Abdelmalek Sayad [1] lembra que a migração é muitas vezes associada exclusivamente ao aspecto econômico, sendo ignoradas diversas outras perspectivas que ela pode assumir. O indivíduo, quando opta por deixar seu país de origem, nem sempre o faz em busca de oportunidades de trabalho e melhores salários. Diversos outros fatorespodem ser determinantes para uma decisão tão importante. Isso pode ser observado na comunidade iraniano-bahai no Brasil que, entre outras particularidades, fez importantes contribuições à educação e saúde no país e foi o primeiro grupo de refugiados não europeus a ser recebido de forma ilimitada no Brasil.
A religião Bahá’í surgiu em 1844 em Shiraz, na antiga Pérsia e atual Irã, através de Ali Muhammad Shirázi de Sayyid, o Báb. Ele anunciou a vinda de uma figura messiânica que em breve apareceria para transmitir à humanidade a mensagem divina. Esse papel foi assumido em 1863 por um de seus seguidores, Mírzá Husayn `Alí Núri, o Bahá’u’lláh. Ele e seu filho, Abdu’l-Bahá, foram os responsáveis por estabelecer seus princípios e expandir a religião para além das fronteiras da Pérsia. A fé Bahá’í é baseada no monoteísmo e em três pontos fundamentais: a unidade de Deus, da religião e da humanidade. Reconhece diversos mensageiros divinos ao longo da história, como Moisés, Buda, Jesus e Maomé; e considera Bahá’u’lláh como o último emissário de Deus, que teria complementado os ensinamentos anteriores, inclusive os de Maomé.
Motivações da migração
Por conta disso, a fé Bahá’í não é considerada pelo clero muçulmano que comanda o Estado iraniano uma religião, mas sim uma apostasia do Islã. Como lembra Samy Adghirni [2], os bahá’ís são a minoria mais perseguida do país: não possuem representação no Parlamento, não podem exercer empregos públicos e estudar nas universidades, muitos templos e cemitérios foram demolidos e frequentemente residências de bahá’ís são invadidas pela polícia.
No entanto, a aposentada Faezeh Behrouzi, natural de Teerã que migrou para o Brasil em 1977, lembra que o preconceito contra os bahá’ís no país é anterior à Revolução de 1979 que colocou os aiatolás no poder: “quando era pequena, ia caminhando da minha casa até a residência onde aconteciam as aulas de educação moral para as crianças bahá’ís. No caminho, alguns homens gozavam e xingavam a gente”. Sua mãe, a única bahá’í do lado materno da família, foi expulsa de casa. A hostilidade constante foi um fator determinante para que ela decidisse deixar o país com o marido e as duas filhas pequenas.

A família antes de vir para o Brasil. Acervo pessoal
A migração bahá’í-iraniana também teve um caráter espiritual: a Casa Universal de Justiça, instituição administrativa máxima da fé Bahá’í, estimulou os fiéis a migrar para distintos países de forma a contribuir com a expansão da religião. Locais distantes e com pouca presença bahá’í, como o Brasil, eram especialmente encorajados. “Existe um ato de sacrifício na vivência bahá’í que é o serviço a Deus e à humanidade que recebe a denominação de pioneirismo. Nessa prática, o indivíduo deixa o conforto de seu lar para contribuir com o crescimento e ensino da fé Bahá’í em terras distantes”, explica Payvand Eghbali.
Tais fatores, somados, fizeram com que o perfil migratório da diáspora bahá’í-iraniana não correspondesse ao imaginário clássico sobre os migrantes provenientes do Oriente Médio.
Perfil da comunidade e pouco conhecimento sobre o país de destino
O médico ortopedista Farhad Shayani esclarece que a grande maioria das famílias de bahá’ís iranianos que desde 1953 migraram para o Brasil era composta por profissionais universitários altamente qualificados, empresários bem sucedidos e pequenos comerciantes estabelecidos no país de origem. “O meu pai, por exemplo, tinha uma rede de lojas de eletroeletrônicos no centro de Teerã, era um negócio muito próspero. Ao decidir sair com toda a família para o Brasil, foi considerado louco”, diz. Esse perfil socioeconômico só mudou com o grupo que foi recebido na década de 80.
Os iranianos que decidiram vir para o Brasil pouco sabiam sobre o país. Shayani lembra que em 1956 chegou no porto do Rio de Janeiro esperando “uma terra de cobras, florestas, papagaios e indígenas – tudo que o imaginário da época pintava”. Faezeh recorda que, para ela e os conhecidos, o Brasil era um país extremamente precário. “Quando desembarcamos em São Paulo e vimos aqueles prédios altos, ficamos surpresos, pois esperávamos ver selva”. Lembra também da grata surpresa ao chegar no destino final, em Ribeirão Preto: “próximo à rodoviária, vi no final da rua um poste iluminado. Chamei o meu marido, que estava dormindo: ‘Acorda! Onde vamos ficar tem luz! Olha que legal!”.
Os primeiros refugiados não-europeus
A maioria veio por conta própria, sem qualquer apoio oficial do governo brasileiro. No entanto, entre 1986 e 1988, o Estado brasileiro, em uma iniciativa histórica após negociação com a Assembleia Espiritual Nacional – o maior órgão administrativo da féBahá’í no país – e a ONU, recebeu cerca de 200 refugiados bahá’ís do Irã. Foi o primeiro grupo de refugiados não-europeus acolhidos de forma ilimitada no país [3], tendo sido admitidos na modalidade “prima facie”, de forma coletiva e sem entrevistas individuais. Payvand foi um deles. Saiu do Irã para o Paquistão, de lá aplicou para o programa e chegou ao Brasil ainda em 1986. Lembra que obteve o visto que deveria ser renovado a cada dois anos, mas, diferente de outros locais, os refugiados bahá’ís iranianos não receberam auxílio financeiro ou de logística do Estado brasileiro.

