Em outubro de 2003, uma pequena embarcação carregada de migrantes somalis naufragou no mar Mediterrâneo, na costa da ilha de Lampedusa. Morreram treze pessoas, relata Igiaba Scego no romance autobiográfico Minha casa é onde estou (2018). A escritora italiana, nascida de pais somalis, lembra não só a tragédia, mas também o fato de que, à época, fez-se uma cerimônia coletiva para prantear as vítimas, pois Walter Veltroni, prefeito de Roma, se mostrou sensível ao apelo da comunidade para dar justas exéquias aos mortos. “Senti um acolhimento caloroso que até hoje, nesses nossos anos tristes de crises e rejeições, não se sente mais. As pessoas ainda sabiam se indignar”, registra. A imagem da multidão velando os treze caixões de madeira simples no coração da Roma renascentista parece ter ficado para trás.
Passados mais de quinze anos, os afogamentos no Mediterrâneo continuam, mas as despedidas não. Em época de pandemia, a mobilização da sociedade em torno de rituais fúnebres está proibida. A impossibilidade da partilha coletiva da dor atinge a todos nós, mas aqueles que migram em precárias condições vivem essa situação há muito tempo. Muros, cercas e arame farpado já vinham se multiplicando, enquanto milhares de pessoas em busca de uma vida nova morriam no mar ou sufocadas no compartimento de carga de caminhões. O mar e a falta de ar são conhecidos inimigos de quem precisa se deslocar. “Os imigrantes sempre souberam a dor do distanciamento social”, afirmou recentemente o escritor chileno Ariel Dorfman.

No que diz respeito à chegada, a terra firme é uma miragem que muitas vezes não será alcançada diante dos inúmeros obstáculos físicos e simbólicos dessa travessia, e o mar acaba se transformando em um gigantesco cemitério marinho. A experiência da cidade pode ser igualmente infernal, como se lê nos versos de “Maldição”¹, de Hassan Yacine: “Eu sou um migrante que sobreviveu à fermentação da carne no Mediterrâneo/ para apodrecer nas ruas de Paris”. A opressão do colonialismo define a visão do mar para o poeta sudanês, cuja experiência está marcada pelo enfrentamento do anonimato nas ruas e o descaso das autoridades. Na França desde 2016, Yacine é ativista e perseguido em seu país de origem e segue à espera da regulamentação do pedido de asilo: “Até esses cachorros me olham estranhamente/ Seus cachorros bem vestidos que têm documentos de identidade e um nome (…)/ Não há palavra pior que refugiado para jogar na cara de um homem”.
Ao se autorrepresentar, vozes como a de Yacine rompem a invisibilidade a que os migrantes são com frequência relegados, passando enfim a portadores de uma palavra política que mobiliza e reivindica espaço para além do mero consumo de sua figura – todos já assistimos, com maior ou menor distanciamento, imagens terríveis de afogamentos, cenas de campos de refugiados e de protestos. Fato é que inúmeras vezes eles têm sua atuação política minimizada: presentes na imprensa quando o assunto é uma tragédia, são destacados na condição de vítimas ou, por outro lado, de delinquentes.
A necessária resistência vem pelas mãos de artistas como Igiaba Scego e de poetas como Yacine, que ecoam de distintas maneiras a importância das palavras de Hannah Arendt em “Nós, os refugiados”. Nesse texto de 1943 a filósofa judia-alemã pensou de forma inaugural o refugiado como figura de exceção, alertando para sua aparição na condição de fenômeno de massa. No tempo presente, a palavra do migrante se levanta para resistir, transformando essas vidas em narrativas ao preservá-las do esquecimento e da banalização da crônica ligeira dos fatos. Eles não são números, estimativas, fichas de identificação ou estatísticas, mas vozes cuja potência deve ser ouvida, como afirma a personagem Carmem, no romance A ocupação, de Julián Fuks:
“Eles nos querem vagabundos, nos querem bandidos, maltrapilhos, indigentes. Querem que nos falte tudo, país, terra, casa para viver, chão para morrer. Esse é o erro deles: não sabem que somos todos refugiados, não sabem com que força os refugiados se fincam na pedra, como chega fundo a raiz do desterro. Então, podem ir se preparando, porque vai ter flor nascendo no concreto, e essa flor será vermelha”. (FUKS, 2019, p. 25)
A flor vermelha surge como símbolo de luta pela mobilização e pelo direito à palavra, arma potente na expressão de subjetividades muitas vezes associadas a corpos sem voz e sem passado. Existiu um antes dessa travessia e deve necessariamente haver um depois, uma história que se reinventa em novas contingências.
Neste momento de pandemia e graves consequências econômicas, a situação de tais sujeitos passa por nova configuração. Quando a economia do Estado-nação grita, a sociedade passa subitamente a reavaliar a relação com esse Outro. Mas quem é ele? Por um lado, o invisibilizado pela sociedade, que supostamente representa perigo, vem roubar o emprego, cometer crimes e semear a desordem. Por outro, é quem colhe os morangos que irão enfeitar a mesa do café da manhã, repõe o papel higiênico na gôndola do supermercado, trabalha na linha de frente dos hospitais no enfrentamento da pandemia, atua como cuidador e acompanhante de idosos.

