A diretora e roteirista Thais Fernandes falou com oestrangeiro.org sobre o processo de realização do documentário Portuñol. O “filme de viagem”, como ela chama, investiga a noção de identidade nacional em zonas fronteiriças a partir das línguas que misturam informalmente o português, o espanhol e o guarani. Vencedor de melhor longa gaúcho no Festival de Cinema de Gramado de 2020, o filme se encontra disponível para assistir nas plataformas NOW e Vivo Play (via Canal Brasil). As filmagens do documentário fizeram a diretora observar um pensamento antigo dela, “que a geografia influencia totalmente a nossa noção de cultura”. Enquanto gaúcha, Thais vive mais próxima de países vizinhos do que grande parte dos moradores de cidades brasileiras, que por vezes sustentam uma ideia genérica de brasilidade. Ainda que Porto Alegre, a cidade de onde ela fala, seja uma capital que não faz fronteira internacional, está localizada relativamente perto do Uruguai e da Argentina. Por essa razão, o espanhol esteve sempre próximo do cotidiano dela, que também se interessou pela musicalidade da América Latina.

Cartaz do filme. Leo Lage.

A concepção do documentário e a câmera que viaja

Apesar dessa proximidade, a ideia original do filme foi da produtora executiva Jéssica Luz ao conhecer o poeta Douglas Diegues —  que aparece brevemente no longa e é uma referência para a literatura e poesia do portunhol. Ele foi um dos fundadores do chamado “portuñol selvagem”, um movimento que se manifesta pela língua e mistura o português, o espanhol, o guarani e o inglês. Ainda focada na literatura, Jessica convidou a Thais para dirigir o filme, que trouxe para o projeto a perspectiva geográfica. A diretora ressalta que, por se tratar de algo invisível, fazer um filme sobre a língua portunhol já seria difícil desde o argumento inicial. Como um filme é basicamente imagem, uma das principais inquietações da diretora foi em relação à quais imagens ela iria usar. Por este e outros motivos, ela afirma ter sido “importante pensar o território associado à linguagem, para ter mais um material para o filme e aprofundar a discussão sobre identidade”.

Com a ideia do filme na cabeça e o plano da viagem traçado, a equipe viajou em direção aos diferentes signos linguísticos encontrados nas fronteiras do Brasil com o Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia. A diretora queria chegar até a fronteira com a Venezuela, mas apesar dos apoios e co-produções, não foi possível devido ao baixo orçamento destinado ao documentário. É interessante observar que desde antes da partida, e mesmo antes da conversa com o fotógrafo Pedro Clezar, a concepção imagética do filme era de construir uma “câmera viajante” — um olhar que se desloca. Dentro dessa proposta, as situações do filme realmente aconteceriam diante da câmera. Embora não tenha sido um objetivo falsear para o espectador uma ausência de equipe ou direção, Thais não pretendia se personificar na imagem, mas, ao contrário, trabalhou para construir uma câmera que viajasse e levasse junto os espectadores. No total, foram cerca de 30 dias de filmagem, e ela ressalta que “por ser um filme de viagem, a equipe não teve a pretensão de dizer que as coisas são de determinado jeito, mas que estavam assim quando eles passaram por lá”. Essa dinâmica incorporou o deslocamento na estética do filme, que acabou por se afastar do documentário de observação no qual o tempo de filmagem e a permanência do ambiente são expandidos.

Músicos praticando Candombe, na fronteira do Brasil com o Uruguai. Pedro Clézar.

Línguas de mestiçagem

É curioso perceber os desafios para acessar o portunhol falado no cotidiano de cada fronteira. A diretora conta que: “uma dificuldade que eu tive foi no processo do início, na primeira fronteira que a gente visitou que foi com o Uruguai. Onde há um portunhol quase acadêmico, no sentido que as pessoas estudam muito, pensam muito. Inclusive tem um movimento para reivindicar que a Unesco reconheça o portunhol como patrimônio imaterial”. Ela diz que ao mesmo tempo que eles entendem a importância do valor cultural da língua, se você não é dali, os moradores não vão falar com você em portunhol. Isso porque é uma língua um pouco automatizada, e inclusive alguns pesquisadores que ela encontrou durante as filmagens usam o termo “língua pantufa”, em alusão a uma língua para se sentir confortável falando. Por mais que eles entendessem que Thais estava fazendo um filme sobre a língua, como ela não era dali, eles optaram por se comunicar com ela a partir da língua que ela fala. Então, só era possível acessar o portunhol quando o entrevistado não está pensando sobre isso.

