Haitianos enfrentam as enchentes do Norte e a demora da burocracia do Sul.

A obtenção da carteira de trabalho é o primeiro passo para os imigrantes haitianos poderem buscar emprego e deixar a ‘Missão Paz’ em São Paulo. Desde janeiro, o fluxo diário de haitianos na entidade ligada à Pastoral do Migrante mais do que dobrou.

Ali, no Glicério, região central da capital paulista, até o final de janeiro dormiam cerca de 50 haitianos por noite. Hoje, esse número oscila entre 110 e 120, chegando algumas vezes quase a 150. São ao menos 30 novos “hóspedes” diários.

Passam os dias no pátio da igreja Nossa Senhora da Paz, onde funciona a entidade, à espera das terças e quintas-feiras, dias reservados para o encontro com empresários em busca de mão de obra.

Tudo o que os diretores da entidade esperam agora é que a emissão da carteira de trabalho seja flexibilizada para que “desafogar” os salões do local.

Pois não só o número maior de “hóspedes” preocupa, mas também a iminente queda no número de empresas dispostas a empregá-los. Ainda que as contratações não tenham apresentado diminuição sensível, o número de empregadores que procuram o local caiu em fevereiro –de 60 para 33.

J.P., 23, que pede para não ser identificado, é um dos que esperam por um trabalho. No Brasil há cerca de um mês, diz ter ouvido que pode ganhar até R$ 2.000 como pedreiro.

No último mês, 166 imigrantes conseguiram a carteira assinada, número dentro da média, mas bem abaixo do recorde de maio de 2014 quando chegou a 498.

O perfil dos empregos também mudou. “Antes a enorme maioria ia para a construção civil”, diz o padre Paolo. “Agora, a maior parte vai para o setor de serviços.”

Ali Nassif, 58, dono de uma empresa de tapeçaria no Ipiranga, está em busca de “pelo menos dois”. “Você não acha mão de obra brasileira.”

“Viemos buscar oito”, diz Mariza Fernandes, consultora de uma empresa de jeans em Colatina (ES) que já emprega quatro haitianos. Ela afirma pagar R$ 1.000, com moradia e alimentação.

Fluxo

Enquanto isso, ao menos um ônibus com os imigrantes chega diariamente vindo de Rio Branco (AC). Muitos desembarcam em São Paulo. Outros tantos seguem até Porto Alegre (RS). O objetivo é um só: emprego.

O aumento repentino no fluxo, estável desde o final do ano passado, se deve a alguns fatores. Um deles é a cheia no rio Acre, a maior de sua história, que além de obrigar 10,6 mil pessoas a buscarem alojamento nos 31 abrigos montados pelo Estado, fez com que os haitianos encurtassem a passagem por lá.

Além disso, o fluxo dessa população em direção ao Acre também aumentou, diz o ex-secretário de Desenvolvimento Social do Acre, Antônio Torres –atualmente na pasta de Direitos Humanos.

“Hoje estamos com 900 haitianos no abrigo”, diz Torres, que explica que o local na capital acriana comporta cerca de 400. “O fluxo nunca caiu por aqui, e agora aumentou ainda mais.”

Em 2014, o aumento inesperado de imigrantes enviados à São Paulo gerou troca de farpas entre o governo do Acre e o governo paulista.

Neste ano, a Secretaria da Justiça do Estado de SP pretende retomar o contato com o governo acriano para que a migração seja racionalizada.

“Estou horrorizado, não é possível que sejam despejados dessa forma por aqui, são seres humanos”, diz o secretário, Aloísio de Toledo César.

Nesse período difícil para o estado do Acre, com cidades tomadas por enchentes, centenas de haitianos estão partindo para São Paulo. Há fila para tirar carteira de trabalho. É a primeira dificuldade que os haitianos encontram para conseguir um emprego no Brasil. Normalmente, a emissão desse documento leva um mês e meio. O Ministério do Trabalho devia emitir 240 carteiras essa semana. É pouco, e ainda há outro problema: a língua.

