A edição de junho da revista Communication, Culture and Critique, da International Communication Association, trouxe o dossiê “Práticas de migração digital e o cotidiano” (Digital Migration Practices and the Everyday) com os editores convidados Sandra Ponzanesi e Koen Leurs, referências dos digital migration studies no continente europeu.
A apresentação dos autores descreve como os artigos que compõem a edição se agrupam na relação que Michel de Certeau avalia como estratégicas e táticas, sendo o primeiro as formas de domínio oculto de instituições e estruturas de poder e a segunda, ao contrário, as práticas de indivíduos comuns que perturbam e desestabilizam a ordem social.
Nas dinâmicas atuais das crises de representação e descredibilização de instituições basilares das democracias, é importante que a ideia de Certeau seja contextualizada para a realidade do fenômeno migratório atravessado pelas tecnologias digitais. Como explicam Ponzanesi e Leurs, “a vigilância, a datificação e a extração mostram a gestão da migração cada vez mais datificada, […] como formas de autoritarismo transnacional e repressão em rede. Por outro lado, indivíduos, familiares e pares navegam no digital em seu papel de usuários, participantes e produtores de conhecimento e representações midiáticas, mostrando como suas táticas diárias ajudam a combater estereótipos negativos, além de forjar estratégias de sobrevivência e contestação das estruturas que os colocam sob estado de atenção“.

Essas diferenças perpassam a construção dos estudos migratórios no Brasil atravessados pela presença tecnológica. Do componente fundamentalmente comunitário da webdiáspora e a formação das redes migratórias, a crítica à datificação – como o estágio mais avançado da midiatização, baseado na coleta e extração de dados digitais que remonta a perspectivas colonialistas (das big techs sobre a sociedade civil) – adentra ao campo desses estudos ao amplificar o vigilantismo sobre os corpos migrantes que outrora podia aparecer restrito aos espaços de fronteiras terrestres.
Neste sentido, as dinâmicas simbólicas interfronteiriças implicadas pelo digital não são exclusivas a este. A subjetividade de fronteira se exprime no sujeito – entre um aqui e um lá constitutivo – mas também sobre o sujeito, na sua sujeição como um corpo distintivo. A forma como os autores retratam tal dinâmica, além do digital, é desenhada pela diferença estabelecida entre a recente migração ucraniana e os deslocamentos transnacionais que se somam ao continente. De um lado, agilidade nos sistemas de transportes e fronteiras territoriais e simbólicas abertas; do outro, vigilância tecnológica, que se assenta no aparato social e político das nações. Onde se localizam no binarismo “solidariedade x problema demográfico” os refugiados europeus e os africanos não é difícil saber.
É recomendável a leitura do dossiê porque ele atualiza esta dinâmica migratória ao regime de informação, controle e vigilância ao qual as sociedades estão submetidas, e amplia a aderência dos estudos migratórios às novas formas de crítica social e dos novos (tecno)colonialismos que nos atravessam. A leitura que se segue dá um diagnóstico da globalização das migrações no foco europeu e o dossiê, em boa medida, indica à reflexão de como a midiatização tem servido cada vez mais a estruturas já calcadas no tecido social, ao invés de questioná-las. Confira o introdutório de Sandra Ponzanesi e Koen Leurs:
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“O foco nas práticas de migração digital no cotidiano visa ao afastamento da perspectiva dominante sobre a migração como crise, invasão e/ou problema (Gillespie et al., 2018; Risam, 2018, 2019; Ponzanesi & Leurs, 2014). Comumente, a migração é vista pelo olhar da gestão, da governamentalidade e, sobretudo, de contenção, que coloca em primeiro plano as políticas de fronteira e vigilância (De Genova & Peutz, 2010; Dijstelbloem, 2021; Scheel, 2019; Trimikliniotis et al., 2015). Embora estejamos cientes de que essas regulamentações e aplicação verticalistas da lei são reais e não podem ser facilmente descartadas, queremos enfatizar a “temporalidade profunda” (Amoore, 2021; Zielinski, 2006) da migração, como parte dos fluxos contínuos ao longo da história e também seguindo uma variedade de lógicas (migração forçada, econômica e política, mas também o papel paradoxal da mediação), suas direções (não apenas do Sul para o Norte global) e motivações. A recente “crise migratória” da última década foi ampliada pela mídia e instituições políticas se utilizando de metáforas alarmantes. Desastres climáticos, como as inundações e as enchentes, para citar apenas alguns, têm sido usados retoricamente para transmitir a imprevisibilidade e a escala catastrófica da migração. É algo que parece nos sobrecarregar de uma forma que não poderia ser esperada ou evitada. No entanto, como sabemos e como mostra a era do Antropoceno, muitos dos desastres naturais são causados pelo homem, por vezes causados pelo abuso dos recursos planetários que, embora não sejam compartilhados igualmente, sua exploração desigual afeta principalmente os pobres.
