Margarita Vargas não é uma imigrante, mas suas raízes e história de vida estão intimamente vinculadas à migração. A engenheira de 51 anos nasceu no povoado de Jetarkte, em Puerto Éden, na Patagônia chilena. Quando tinha 10 anos, migrou para o sul para continuar seus estudos em Punta Arenas, capital e maior cidade da região de Magallanes.

Ela é uma integrante dos Kawésqar, originários da zona austral do Chile que formam um povo indígena de barcos, viagens e movimento: tradicionalmente nômades, com suas canoas percorriam extensas áreas do território chileno, da Ilha Grande de Chiloé até o Cabo de Hornos, no extremo sul do continente americano. Com o passar da história e uma modernização marcada pelo domínio da região por um Estado que não respeita a natureza e os modos de vida dos povos originários, houve o desaparecimento de muitos kawésqar, fruto de doenças trazidas pelo contato com o homem branco e do consumo do álcool e tabaco. Os sobreviventes foram paulatinamente sendo sedentarizados, principalmente em Puerto Éden, mas também em Punta Arenas e Puerto Natales.

Margarita e a avó, Margarita Molinari Eden. Christos Clairis

Após tanto tempo de violência, o Chile tem a oportunidade de mudar sua história. No país andino, a Assembleia Constitucional está reunida desde julho para apresentar, até o ano que vem, uma proposta de nova Carta – que poderá substituir a atual Constituição, feita em 1980 ainda na época da ditadura de Augusto Pinochet. A Assembleia tem características importantes: mulheres e homens são representados igualmente e, das 155 cadeiras, 17 foram reservadas para integrantes das 10 nações originárias do Chile, a maior quantidade já registrada no mundo para os povos indígenas em processos similares. Ela é ainda presidida por uma mulher indígena: a acadêmica Elisa Loncón, mapuche, prometeu que a nova Constituição “transformará o Chile em um país multicultural e intercultural”

A migração é uma das importantes questões que estão sendo tratadas na nova Carta Magna. De acordo com dados do Migration Data Portal, com 1.6 milhão de estrangeiros, o Chile é proporcionalmente um dos países da América Latina com maior número de imigrantes (8,6%), sendo somente superado pela Costa Rica (10,2%). Os vizinhos, em distintos graus, possuem números menores: Colômbia (3,7%), Argentina (5%), Uruguai (3,1%) e Brasil (0,5%) são exemplos. Chama a atenção no processo chileno o alto crescimento recente da chegada dos imigrantes, sobretudo a partir de 2015. Isso, ao mesmo tempo em que estimulou movimentos de solidariedade, também fortaleceu discursos discriminatórios e xenófobos que tiveram eco no Estado: em abril deste ano foi promulgada uma nova lei migratória que retirou direitos dos imigrantes.

Ainda que os chilenos no exterior, os estrangeiros no Chile e as associações que defendem os direitos dos migrantes não estejam diretamente representados na Assembleia Constituinte, eles têm nos integrantes dos povos originários importantes aliados na construção de um país mais plural: muitos, entre eles Loncón e Vargas, apoiam o Compromisso pela Migração da organização Chilemigra, que argumenta que o tema migratório deve ser incluído explicitamente na nova Constituição sob uma ótica de defesa da migração como um direito humano.

Margarita, que é engenheira de administração pública, possui especialização em gestão de competências e recursos humanos e atuou na Comissão Especial de Povos Indígenas, foi a candidata eleita para representar os cerca de 3500 Kawésqar no processo de construção da nova Constituição chilena. Em conversa ao oestrangeiro.org, comenta sobre essa importante tarefa e o desejo de que a Carta reconheça novos idiomas e incorpore novos olhares que serão fundamentais para a construção de um novo Chile plural e inclusivo, que possa servir de exemplo ao Brasil e ao mundo.

A mãe de Margarita, Nora López Molinari. Christos Clairis

Confira a entrevista com a constituinte Margarita Virginia Vargas López, realizada por Sidney Dupeyrat de Santana (Diaspotics/UFRJ).

O Estrangeiro: Em um processo único no mundo, o Chile tem uma Assembleia Constituinte composta por igual número de homens e mulheres e com presença de 17 representantes dos povos originários. Qual é o significado de ser uma mulher kawésqar participante desse processo tão importante para o futuro do país?

Margarita Vargas: Para os Kawésqar, é um espaço muito valorizado estar presente na Assembleia. Ainda que com somente uma representante tenhamos um espaço limitado na convenção, estamos em consonância com os demais 16 representantes das distintas comunidades indígenas e este é um espaço político muito importante para que o povo Kawésqar seja conhecido. Nunca antes tivemos representantes no governo, e ao longo da história, fomos invisibilizados pelo Estado e assim não tivemos a visibilidade merecida. É importante constatar nossa existência e poder trabalhar para garantir que as políticas de desenvolvimento indígenas Kawésqar estejam estabelecidas na nova Carta Fundamental.