Xenofobia

Michel Evero é técnico em informática, fala cinco idiomas, mas não o português. Ele sabe que vai ser difícil ajudar a família no Haiti. Sem trabalho, os haitianos começam a ser alvo de preconceitos.

“Eles estão tirando emprego do brasileiro, eles estão trazendo doença, trazendo violência. Então o preconceito, a gente repara que está aumentado”, afirma o padre Paolo Parisi, coordenador da Missão Paz.

Um cortiço tem sido a casa de muitos haitianos. Gabriel Deonis é um deles e mora em um dos quartos desde que chegou ao Brasil, há quatro meses. É um quarto bem pequeno, três metros por três, talvez nem isso. Tem uma pia, um fogão, a parede está completamente mofada, o cheiro lá não é bom e não tem uma janela, é tudo fechado. Não tem armário, as roupas ficam penduradas. O quarto custa R$ 450 por mês. Gabriel divide o espaço com mais dois haitianos. Ele diz que enquanto não conseguir emprego, é ali que ele vai continuar morando.

O governo do Acre declarou que financia a viagem dos haitianos para São Paulo com a ajuda do governo federal porque os imigrantes encaram o Acre só como uma porta de entrada no Brasil. Também segundo o governo acreano, os haitianos querem procurar emprego e encontrar parentes em estados das regiões Sul e Sudeste.

Mutirão

Diante da situação, a Missão Paz lançou uma petição online que reúne assinaturas para exigir a ampliação de serviços para imigrantes, chamada “Diga não ao abandono dos haitianos em São Paulo e sim por uma gestão migratória”.

O documento pede a criação de um ponto de informação e orientação no terminal de ônibus da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, enquanto houver a transferência de imigrantes para a cidade, mais vagas para acolhida de imigrantes e refugiados em abrigos específicos e emissão da carteira de trabalho no local de entrada no país. As demandas foram apresentadas ao secretário municipal de Direitos Humanos de São Paulo, Eduardo Suplicy, mas a instituição ainda não teve uma resposta concreta do que será feito.

O governo organizou um mutirão emergencial para emitir carteiras de trabalho a haitianos.

Segundo o padre Paolo Parise, que fez o pedido de emergência ao Ministério do Trabalho, a Igreja está com superlotação e com dificuldades para arrecadar doações para alimentar os haitianos que lá estão abrigados.

No primeiro dia de operação foram emitidas 60 Carteiras de Trabalho apenas para os imigrantes que se encontram em situação de risco, que já estão com o visto de entrada regularizado e que entregaram a documentação completa na SRTE-SP.

A demora na emissão das carteiras de trabalho também aumenta a chance de os imigrantes caírem em redes de trabalho precário, já que são impedidos de conseguir um trabalho formal e ficam um período longo sem dinheiro.

Pelo menos 230 imigrantes haitianos já foram resgatados de trabalhos em condições análogas à escravidão no Brasil entre 2013 e 2014, sendo pelo menos 12 em São Paulo, em uma oficina de costura na região central da capital paulista.

Luta

Em Mato Grosso, quatro mil haitianos lutam por melhor condição de vida. Os imigrantes, que vieram para o Brasil na esperança de uma vida melhor, esbarram nas dificuldades como idioma e falta de qualificação profissional. Só em Mato Grosso são cerca de 4 mil.

Em uma padaria de Cuiabá alguns funcionários falam pouco ou quase nada em português. A comunicação é na base do improviso.

“A gente pega um, faz o exemplo, mostra como que faz e pede para ele repetir. Ele aprendeu. Aí a gente tenta fazer outra coisa para ele repetir, ele aprende. A gente ensina um de cada vez”, conta Mário Kokura, gerente comercial.

A maioria dos haitianos que vão para Mato Grosso fica em Cuiabá à procura de emprego, mas a falta de qualificação profissional e de domínio do idioma dificulta o acesso ao mercado de trabalho.

“O grande impasse é realmente é não ter a prática do trabalho. Então tem que ser preparado”, diz Eliana Vitaliano, coordenadora da Casa do Migrante.

(Agências)