Maurício Dumbo. Foto: Cezar Loureiro/CPB

Hoje, vou contar um pouco da história do Maurício Dumbo, refugiado angolano, deficiente visual e atleta campeão da Seleção Brasileira de Futebol de 5. É uma história inspiradora, permeada por momentos de dificuldades e, principalmente, superação. Quem nos conta é o próprio Maurício, de forma leve, generosa, sensível e com boas doses de humor, numa entrevista concedida em 08/08/2020. 

Maurício nasceu numa Angola assolada pela guerra civil, que durou quase três décadas, de 1975 a 2002. Aos cinco anos, ele ficou cego, consequência do sarampo. Na ocasião, a família resolveu tratar a doença em casa porque a maioria dos hospitais estava destruída, sem contar que as estradas possuíam minas terrestres que podiam explodir a qualquer momento, ao menor contato.

A partir do momento em que ficou cego, sua vida mudou. Acabou a rotina do menino arteiro que brincava e corria, sem muita preocupação. Anos depois, e também graças a sua condição de deficiente visual, sua vida continuaria a mudar, só que, desta vez, para melhor. Muito melhor.

Em 2001, graças a um projeto de cooperação entre Brasil e Angola, Mauricio veio para o Brasil estudar. O projeto era voltado para pessoas (crianças, adolescentes e adultos) que ficaram com alguma sequela física em função da guerra. Com onze anos de idade, ele não sabia ler nem escrever, também mal falava português, pois em Benguela, cidade onde nasceu, se falava um dialeto próprio da região. Porém, a verdadeira responsável pela sua vinda ao Brasil foi sua mãe, D. Justina. Quando o governo angolano fez a proposta de incluí-lo no projeto, ela imediatamente percebeu, ali, a oportunidade de tirar o filho daquele ambiente devastado e sem futuro. Maurício reconhece e agradece o desprendimento da mãe. Emocionado, ele relembra este momento:

“Hoje, eu agradeço a minha mãe por não ter sido egoísta. Ela passou por cima da saudade que iria sentir. E também arriscou: deixou seu filho, cego, de 11 anos vir para um país tão distante. Ela só pensou no que seria melhor para mim. Ela sabia que se eu ficasse em Angola, minha vida ficaria estagnada”.

Em princípio, Maurício não queria vir. Criança, deficiente visual e longe da mãe: não parecia uma boa ideia. E, de novo, entra em cena D. Justina. Mesmo sem saber ler nem escrever, a sabedoria, adquirida ao longo de uma vida de dificuldades, se impôs. De forma matreira, ela convenceu o filho: “minha mãe, muito inteligente, falou que eu ia conhecer o Adriano, que jogava no Flamengo, o Ronaldinho Gaúcho e a Taís Araújo”. Maurício nos conta essa passagem em meio a risos. Seu bom humor é contagiante.

Quando chegou, sua relação com o futebol não era de muita proximidade. Ele admirava o futebol brasileiro, mas não tinha a menor ideia que ele, deficiente visual, poderia jogar. Em Juiz de Fora, primeira cidade que o acolheu, as crianças colocavam a bola dentro de um saco plástico. Dessa maneira, ela fazia barulho e dava para saber onde estava. O problema, nos conta Maurício de forma bem humorada, era quando ele estava brincando sozinho e o saco rasgava. Como não dava mais para saber onde a bola estava, a brincadeira acabava.  

Mauricio Dumbo em ação com a camisa da seleção. Foto: Bruno Miani/CBDV

Foi no Paraná, no Instituto Paranaense de Cegos, onde viveu de 2001 a 2010, que se deu o primeiro contato com o esporte de maneira mais profissional. O início foi difícil, Maurício estranhava o peso da bola de guizo. Logo no primeiro dia levou uma bolada na boca do estômago, que quase o fez desistir, lembra rindo. Outra característica é que no futebol de 5 tem que falar muito para evitar as trombadas. Isso fez com que Maurício perdesse, pouco a pouco, a timidez e a desconfiança, naturais em uma criança que já tinha passado por tanta coisa.

Com o tempo, começou a tomar gosto pela coisa. Começou a fazer gols e disputar campeonatos, até que começou a chamar a atenção da comissão técnica da seleção brasileira. Em 2007, Maurício se transferiu para o time da Adevipar (Associação dos Deficientes Visuais do Paraná), onde ficou até 2011. Em 2012, foi para São Paulo, jogar na APADV (Associação de Pais Amigos e Deficientes Visuais). Em 2013, volta para o Paraná, desta vez para jogar na AEDV (Associação Esportiva dos Deficientes Visuais do Paraná). Em 2014, se transfere para o AGAFUC (Associação Gaúcha de Futebol para Cegos), onde está até hoje. 

Entre estas idas e vindas, foi em 2009 que veio o convite para treinar com a equipe nacional. Quando participou das Paraolimpíadas, em 2016, já era um cidadão brasileiro, graças ao apoio incondicional da AGAFUC, que arcou com todos os custos do processo.

Passaram-se 19 anos e Maurício está com 30 anos. O esporte teve um papel primordial para sua vinculação física e simbólica, no Brasil. Hoje, ele é um atleta de alto rendimento e vive do que ganha com o futebol de 5. Para ele, o esporte é capaz de quebrar qualquer barreira, inclusive o preconceito racial e a xenofobia. “Eu só nasci em Angola. Quem me criou, me deu educação, me tornou um cidadão, foi o Brasil. Então, eu me sinto como se tivesse nascido aqui. Eu adotei o Brasil como minha pátria de coração”.

De menino pobre, cego, refugiado, nascido num país devastado pela guerra a um atleta campeão, vitorioso e respeitado. Maurício conseguiu, por meio do esporte, conquistar seu espaço, se fortalecer para administrar os conflitos, construir uma nova territorialidade e resgatar sua cidadania. É ou não é uma história inspiradora?

Conceição Souza
Doutoranda do PPGCOM-UERJ, pesquisadora do LACON/UERJ, CAC/UERJ e Diaspotics/UFRJ.