Especificamente como mulher indígena, me sinto capacitada para trabalhar na nova Carta, uma vez que a capacidade de entendimento do meu povo e suas demandas me faz trabalhar mais firmemente para levar as habilidades sociais, o compromisso e admiração que tenho pelos Kawésqar como valores agregados aos trabalhos que desenvolvo na Assembleia Constituinte.

OE: Quais são os principais princípios que a nova Constituição deve ter?

MV: O reconhecimento dos indígenas como povos – e não somente comunidades – para que os idiomas originários, símbolos, cosmovisão e cultura possam ser reconhecidos. Também a promoção dos direitos linguísticos, de proteção ao patrimônio material e imaterial, direitos sociais e ao território.

OE: No primeiro discurso após ser eleita presidente da Assembleia, Elisa Loncón, mulher e mapuche, disse que “a história do país será mudada” e que o Chile será “um país multinacional e intercultural”. O que significa isso? O Chile será um país onde a diversidade é respeitada e valorizada?

MV: Temos que avançar em direção a um país digno, justo, onde as riquezas do país cheguem de forma equitativa às pessoas – as diferenças sociais são fruto da má distribuição das riquezas. É importante também a inclusão das diferentes nações para que o Chile seja um país plurinacional, onde estejam presentes os 10 povos reconhecidos na Lei Indígena (19.253). A partir daí surgirão políticas como o desenvolvimento linguístico que poderia estar nos modelos educativos do país. Também deveríamos modificar as formas de administração dos territórios, buscando usos sustentáveis sem a depredação dos recursos naturais e que valorizem sobretudo a biodiversidade do mar.

A constituinte Margarita Vargas. Acervo pessoal

OE: É sabido que os partidos tradicionais estão menos representados na Assembleia Constituinte, e que as figuras independentes são maioria. Como acredita que será a articulação entre os 155 integrantes para a defesa das pautas indígenas na criação da nova Constituição? Existe uma unidade ideológica entre os 17 representantes das distintas comunidades originárias? E com quais setores dentro da Assembleia eles terão mais diálogo?

MV: Temos que buscar alianças com outros constituintes para alcançar o quórum necessário – dois terços dos legisladores – para passar as questões que julgamos importantes. Esses acordos não se darão com a direita, que não tem a intenção e o compromisso de reconhecer as demais nações para incorporá-las ao processo político. 

OE: Na sua visão, quais são as principais demandas do povo Kawésqar e como a nova Carta poderá defendê-los? Será possível incorporar a visão de mundo dos Kawésqar e dos demais povos originários na nova Constituição? Que papel teria nisso o reconhecimento de outros idiomas para além do espanhol?

MV: A prioritária é ter o reconhecimento por parte do Estado de que os Kawésqar são uma nação e um povo. Queremos que o Chile seja declarado um país plurinacional, e que daí surjam leis que garantam as políticas de desenvolvimento indígena kawésqar: seja no ensino e aprendizagem da língua originária, na proteção do território e do mar e nas garantias sociais tão necessárias – saúde digna, educação intercultural, moradia e proteção dos parques nacionais – como o Parque Kawésqar. É fundamental termos uma administração conjunta entre o Estado e as comunidades indígenas Kawésqar.

OE: Os Kawésqar são um povo de viagens, barcos e movimento. Como vê o papel da nova Carta em relação à causa migratória transnacional no Chile? Será possível atender às demandas dos chilenos migrantes no exterior e dos estrangeiros migrantes no chile? Você apóia o “Compromisso pela migração” da organização Chilemigra?

MV: A migração é um direito humano fundamental. Todo ser humano deve ter reconhecido o direito a migrar porque daí vem a essência de sua autodeterminação. O povo Kawésqar é por excelência um povo canoeiro migrante: navegava por territórios muito extensos. Atualmente, acredita-se que percorriam os canais do Chile do sul da Ilha de Chiloé até o Cabo de Hornos, no fim da América. Assim, tenho uma sensibilidade especial com aqueles grupos humanos e familiares que vêm em migração, não somente por um tema de sobrevivência, mas também de expectativas e projeção familiar e cultural.

OE: Com uma nova Constituição inclusiva que cubra uma diversidade de culturas e pontos de vista, o Chile poderá ser um exemplo para o Brasil e o resto do mundo?

MV: O Chile tem uma grande oportunidade de mostrar ao mundo que é capaz de sentar à mesa com diferentes culturas, povos e histórias e chegar a um acordo para uma Constituição que seja um exemplo para o mundo de equidade, paridade e plurinacionalidade.