Quanto mais adentramos nos trabalhos em torno da questão migratória, percebemos que uma grande parte deles prioriza, e com razão, as condições do acolhimento das populações migrantes. Muito se tem discutido sobre os campos de refugiados, sobretudo à luz das condições de violências e privação de direitos em que as pessoas se encontram. Podemos assistir aos países europeus, que possuem as maiores fronteiras com territórios em conflito, digladiando-se sobre quem deve assumir a responsabilidade de acolher um maior número de pessoas e em que condições. Mesmo não sendo uma exclusividade destes territórios, como a Grécia ou a Itália, percebemos que estas disputas tomam tempo dessas muitas pessoas que aguardam o acolhimento.

Globalmente, o número de migrantes internacionais vem crescendo rapidamente. Atualmente, eles representam 3,4% da população global e muitos deles vivem em campos de refugiados que, de acordo com a ACNUR, “são assentamentos humanos com anatomia e características projetadas para dar atenção a quem foge da guerra ou dos conflitos armados. Eles geralmente estão localizados em territórios de fronteira, longe de zonas de conflito”. 

Para alguns, o fenômeno da mobilidade humana é a possibilidade do encontro, crescimento e transformação; para outros, nem sempre o exílio marca o fim das violências. Enquanto uns viajam em busca de melhores condições de vida (CASTLES, 2014), outros podem perdê-la em função de uma ameaça que os obrigaram à fuga, os privilégios que tinham no país de origem. A experiência do migrante refugiado no país de acolhimento depende, em parte de sua origem, do local de acolhimento, do gênero e da sexualidade performada assim como das condições econômicas.  

Infelizmente, esta é a realidade daqueles que vivem nos campos de refugiados à espera de que algum país os acolha. A vida nos campos de refugiados já foi comparada por aqueles que puderam ver de perto ou circular por eles como verdadeiras prisões ou campos de extermínio. Dependendo do país eles estão localizados, estes espaços possuem grades e carcereiros que vigiam para que ninguém escape ao seu destino. A fuga é praticamente impossível para aqueles que viajam com crianças ou idosos ou cuja locomoção se encontra comprometida. Ela pode ser extremamente difícil, até mesmo para a pessoa desacompanhada. Os mecanismos, cada vez mais sofisticados, comprometem toda tentativa. 

Diferente das prisões, não há crime, a não ser querer sobreviver. As razões que levam alguém a deixar o familiar para se lançar no desconhecido apontam frequentemente para uma falta de opção e um desejo de permanecer em vida.  Nesses espaços, a escassez tornam as pessoas em rivais que disputam o pouco que lhes é oferecido. Lugares de grande embaraço para a comunidade internacional e para os países que permitem seu funcionamento, eles são o fim da viagem de muitos. 

Mantidos à margem da cidade para que poucos saibam do que neles se passa, viram manchete quando uma grande tragédia acontece. Este foi o caso do campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos, que abrigava cerca de 13 mil pessoas. Segundo relatado pela imprensa, o incêndio aconteceu depois que 35 pessoas, cujo resultado havia sido positivo ao Covid, negaram-se ao isolamento ou a transferência para outro local. Os enfrentamentos começaram entre os próprios refugiados que colocaram fogo neste espaço que inicialmente havia sido planejado para acolher 3 mil pessoas.

Campo em Bangladesh. Foto: Navesh Chitrakar/Reuters

Dez dos mais numerosos campos de refugiados encontram-se no continente africano. Alguns desses complexos existem desde a década de 1970, mas já em 1948 tais estruturas eram formadas para abrigar refugiados do êxodo palestino. Estas áreas que incialmente haviam sido concebidas para abrigar temporariamente e serem espaços de transição, eventualmente acabam sendo locais de nascimento e morte.

Segundo indicadores estatísticos da ACNUR, atualmente é Uganda o país que mais abriga refugiados em seus campos, com cerca de 850 mil pessoas, e conta com o maior de todos eles, localizado em Adjumani, onde vivem 215 mil refugiados. A Etiópia vem logo em seguida com 650 mil pessoas abrigadas em campos do seu território; e completa esse trágico pódio o Chade, com cerca de 440 mil refugiados abrigados. Fora da África, é Bangladesh, no sul da Ásia, o país que mais soma refugiados residindo em campos (350 mil), sobretudo pelos milhares de rohingya que fogem das perseguições no vizinho Mianmar*.

No Brasil, não existem campos de refugiados. Propostas polêmicas não faltaram como a do então pré-candidato à presidência da república Jair Bolsonaro que em março de 2018 chegou a defender a criação de campos de refugiados para os venezuelanos. O que se oferece para o acolhimento temporário das populações migrantes solicitantes de refúgio são abrigos. Longe de ser ideal, a proposta do abrigo é diferente dos campos de refugiados, pois neles ninguém é mantido contra sua vontade.

Estes abrigos variam de tamanho e, somente em Roraima, a ACNUR conta com 14 instalações entre Boa Vista e Pacaraima. Neles, cerca de 4.600 venezuelanos que chegam ao Brasil recebem um acolhimento temporário enquanto realizam a solicitação de refúgio e são reassentados em outros estados do país. Devido ao volume de pessoas que precisam deste espaço, e para acomodar um maior número de pessoas, alguns abrigos precisam adotar um esquema de rodízio para o acolhimento. Neles, alguns migrantes ficam o dia todo. Aqueles que permanecem são também responsáveis para preparar e recolher os colchões ao amanhecer quando um outro grupo que fica somente para dormir deixa o espaço. 