A saída do Paquistão e a chegada ao Brasil. Acervo pessoal
Adaptação
A adaptação a um local distante com uma cultura tão diferente foi difícil, como não poderia deixar de ser. Faezeh lembra que a família no início sofreu muito e que quase chegou a desistir de viver no Brasil. A questão idiomática era uma imensa dificuldade: “sofremos muito para aprender o português. Íamos ao supermercado e não conseguíamos identificar o que era leite, o que era manteiga… meu marido quis que fôssemos aos Estados Unidos, mas me mantive firme no propósito de continuar no Brasil”. Por sugestão de amigos brasileiros, aprenderam o português assistindo à novelas e noticiários.
Mas o idioma não era a única dificuldade. “O que pega para alguém que vai morar em outro país é a solidão. A questão do companheirismo, ter alguém que ouça você, fale a sua língua, que tenha os seus costumes, coma a sua comida…”, conta a engenheira Nilu, que veio ao Brasil em 2005, quando tinha 13 anos. Além da língua distinta e a solidão, o preconceito e ignorância de alguns brasileiros sobre os persas era uma outra dificuldade: na escola, em Mato Grosso, sofria muito bullying. “Eu ouvi muita coisa, mas em compensação aprendi a ser forte”, diz.
Nilu é um bom exemplo do perfil da imigração iraniano-bahai. No processo de adaptação e também pelo desejo de divulgar a fé bahá’í pelo Brasil, a maioria dos migrantes viveu em distintas localidades do país. Passou por Mato Grosso, Paraná e São Paulo, onde reside atualmente. Hoje, se considera completamente adaptada: “eu me sinto super brasileira, até porque moro aqui há 16 anos, enquanto vivi no Irã por 13. Minha fase consciente no Brasil é muito maior que a do Irã”.
Muitos bahá’ís contaram com a valiosa ajuda da comunidade religiosa no processo de chegada e acomodação no Brasil. Payvand conta que foi recebido pela Assembleia Nacional no aeroporto de Garulhos e levado ao Soltanieh, centro de eventos da comunidade localizado em Mogi Mirim (SP), onde os recém-chegados vivem por alguns meses e têm aulas de português. Após o período em Mogi, foi para Campo Grande e posteriormente para outras cidades de São Paulo, até voltar para Mogi Mirim, onde trabalhou por 11 anos gerenciando o Soltanieh e acabou fixando residência.

Convenção Nacional Bahá’í, 1987. Acervo pessoal
Além da Assembleia Nacional, os bahá’ís também contam com o suporte das Assembleias locais, presentes nos municípios com mais de 9 bahá’ís. Através dessa estrutura, apoiam os recém-chegados em diversas questões, como na busca por estadia, trabalho e no aprendizado do português. Faezeh lembra que ela e o marido receberam um dos iranianos-bahá’ís que chegou com o grupo de refugiados aceitos nos anos 80. A noiva, que havia ficado no Paquistão, veio alguns meses depois. Os dois viveram por um tempo na residência do casal, e o marido da Faezeh ajudou o jovem a conseguir seu primeiro emprego no novo país. O casal ainda organizou a festa de casamento dos noivos.
Shayani, que assim como Faezeh já se encontrava estabelecido no Brasil, também se encarregava de ajudar os migrantes mais novos. Em uma oportunidade, recebeu a tarefa de conseguir uma vaga na universidade pública para um jovem bahá’í iraniano que havia estudado medicina por 3 anos no Irã. Como saiu do país como refugiado, não teve a oportunidade de levar com ele os documentos escolares e universitários, e assim não possuía qualquer comprovação de que ele de fato havia cursado parte da graduação. Sem uma confirmação oficial de estudos e sem saber falar o português, a tarefa parecia impossível. Após muitas tentativas sem sucesso, entrou em contato com o pró-reitor. “Um homem sombrio, de cara amarrada, claramente incomodado com a nossa presença. Comecei a explicar que o rapaz era refugiado e que ao sair do país de origem não teve tempo de juntar os documentos. À medida que contava isso, percebi que a expressão facial do homem se modificou, e para minha surpresa seus olhos se encheram de lágrimas. Disse que sabia o que é ter que fugir do seu país, pois ele próprio havia sido refugiado no Chile durante a ditadura militar no Brasil. E assinou a autorização para que o jovem entrasse em uma das mais importantes faculdades de medicina do país”. Complementa, com orgulho: “Hoje, ele é um pediatra que salva vidas em grandes hospitais do Brasil”.
Universalismo
Bahá’u’lláh dizia: “Que desagradável seria aos olhos se todas as flores e plantas, folhas e frutos, ramos e árvores deste jardim fossem da mesma forma e cor! A diversidade de coloração, forma e formato enriquece e embeleza o jardim e engrandece o seu efeito”. As redes de apoio da comunidade bahá’í não diferenciam nacionalidades de origem. Um dos pilares dessa religião é o universalismo e a valorização da diversidade da humanidade, dando pouca importância às fronteiras criadas pelo ser humano.

