O processo migratório afeta diferentes gerações, especialmente as crianças que, em geral, não participam da etapa decisória da mudança e devem se adaptar aos desafios do novo espaço cultural, social e simbólico. Portanto, crianças desacompanhadas ou acompanhadas de seus responsáveis merecem atenção especial nos estudos migratórios, não devendo ser tratadas como apêndice da família, mas como sujeito que enfrenta desafios específicos durante a travessia e na integração à sociedade de acolhida.

É possível identificar uma perspectiva adultocêntrica nos estudos disponíveis sobre migrações transnacionais, deixando uma lacuna para a reflexão e a compreensão sobre o que se passa com as crianças durante o processo de migração. Ao mesmo tempo em que é louvável destacar que, para preencher essa lacuna, começam a surgir iniciativas com conteúdo de qualidade que demonstram uma mudança no olhar acadêmico para a questão. É o caso do Dossiê – Migrações internacionais e infâncias, publicado pela Revista Zero-a-Seis, do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância – NUPEIN/CED/UFSC, que traz 23 artigos sobre o tema. O Dossiê foi organizado pelo professor e pesquisador Flávio Santiago (Instituto Federal de Pernambuco e Faculdade de Educação da USP) e pela professora e pesquisadora Kátia Cristina Norões (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Campus Paranaíba).

O grupo Diaspotics contribuiu com o artigo “Infância e Estrangeiridade: duas alteridades, a mesma minoridade”, que assino com o prof. Mohammed ElHajji e que está disponível na íntegra neste link aqui. O artigo trata da relação dialética entre infância e estrangeiridade, considerando a infância como uma forma de migração para uma nova fase da vida e o migrante como um tipo de criança que precisa de amparo para se integrar ao novo espaço. De que maneira as duas condições de alteridade se aproximam em seus aspectos simbólicos e subjetivos? A partir da acepção de minoria / minoridade de Deleuze e Guattari, refletimos sobre o que faz da criança um não sujeito social e do estrangeiro um não cidadão.

De um lado está o estrangeiro que desconhece os códigos que devem ser assimilados para sua integração, sem direito à fala plena, que demanda proteção. Do outro, a criança que chega ao mundo na condição de ser frágil, precário e inferior. Pelo método abdutivo, levantamos questões sobre a situação da criança migrante nos aspectos psicológico, político e filosófico. Será que, assim como o bárbaro (leia-se: estrangeiro, migrante, refugiado), que sabe apenas balbuciar na sociedade que o acolhe, essa criança tem reforçada sua dimensão de sujeito menor, invisível e sem voz? Afinal, que tipo de estrangeiro a criança migrante é?

Na “Carta ao Leitor” do Dossiê, o prof. Helion Póvoa Neto, fundador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM), destaca que a migração é um processo que nunca se completa, imediatamente, na sociedade de acolhida. “(…) a representação do sujeito jovem ou infantil como imigrante, estrangeiro, outsider, costuma ultrapassar facilmente os primeiros anos de estabelecimento, e a classificação pode permanecer ao longo das gerações”. Nos casos mais difíceis, o sinal de diferença, de alteridade, funciona, segundo Póvoa Neto, como um estigma. A leitura do Dossiê está imperdível!