Na Alemanha, no Estado da Saxônia, região rica em que o discurso xenófobo prolifera com força a partir de partidos populistas de direita como o AfD (Alternativa para a Alemanha), o governo se viu obrigado a contratar imigrantes e refugiados, por não haver enfermeiros ou médicos suficientes para trabalhar nos hospitais construídos em tempo recorde para atender as vítimas da Covid-19. Grande parte da população que votou contra os direitos dos migrantes precisou recorrer a eles neste momento. A dependência de profissionais estrangeiros para preenchimento de vagas na área da saúde não é exclusividade alemã, e muitos países da Europa vivenciam essa realidade de forma dramática hoje. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, quando contaminado com o coronavírus, agradeceu em um vídeo aos profissionais que se dedicaram a curá-lo: “Eles são Jenny, da Nova Zelândia, e Luís, de Portugal”, afirmou. Defensor convicto da saída do Reino Unido do bloco da União Européia, Johnson mostrou-se grato àqueles que tiveram a já difícil vida que levam ainda mais infernizada pelo Brexit – a partir de fevereiro de 2021, o estrangeiro deverá ter emprego e renda de cerca de R$ 166 mil reais por ano para obter um visto de moradia.
De certa forma, agora essas figuras passam a ocupar outro patamar. O discurso da extrema direita que insiste na retórica nacionalista e no fechamento de fronteiras subitamente se viu obrigado, por pura necessidade, a repensar a postura relativa aos migrantes, transformados do dia para a noite em indivíduos menos descartáveis. De persona non grata a necessária, de indocumentado a regular, de extracomunitário a cidadão europeu em um piscar de olhos. Curiosa metamorfose.

Diante da imensa desigualdade social, fato é que as pessoas que vivem essa situação de precariedade se encontram mais expostas ao vírus, e por toda parte se constata a dependência da sua força de trabalho. O panorama é incerto e muitas hipóteses surgem. Mas vale indagar: quando tudo isso passar, ou pelo menos arrefecer, quando tivermos chorado milhares de mortos, quando tivermos ainda e mais uma vez nos indignado diante da criminosa atitude de nossos governantes, voltarão os migrantes para o lugar de onde não deveriam ter saído?
Difícil não pensar na antiga canção de Chico Buarque, em que a prostituta Geni, após insistência daqueles que a desprezavam, se dá ao invasor como modo de evitar uma enorme tragédia. Os apelos do bispo, do prefeito e do banqueiro são ouvidos, e Geni salva sua cidade. Passada a exigida noite de amor com o comandante do zepelim prateado, recomeçam os impropérios e os uivos da população – ela já não tem mais serventia alguma. Quando se tornam essenciais aqueles que durante muito tempo foram invisibilizados pela sociedade, algo de muito perturbador entra em jogo. Correm o risco de serem devolvidos a esse lugar marginal de forma tão rápida quanto saíram. Ao mesmo tempo, a escuta dessas vozes é uma questão ética que nosso tempo impõe: bispos, prefeitos e banqueiros (ou seja qual for o nome pelo qual atende o poder) e suas medidas excepcionais em tempos de exceção devem se confrontar necessariamente com a urgência de se posicionar sobre a situação dessas vidas em trânsito. Todas elas precisam chegar do outro lado da margem e respirar.
[1] “Malédiction” foi publicado na edição de setembro de 2018 do Nouveau Magazine Littéraire, em tradução do árabe de Saida Benayad. O trecho citado, em minha tradução do francês.
Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (Annablume, 2007) e co-organizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea, entre elas O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea (Rocco, 2013), Falando com estranhos – o estrangeiro e a literatura brasileira (7letras, 2016) e Rawet em diálogo (Pontes, 2019).