A crise ambiental pode parecer uma forma de “violência lenta”, como Nixon (2011) definiu a gradual erosão do nosso planeta (ligada ao desmatamento, à desertificação, à intoxicação, às consequências nucleares, à acidificação dos oceanos, etc.), porque não retém a mesma atenção da mídia como acontecimento espetacular ou instantâneo, embora cresça de forma cada vez mais incrementada. Desastres assim, anônimos e sem protagonistas humanos, parecem difíceis de chamar a atenção das políticas públicas, que são moldadas principalmente em torno de necessidades imediatas percebidas.
Da mesma forma, as tais crises migratórias não parecem ter rosto ou identidades específicas e são ampliadas em números ou metáforas fluidas como destacado acima, não devem ser entendidas fora da ordem mundial neocolonial, que reativa enganosamente a dinâmica colonial de exploração e extração (Stoler, 2013). Compreendida nesse quadro, a migração não é apenas um desastre natural ou um fenômeno insistente que vem perturbar a lei e a ordem do Norte Global, mas deve ser entendida como parte integrante dos emaranhados da modernidade (Gilroy, 1993; Quijano, 2007; Bhambra, 2016), que, por sua vez, prejudicam seriamente a segurança, a subsistência e a sustentabilidade das novas gerações de forma desigual. Como gerenciar a responsabilidade e a responsabilização pelo que poderia ser visto como uma violação dos direitos humanos, que restringe a sobrevivência de alguns sujeitos imobilizados versus a prosperidade de outros, continua sendo questão essencial para entender a urgência da justiça restaurativa e da redistribuição planetária.

Uma nova crise migratória da Ucrânia está ocorrendo enquanto escrevemos esta introdução em março de 2022. É um testemunho das diferentes escalas e cores na percepção, gestão e resposta ao conceito de “migração”. Enquanto as recentes ondas de migração do Afeganistão, Iraque e Síria, desviadas através das fronteiras orientais da Europa, foram recebidas com desafio e medidas agressivas de bloqueio, o êxodo repentino de cidadãos ucranianos fugindo do ataque militar da Rússia, até agora levou a manifestações de solidariedade, apoio e um clamor internacional. Em 20 de março de 2022, mais de 5 milhões de ucranianos foram autorizados a cruzar e a seguir adiante pelas fronteiras da Polônia, Eslováquia, Hungria, Romênia e Moldávia (ACNUR, 2022), pois não precisam solicitar asilo e podem permanecer no União Europeia (UE) por um ano. A narrativa é ver essas pessoas que fugiram como “família”, de certa forma parte da Europa, muitas das quais já moravam na Polônia ou se deslocavam entre e dentro das fronteiras da UE. Isso não se deve apenas às negociações para tornar a Ucrânia parte do bloco, o que está se tornando cada dia mais improvável, mas também à contínua tecelagem e ressurgimento da história da Europa: a quem pertence e a quem não pertence, onde ela começa e onde termina (Hall, 2003), e quais são os valores intrínsecos da europeidade (branquitude, supostamente laico e territorialmente próximo). Enquanto os migrantes brancos ucranianos podem cruzar a fronteira, pessoas não brancas que fogem da Ucrânia, como estudantes internacionais da África, Caribe e Sul da Ásia, enfrentam discriminação na fronteira e dificuldades de acesso a recursos vitais (Tondo & Akinwotu, 2022). Isto é o que se aceita “em nome da Europa” (Ponzanesi & Blaagaard, 2011), a capacidade de contar histórias que se encaixam no quadro em constante mudança do que torna a Europa “Unida na Diversidade”, como diz o lema da UE. Seguindo essa linha de pensamento, Passerini (2003) defende que devemos perceber a Europa menos como um programa político e mais como um projeto emocional. O continente europeu que Luisa Passerini vislumbra é um território imaginado, e não uma identidade autoproclamada e arrogante, que é um locus de dúvidas, ausências e deficiências”.
O texto completo (em inglês) e as referências bibliográficas podem ser acessados aqui.
