Olhar o rio feito de tempo e água,
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que passam os rostos como a água
Jorge Luis Borges

 

Os que tentam descrever a migração convivem com o permanente desafio de trazer para o campo do simbólico aquilo que está sempre aquém na razão das palavras. Quem foi ou é migrante raramente sente que o descrito aos outros explica todo o vivido. Aquela ‘essência’ é guardada somente consigo, nas lembranças pessoais, nas nostalgias e afetos experimentados pelos olhos e pela carne.

Este é o desafio árduo da literatura, esfera do conhecimento que toca o sensível mais do que a objetividade das coisas e por isso mesmo parece ser a área privilegiada de entendimento do deslocamento humano.

A literatura seguirá sempre buscando as metáforas reflexivas para o trajeto indecifrável da mobilidade que nunca é só no espaço – privilégio ou sofrimento de alguns – mas também se faz na ordem do tempo, condição de todos os vivos. A mala, o lugar de embarque, a terra e, com mais destaque neste mês, a água é símbolo reflexivo sobre o trajeto migrante que o Colóquio [online] Histórias de Água propõe durante agosto (confira a programação). Organizado pelo Programa de Pós-graduação de Estudos da Linguagem da UFF, sob coordenação de Stefania Chiarelli, a abertura do evento aconteceu nesta quinta-feira (6) com a presença do escritor Milton Hatoum.

O rio-mar de Hatoum

A trajetória migrante passa pela vida do escritor, descendente de libaneses. A água também é parte de sua literatura como um amazonense acostumado a não ver as duas margens do grandioso Rio Negro, um rio-mar ou um mar-interior que desagua na vida amazônica como as veias passeiam pelo corpo.

Hatoum mar
Episódio ‘Cinzas do Norte’ – Série Viagem de Bolso/Reprodução Youtube

Toda a conversa foi uma aula de literatura e é quase um abuso tentar sintetizá-la aqui, até porque, entre versos de Fernando Pessoa e histórias pessoais, o escritor respirava fundo sobre um Brasil perdido em si mesmo. “É muito grave o que está acontecendo no Brasil, com os pobres, com os negros, com os indígenas”. Hatoum estava presente de forma profunda.

Ao lembrar do interior sofrido, o escritor evocou a opositora da água, a aridez. Lembrou que em Graciliano Ramos e seu relato sertanejo encontravam-se gírias da sua terra, algo que o surpreendeu quando jovem e recordado por uma professora ao atentá-lo sobre a colonização amazônica, composta por migrantes dos sertões. Entre os períodos de grandes secas para o pastoril, o ciclo da borracha levara os homens da caatinga para a ‘pátria d’água’ dele.

Hatoum lembrou como a água perpassa sua obra. Os igarapés da cidade, seus banhos e depois as viagens que fez, como a Parintins, onde conheceu migrantes japoneses, foram inspiração para o livro Cinzas do Norte (2005), escrito 40 anos depois desse encontro. “A água é uma fonte primordial e mítica da literatura, não só do Ocidente, mas da África, dos povos indígenas com a origem do mundo e a morte, na literatura grega, a morte e o naufrágio, e mesmo a escravização de pessoas”. Ainda ressaltou que o conceito do mar, da água, da travessia é o grande tema da épica e surge com a Ilíada de Homero. “A viagem de volta de Ulisses para Ítaca depois de muitas guerras entre os homens, ondas dolorosas, referem-se ao mar”.

O Hatoum migrante deixou clara a importância da água em sua vida, especialmente quando se mudou para Brasília, onde o lago Paranoá era seu lugar de reencontro como “uma espécie de um rio da minha memória”. Completa: “De vez em quando pegava um potinho e ficava navegando”. Além da capital nacional, os Estados Unidos, a Europa e hoje, a cidade de São Paulo, compõem suas paradas migratórias, trajetória habitual para descendentes de migrantes, fortalecida, no caso dele, por uma constante procura pela água.

“Quem nasceu no deserto tem uma nostalgia do deserto. Quem nasceu perto do rio tem nostalgia do rio” (Milton Hatoum).

Na correnteza, tudo flui. A recusa da cristalização é cara para a literatura e também para o movimento da migração. Nessa dualidade, é possível lembrarmos dos portos, principal não-lugar (ou consistia um lugar?) das partidas e chegadas dos imigrantes ao longo dos últimos séculos. Vale lembrar que Manaus tem seu porto, proporcionado pela grandeza já destacada do Rio Negro. “O porto é um lugar uterino, onde abriga as nossas origens”, fala Hatoum, recordando também da tragédia que machucou Beirute, capital de seus ancestrais, e toda uma comunidade internacional em diáspora. A proximidade com o país pode ser lida em Relato de um Certo Oriente (1989), cujas memórias do personagem são reconstruídas na volta ao berço amazônico-libanês.

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Explosão no Porto de Beirute (04/08/20). Crédito: AFP.

 

Turistas não são migrantes

Em Beirute, o entrevistado disse ter demorado em visitas. Um lugar que já foi citado na Odisséia, de Homero, sob o domínio fenício, lembrou. Refletindo sobre o olhar, Hatoum fez defesa de uma desaceleração das visitações propostas pelo turismo de excursões e seus trajetos frenéticos. Para conhecer uma cidade seria preciso olhar, durar ao menos três meses em cada lugar. E, segundo ele, mesmo quando não se fala a língua, é possível entender o outro pelo olhar quando a escuta é intraduzível.

“A viagem, além de tornar o indivíduo mais silencioso, depura o olhar. Não falo do turista, que está sempre de passagem. Eu fui um viajante precoce, saí com 15 anos da minha cidade e isso foi importante para construir meus livros” (Milton Hatoum).

Lembro aqui, aos interessados, que a relação turista x imigrante é debatida por autores contemporâneos, entre eles Zigmunt Bauman, em O mal-estar da pós-modernidade (1997), e Marc Augé, em Por uma antropologia da mobilidade (2010).

Para quem é do mundo da pesquisa, Hatoum se aproxima ao dizer que o olhar do narrador atua como um antropólogo na tentativa da compreensão do Outro. Citando o tralhoto, peixe que olha para dentro e para fora da água, a professora Chiarelli lembrou desse olhar dividido. É mais uma metáfora de personagens migrantes ou dos fotógrafos, que olham a realidade vivida sob lentes. O estrangeiro vê mais do que o nativo porque pode notar certas particularidades apenas observáveis pelos que não partilham as mesmas grades culturais, naturalizadas. (Esse texto de Alfred Schütz explora tal característica).

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Para quantos lugares olha o tralhoto? Crédito: Aquarismo Paulista/Fabrício Sousa

A abertura desse Colóquio, em si, valeu toda a programação, mas o evento ainda segue pelas semanas de agosto. Migração e água caminham juntas, e melhor, talvez elas mesmas conduzam o nosso caminho. Encerro, não com uma reflexão do escritor ou da entrevistadora, mas da contribuição trazida de uma participante (virtual!) que lembrou que ‘mãe’ e ‘mar’ são palavras homófonas na língua francesa. São o berço do afeto, a origem da nossa migração pelo mundo, o feminino que guia a proa do barco da vida.

 

Otávio Ávila
Pesquisador de doutorado do Diaspotics/UFRJ e editor do oestrangeiro.org