ‘angolês?’. É por isso que decidi fazer esse tipo de conteúdo, sabe”.
Segundo ele, 80% do seu público é brasileiro, seguido por portugueses. Só depois os angolanos aparecem como principal audiência do canal.
Quando perguntado sobre temas que evita falar, assim como a venezuelana e youtuber Vicky Márquez disse em sua entrevista, uma semana antes, também é a política o tema a ser evitado. Porém, explica: “No passado, minha família sofreu perseguição política, então a minha família tem muito trauma quando é este o assunto. Minha mãe já perdeu um irmão e se eu aparecer com bandeira de um partido político, ela surta. Mas de forma indireta eu acabo entrando nestes assuntos”.
A violência não fica restrita apenas ao passado angolano. Aylton relatou que um amigo que mantém posicionamentos políticos mais firmes recebeu um tapa na cara na porta de um bar em Bauru, seguidas pelas palavras do agressor: “Você não pode falar nada disso”. “Você não sabe com quem você está falando, quem está te vendo e meu canal é muito ‘family‘”, lamentou e ao mesmo tempo dizendo não se abalar com as críticas que eventualmente possam ocorrer.

O tema político levou, evidentemente, a problematizarmos o racismo em tempos de protestos e reivindicações dos negros. Tratando-se de um homem que vem de um país africano majoritariamente negro, Aylton rechaça a “autoridade” dada a ele por ser originário do continente. “Acabam me pegando como referência, como mediador daquele que está lá. ‘Aylton, quem é negro, quem é branco?'”.
Em uma das últimas postagens que fez no Instagram, Aylton usou o espaço para fazer um desabafo sobre a minimização do racismo que fazia quando chegou ao país. Explicou que há diferenças dependendo de onde se vive a experiência de ser negro. Na Angola, há personalidades televisivas e políticas de sua cor e é possível “se ver” neles, enquanto o efeito sistêmico é diferente em países cuja diferença racial ordena quem são desejados e os indesejados.
“Agora, sete anos se passaram e eu estou no Brasil. Hoje em dia, eu consigo ter a oportunidade de experimentar como é ter uma infância negra brasileira graças a minha filha. Eu estou tendo a oportunidade de sentir na pele o que é ser negro no Brasil e aos poucos você vai percebendo que isso vai te moldando, te mudando, e o quanto você tem que se adaptar para se encaixar nesse meio, o quanto você tem que provar o tempo todo para conseguir alguma coisa”.
E completa com um exemplo prático: “Hoje, eu já não ando de chinelo e de bermuda porque é muito fácil você olhar para uma pessoa negra daquele jeito e associar a um ladrão […] o subconsciente está trazendo este tipo de imagem”.
Nada disso o faz perder o orgulho de ser angolano. Pelo contrário. Ele adiantou que “o ápice do canal vai ser quando for a Angola no fim do ano com os amigos” onde poderá mostrar nos vídeos aquilo que os brasileiros querem saber sobre o país. O orgulho, contudo, carrega a dupla identificação de alguém modificado pelo processo migratório. “É muita coisa que mudou em mim. Se for ver, eu não me encaixo tão bem na sociedade angolana. A maturidade, a forma de pensar atual pode ser diferente, afrontosa demais”, referindo-se a alguns conservadorismos de lá e que foram superados por ele aqui. “O Aylton que saiu da Angola era um menino que não fazia nada da vida, morava com os pais que supriam a necessidade dele. Ele não tinha opinião […] e eu sou grato ao Brasil por isso, por me dar essa oportunidade de crescer”.
A gente é que agradece, Aylton.
Quer assistir a conversa toda? Acesse aqui.
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Otávio Ávila
Pesquisador de doutorado do Diaspotics/UFRJ e editor do estrangeiro.org