Fronteira Brasil / Uruguai. Pedro Clézar.

Outra experiência compartilhada pela equipe de filmagem ao longo do caminho foi associada à língua guaranhol. A diretora lembra a perspectiva histórica de que, como o Paraguai perdeu a guerra da Tríplice Aliança em 1870, a Argentina assumiu uma política de Estado em que não era permitido falar em guarani. Foi um jeito de apagar a cultura e reforçar a ideia de um vencedor. Isso, mesmo depois de deixar de ser lei, ficou materializado na percepção de alguns sujeitos. Entretanto, recentemente surgiram movimentos de descolonização e resgate da língua indígena. Há, inclusive, uma lei no Paraguai que torna a língua guarani oficial, e a política de ensino obrigatório nas escolas do guarani junto ao espanhol. Thais conta que existe “um movimento de Estado de recuperação, porque o guaranhol continua, está aí. É uma língua que não tem gramática, como o portunhol, não tem um jeito certo ou errado de escrever, mas é a língua das ruas no Paraguai, em qualquer lugar essa é a língua de quem é nativo mesmo. Mistura as duas línguas”

Fronteira Brasil / Paraguai. Pedro Clézar.

Deste modo, o filme também traz a discussão sobre as arbitrariedades do processo de fronteirização. Os entrevistados entre o Brasil e o Paraguai, por exemplo, manifestaram um certo orgulho dessa mistura. Entretanto, um pouco mais adiante, as fronteiras com a Bolívia mostraram uma resistência com a alteridade. Thais observou que a intolerância relatada não foi com a nacionalidade boliviana, mas sim com o fenótipo indígena. Para eles, ser indígena, sem fazer distinção de etnia, remete a pobreza, que logo é associada à prática de contrabando. Uma das entrevistadas bolivianas, responsável por fechar o filme, afirma que “a polícia sempre nos parava querendo achar alguma coisa e não achava nada. Só achava livro”, e prossegue dizendo “que nunca olham para ela e pensam que ela é professora”. Então, para as práticas de controle do Estado, se ela é boliviana deve ser vista como suspeita.

Entre trocas e mobilidades, a diretora afirma que Portuñol foi um documentário que proporcionou encontros. Encontros não só de idiomas, mas com rappers indígenas, estudantes colombianos, poetas do portuñol selvagem, professores universitários, músicos, comerciantes, artistas e acadêmicos. Encontros que trouxeram aprendizados até mesmo durante o processo de finalização do filme, já na ilha de edição. Nos primeiros cortes do filme apresentados no Rio de Janeiro, as pessoas não entendiam quando algo era falado em espanhol, e quando viam trechos em portunhol, perguntavam “mas e o portunhol?”, e a diretora afirmava “está aqui, isso é portunhol”. “Então foi uma decisão política legendar trechos literais, e inclusive os trechos que são falados em guarani, estão escritos em guarani sem tradução”. Quando as pessoas questionam “você colocou errado, conjugou o verbo errado”, ela diz “não está errado, é que isso é o portunhol do Uruguai, por exemplo”. O portunhol que vai desde misturar palavras e falar “a gente estudou no liceo” (escola em espanhol) — até o uso do “fizemo”, “fumo”, “dancemo”. Esta resistência à compreensão do portunhol dialoga com o que dizia a poeta chilena Gabriela Mistral: “nuestros idiomas han vivido de espaldas vueltas, sin odio alguno, pero también sin amor… muchas veces el verbo luso y el castellano me han parecido un árbol absurdo partido en dos frondosas ramas”. Logo, o uso da legenda literal no filme foi uma decisão política para reafirmar as possibilidades de falar a língua. Além de evidenciar a diversidade em que os dois idiomas — que carregam raízes comuns, mas se dividiram —  se fundem novamente. Em um artigo sobre o portunhol publicado na Folha de São Paulo, Mohammed Elhajji, idealizador do oestrangeiro.org, diz que “quando se trata de práticas culturais, como é o caso da língua, as fronteiras não se revelam apenas mais porosas do que se imagina, mas demonstram todo seu potencial de veicular subjetividades, imaginários e visões de mundo.”

Mural. Pedro Clézar.

A diretora ressalta que o filme foi fundamental para repensar a noção de identidade cultural e de territorialidade, e entender que o idioma falado é algo construído e reinventado socialmente. Inevitavelmente, a geografia influencia não só quem você é, mas também as oportunidades que você tem e o tipo de pensamento que você produz. Então, se nós partimos de algum lugar, é importante estarmos atentos para entender e questionar que lugar é esse