Se a integração social do ‘preto’ nativo já é difícil, imagine a vida do ‘preto’ imigrante!

Através do título de seu artigo, Ser preto africano no ‘paraíso terrestre’ brasileiro – Um sociólogo senegalês no Brasil, Alain Pascal Kaly anuncia, logo de cara e sem rodeios, sua crítica ao mito da democracia racial, termo que articula diferentes significados e a partir do qual, no contexto brasileiro, raça supostamente não existiria e cor seria somente um acidente, sendo, por isso, naturalizada e não considerada com relevância, fazendo prevalecer o Brasil enquanto nação.

Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, livro que marca a sociologia brasileira, não utiliza a expressão, mas, no entanto, fornece as bases para esse pensamento, que trata a questão racial sem dar a devida e necessária ênfase ao conflito e à tensão.

Hoje parece inacreditável que durante certo tempo, sociólogos – tanto brasileiros como não-brasileiros – que se debruçaram sobre a questão racial e seu contorno no Brasil tenham negado a existência da discriminação racial.

O movimento interpretativo acadêmico da realidade racial que se constitui no pós-1930 se inicia com o trabalho de Donald Pierson, na Bahia. Segundo ele, a sociedade brasileira seria uma sociedade multirracial de classes, na qual as raças seriam abertas e, assim, não seriam um princípio classificatório nativo, e sim a cor, que não fecha as oportunidades para ninguém.

A sociedade brasileira seria, portanto, segundo Pierson, uma sociedade em que as oportunidades sociais se mostrariam para todos, de forma indistinta, e, por isso, seria uma sociedade de classes. É possível notar que a primeira forma das ciências sociais pensarem a realidade racial não se descola da ideologia nacional, fazendo, mais uma vez, com que o Brasil prevalecesse enquanto nação.

Kaly, por sua vez, não hesita: afirma, logo no primeiro parágrafo de seu texto, que “o racismo e a discriminação baseada na tonalidade da cor da pele estão sempre na vida cotidiana” (p.105). O que o autor anuncia não é novidade, especialmente para quem é negro, e ainda mais para quem é negro e imigrante, que antes da chegada muitas vezes idealiza a realidade brasileira e, acostumados com outras formas de relação, defrontam-se, a partir da imersão, com o racismo brasileiro, sem que tenha havido tempo de naturalizá-lo.

‘Eu’ preto

A percepção dos imigrantes encontra-se, dessa forma, mais aguçada. Uma vez, ao conversar com um estudante guineense, escutei que foi aqui, no Brasil, que ele aprendeu o significado da palavra preconceito e, mais que isso, vivenciou literalmente na pele a discriminação racial. Se a integração social de um ‘preto’ nativo, “o mais prejudicado dentro da hierarquia estabelecida a partir da tonalidade da cor da pele” (p.119), já é dificultada, o que dizer sobre a integração de um ‘preto’ [imigrante] africano?

A própria existência negra e estrangeira, e o que advêm dela, como a reação do outro à sua presença, fez com que a temática racial se impusesse para o autor, num movimento que aguça sua própria percepção e apreensão do que Kaly chamou de “‘eu’ de um preto” numa sociedade que cultiva para si, e especialmente para fora, o mito da democracia racial. O autor procura fugir das escapatórias que por vezes se impõem no caminho e declara: “pretendo mergulhar no assunto, encará-lo de frente, ou seja, trabalhar a partir da vida quotidiana de um preto estrangeiro no Brasil” (p.110).

A ponte que conecta a África Negra e o Brasil não é historicamente nova: migrações de africanos para o país começaram no século XVI, fazendo com que as histórias – do país de origem e acolhida – se complementem em determinados pontos. Não é possível compreender a configuração do que somos hoje, em termos culturais e econômicos, por exemplo, sem considerar as imbricações e consequências da existência de tal ponte, assim como as histórias e narrativas produzidas a partir dela que, por vezes, evidenciam que a delimitação do “eu” e do “outro” não é novidade.

A globalização e o desenvolvimento dos meios de comunicação têm feito com que a questão tenha emergido com mais intensidade e decorrente visibilidade, principalmente no que diz respeito à narrativa daqueles que migram à procura de melhores condições – sejam refugiados ou migrantes voluntários – e que, agora, conseguem relatar suas experiências sem a interferência dos dominadores.

Nem sempre o tráfego esteve liberado para o lado de cá da ponte. Da segunda metade do século XIX até o final da quarta década do século XX, o Brasil foi um dos países do continente americano que mais receberam estrangeiros europeus graças à política de embranquecimento.