Assim, os nascidos no Irã são grande minoria nos encontros da comunidade bahá’í no Brasil. A maioria é de brasileiros nascidos no país, mas há também estrangeiros de outros locais além do Irã. O português é o idioma falado nessas reuniões, e algumas rezas são entoadas também em árabe. Persa mesmo, os migrantes praticamente só falam em casa. A comunidade bahá’í no Brasil conta com cerca de 60 mil integrantes [4], enquanto a diáspora iraniana no país tem em torno de mil indivíduos [5] – mas nem todos são bahá’ís.
Iranianos ou brasileiros?
Estabelecidos no país há bastante tempo – os primeiros iranianos bahá’ís chegaram ainda nos anos 50 e a última grande leva de pessoas migrou na década de 80 – essa comunidade representa a multiculturalidade presente em um contexto global marcado, entre outros elementos, por constantes fluxos migratórios. Como lembra Gerd Baumann [6], a cultura não é fixa e determinada pelo local de nascimento, mas sim modificável e forjada nas interações sociais.

As filhas com trajes folclóricos persas em Ribeirão Preto. Acervo pessoal
Faezeh possui um cotidiano que reflete esses cruzamentos culturais. Uma das principais atrações de sua casa é a culinária persa, e em tempos pré-pandêmicos frequentemente eram organizados almoços com pratos típicos do Irã. Os amigos brasileiros adoram. Ela também gosta muito da culinária do Brasil, e comenta sobre uma de suas comidas favoritas: “arroz e feijão para mim é festa!”.

Jantar persa em Londrina, 1989. Acervo pessoal
Nilu, que fala português fluente e sem sotaque, menciona um certo desencantamento dos brasileiros quando descobrem sua origem: “quando chego nos locais e estão esperando uma iraniana, as pessoas esperam ver tipo um ET. E acabam ficando um pouco decepcionadas”. Não é raro ela escutar: “ah cara, você é muito normal”. Mas não deixa de consumir músicas e filmes persas. “Acho que, se eu parar com isso, vou me desvincular totalmente do Irã”.
Payvand também comenta sobre a vida multicultural dos bahá’ís iranianos: “eles vivem uma vida bahá’í primeiramente, depois a realidade do Brasil e por último uma nostalgia chamada Irã”.
Shayani celebra a integração dos bahá’ís ao Brasil. Lembra que o Parlamento brasileiro, em mais de uma oportunidade, homenageou Bahá’u’lláh e os serviços prestados pela comunidade bahá’í nos processos sociais e educacionais brasileiros. A coletividade fundou importantes instituições do país, como a Sociedade Brasileira de Médicos pela Paz, a Escola das Nações, em Brasília, e a Faculdade Tahirih, em Manaus. No Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, está o monumento que marca a ECO-92, o Relógio da Paz, uma doação dos bahá’ís ao Brasil. Na construção, está gravada uma frase de Bahá’u’lláh, nascido no Irã e habitante do mundo: “A Terra é um só país e os seres humanos, seus cidadãos”.

Realização de aulas morais para crianças carentes, Ribeirão Preto, 1979. Acervo pessoal
[1] SAYAD, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.
[2] ADGHIRNI, Samy. Os iranianos. São Paulo: Contexto, 2014.
[4] Para 57 mil brasileiros, o ””Natal”” é hoje – Brasil – Estadão (estadao.com.br)
[6] BAUMANN, Gerd. The multicultural riddle: rethinking national, ethnic, and religious identities. London: Routledge, 1999.
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