Abrigos Rondon 1, 2 e 3 em Boa Vista, Roraima. Foto: ACNUR/Victor Moriyama

Existem refugiados que chegam por rotas clandestinas e não chegam a aparecer nessa contabilização. Um número significativo daqueles amparados pelo estatuto do refugiado vivem em situação de extrema pobreza. A manutenção da clandestinidade deste cenário pode ser entendida como expressão dos interesses de um capitalismo que só funciona a partir da mobilidade controlada. Assim, a arbitrariedade, a escolha, as oportunidades, a origem, a classe social, o nível de escolaridade, o país de acolhimento, o gênero e a cor operam e têm impacto direto na saúde mental daquele que migra. As políticas discriminatórias a partir de um processo discursivo negam a humanidade deste sujeito tornando-o um Homo sacer, aquele que não direitos, de acordo com a o filósofo Giorgio Agamben (1997).   

Na perspectiva do filósofo, a política passa a funcionar como um instrumento que retira direitos dos sujeitos os animaliza criando possibilidades para que sua rejeição aconteça dentro de um certo amparo jurídico e legal. Estar no lugar de alguém cuja vida não tem valor também o retira de sua categoria de cidadão. Neste sentido, são as estratégias políticas que reformulam esta categoria de cidadão de acordo com interesses que visam a manutenção do controle do sujeito. Acreditamos ser esta uma das razões que permite que o tema do refúgio seja tratado pela maioria dos governos a partir da perspectiva da crise. 

Estamos familiarizados com manchetes sobre o tema precedido pela enunciada ‘crise migratória’. Este posicionamento certamente influencia as diversas iniciativas que são conduzidas para esta população. Esta perspectiva crítica da questão da mobilidade é proposta e trabalhada por autores como Mbembe, Alioua, Blanchard e Rodier, Evora (2017), Martiniello e Simon, Sarr e Blanc. Eles apontam a necessidade de estar alerta pois por detrás até mesmo da categoria de migrante existe uma ideia que permeia as ações. A própria formulação da categoria migrante se inclui nesta perspectiva numa estratégia de poder. De acordo com Evora (2017, p. 57): 

“O debate sobre os processos de nomear, definir, classificar e categorizar pessoas, grupos e populações em situação de mobilidade surge de forma mais sistematizada, sobretudo no contexto das sociedades pós-migratórias, mas trata-se de uma questão estruturante da abordagem às mobilidades humanas actuais em geral e ́ colocada da mesma forma aos grupos minoritários e às ciências sociais como uma questão de estratégia política” 

Estes autores trazem uma importante reflexão sobre o fenômeno da mobilidade humana, pois trata-se de reconhecer que existem estratégias políticas que organizam as intervenções em torno desta população. Estas estratégias deixam de levar em conta o caráter das relações de continuidade histórico-culturais e linguísticas que a mobilidade proporciona e que desde sempre fez parte da espécie humana. O medo do outro passa a ser instrumentalizado sob forma de ações que têm o objetivo hipotético de restituir ao nacional sua segurança, seus direitos e seu solo ameaçados pelo estrangeiro. 

A instrumentalização do medo do outro vem servindo aos governos populistas como distração da inação dos Estados. As fronteiras são guardadas, os limites dos territórios demarcados, renegociados ou invadidos para se estabelecer quem pertence e quem não. Os estrangeiros são perseguidos, aprisionados, recusados ou selecionados a partir de interesses outros. O Estado deixa de se responsabilizar em criar e investir em políticas públicas efetivas e inclusivas deixando muitos cidadãos num território jurídico e moral sacer retomando a origem grega do termo. O Homo-sacer foi aquele que cometeu um grave delito e cujo ato coloca em risco a relação da coletividade (pax deorum) com os deuses e, portanto, é deixado “a mercê da vingança dos deuses. Expulso do grupo social, excluído de todos os direitos civis, a sua vida passava a ser considerada ‘sagrada’ em sentido negativo”.

Referências:

ACNUR. Refúgio em números. 4ª edição. 2019.
AGAMBEN, G. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Enaudi Ed., p.11, 1995.
CASTLES, S.; HAAS, H; MILLER, M. The Age of Migration International Population Movements. In the Modern World Fifth Edition, p. 55, 2014.
EVORA, I. Continuidades e transformações no estudo das migrações. Elementos para a análise crítica das mobilidades africanas contemporâneas. In Movimentos migratórios e relações rural-urbanas: estudos de caso em Moçambique. Coordenação, p. 57-68, 2017.

NOTA DO EDITOR: Os dados sobre campos de refugiados são constantemente modificados e encontramos informações difusas sobre eles no mundo. No entanto, seguimos indicadores encontrados no site da ACNUR (citados acima) para trazer essas informações ao leitor. Outro ranking pode ser acessado aqui.

Suzana Duarte Santos Mallard
Doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics.

[Com informações de Otávio Ávila].