Durante esse período as fronteiras foram fechadas aos imigrantes africanos e asiáticos ‘amarelos’, assim como aos negros norte-americanos, por pertencerem às ‘raças inferiores’. A vinda de africanos foi dificultada até os anos 1950. Na década seguinte teve início a imigração de jovens africanos oriundos de países recém-independentes, que, a partir da assinatura de convênios culturais e técnicos, puderam vir ao Brasil para estudar em várias localidades.

Racismo na Universidade

As universidades brasileiras têm sido cada vez mais procuradas por africanos e, segundo Kaly, a maioria desses estudantes escolhe o Brasil por acreditarem que aqui a democracia racial impera, apesar da tese ter sido derrubada nas ciências sociais internamente.

Ao se deparar com a realidade da discriminação à brasileira – que se choca com o imaginário construído anteriormente – estudantes africanos têm levado para dentro das universidades seu olhar, configurado pela vivência de humilhações e discriminação, qualificando o debate sobre raça no contexto brasileiro.

Kaly, que se utiliza e reivindica o uso da vivência como um mecanismo que engrandece a produção acadêmica e científica, é um exemplo disso e, não por acaso, sua reflexão e experiências o fizeram crer que o olhar e ouvidos dos imigrantes fazem com que seu relato seja o mais próximo possível do que é verdadeiro. Uma decorrência do maior “compromisso com o relato de um acontecimento do que com o local que o acolheu” (p.108).

Os que aqui chegam são chamados genericamente de africanos. Esses estudantes deixaram suas famílias, em seus bairros, cidades e regiões – como Mancagne, Peul, Serere, Diola, Ibo, Banto, Soninké, Bambara, Dioula, Ewe, Touare, Dinka – embarcaram no avião como senegalenses, guineenses, gaboneses, marfinenses, argelinos, egípcios, cabo-verdianos, angolanos, e chegaram no Brasil sob o rótulo de africanos.

“No país que os acolheu, as diversidades culturais, linguísticas e étnicas são eliminadas e eles se vêem reduzidos à categoria de monogrupo. Enquanto os estrangeiros europeus, asiáticos e norte-americanos são tratados a partir de suas nacionalidades próprias, os da África, não. Somos ‘africanos’, com tudo o que isso carrega de negativo.” (p.113), afirma o autor.

Apesar das diferenças anunciadas, há algo que os une: a cor da pele. São quase todos pretos, o que os aglutina aos olhos nativos – fazendo com que sejam percebidos e tratados como provenientes de um mesmo país. A cor coloca-os nas camadas mais inferiorizadas, juntamente com os pretos nativos, a quem a cidadania plena é, em grande medida, negada. Além de serem todos colocados sob um mesmo rótulo, o de africanos, a cor de sua pele faz também com que outros estigmas lhes sejam atribuídos, sendo tratados, muitas vezes, como pessoas pobres, analfabetas, perigosas e ignorantes.

Amálgama e ódio

O amálgama agravou-se mais ainda com a recente chegada dos haitianos e o triste episódio de ebola. As manifestações de ódio de importantes segmentos da sociedade brasileira, com a escandalosa cumplicidade sensacionalista – preconceituosa – xenófoba da grande mídia, revelou a verdadeira face histórica assuatadora da nação.

Não é difícil perceber que a antiga ponte que se constituiu entre continentes, e a decorrente presença de africanos, pouco fez avançar na forma como essa população é vista, tratada comumente como pertencente a uma raça inferior – como Kaly demonstra a partir de numerosos exemplos ao longo de seu texto – até mesmo no contexto universitário.

O fato de vivermos em um país em que todos são produto da mistura não diminui a importância do estudo da raça como um fato social, que se constrói a partir das relações. Sob esse ponto de vista, são produzidos estereótipos, preconceitos e a discriminação racial.

Não existe apenas uma possibilidade de se abordar o assunto do ponto de vista analítico e nativo, desde a incorporação simbólica dos negros, com Freyre, passando pela ênfase na permanente exclusão socioeconômica, com Florestan Fernandes, e até mesmo pela análise dos movimentos negros. De qualquer maneira, independentemente da metodologia utilizada, não é possível negar que somos fruto da miscigenação e que, apesar disso, somos atravessados, enquanto nação, pela discriminação racial.

É preciso, sobretudo, reconhecer que o problema do racismo e seus efeitos perversos, que não são sanados por uma boa condição econômica, não dizem respeito somente aos negros, brasileiros ou não. A questão faz suscitar reflexões complexas sobre a configuração social do Brasil e suas imperfeições, cabendo a nós enfrentá-las fugindo das escapatórias que, como Kaly afirma, se colocarão no caminho.

Ana Carolina Calenzo

Leia o artigo de Alain Pascal Kaly na íntegra