Os migrantes do Conector são peças de uma disputa entre dois conceitos e seus representantes: a segurança nacional e os direitos humanos.
Se eu voltar para o meu país, vou ser morto. Prefiro morrer aqui, não tenho nada nem ninguém para quem voltar — diz o nigeriano Jimoh Hammed Abiola, de 26 anos, em um inglês tão límpido quanto o pavor que se lê em seus olhos.
Abiola é cristão em um país destroçado pelo grupo terrorista islâmico Boko Haram. Em uma das centenas de ataques à bomba promovidas pelos extremistas, a família de Abiola foi pelos ares. E ele tomou um avião em fuga, até chegar ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo.
Em uma sala de 200 metros quadrados, ladeada por cadeiras e com janelas de vidro pelas quais podem ser vistos aviões, Abiola e outros 20 homens se atropelam para tentar contar sua história. São quase todos negros, jovens, de diversos países da África. Em comum, a maioria tem o receio de voltar para casa por medo de morrer e o desconhecimento de quanto tempo passarão num limbo espacial e jurídico.
— Ninguém fala com a gente, dizem que não falam inglês. Eu preciso de ajuda — diz Abiola, observado por policiais cujo inglês não é fluente.
A sala à qual o GLOBO teve acesso na última quinta-feira (18/06) é chamada de Conector, uma área de segurança internacional localizada no Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos, onde ficam, quase sempre só com a roupa do corpo, os que não puderam entrar no Brasil, os que foram impedidos pelas empresas aéreas de seguir viagem para outro país e os que não querem ou não podem voltar para seu país de origem.
Ali, essas pessoas chegam a passar semanas e meses, sem advogado ou contato com a família e sob a vigilância da Polícia Federal, até conseguir seguir viagem ou pedir refúgio no Brasil. Sem toalha ou sabonete, muitos não tomam banho. O cheiro de suor que impregna a sala é motivo de chacota entre agentes.
Os migrantes do Conector são peças de uma disputa entre dois conceitos (e seus representantes): a segurança nacional e os direitos humanos. E expõem a delicada situação do Brasil para lidar com seu recente status de destino de refugiados. Apenas no ano passado, o país recebeu mais de 11 mil pedidos de refúgio.
— Já recebemos denúncias de agressão e de pessoas que ficam doentes sem acesso à medicação. O Conector é um espaço de violação dos direitos humanos. Muitas vezes essas pessoas são tratadas como invasoras e não como possíveis refugiadas— afirma Paulo Amancio, assessor jurídico do Serviço Franciscano de Solidariedade, que apoia refugiados.
Na última quinta-feira (18/06), o nigeriano Bulaji Olaiya, de 45 anos, retido no Conector havia dois dias, dizia sofrer de diabetes, sem poder ter acesso à insulina que estava na sua bagagem.
Abiola, que também completava seu segundo dia na sala, ainda não sabia como sensibilizar as autoridades para sua situação. Dizia estar em risco de morte, mas em nenhum momento havia mencionado a palavra refúgio. Tampouco escrito que queria ser um refugiado. Abiola desconhecia essa possibilidade, prevista pela lei brasileira desde 1997.
A Polícia Federal alega que não pode informar os migrantes sobre a opção de pedir refúgio, mesmo em casos em que claramente o instrumento poderia ser usado, como o de Abiola. Há casos de gente que, após levar semanas para descobrir que poderia pedir refúgio, escreveu um apelo em papel higiênico.
— O policial não precisa induzir a pedir refúgio, mas nada o impede de mostrar as opções legais. Eles usam a lógica da palavra mágica, a pessoa tem que acertar se não não vai entrar no país — afirma o Defensor Público da União Daniel Chiaretti.
Cumprindo a Lei
Para a Polícia Federal, no entanto, as pessoas que ficam retidas no Conector não são “legítimas refugiadas”, mas pessoas que “saíram de países complicados” em busca de uma vida melhor, para tentar chegar aos Estados Unidos ou, “às vezes, até aliciadas para cometer crimes”. Sem conseguir entrar, elas usariam o artifício do refúgio como um “Plano B”.
— Eles chegam aqui sem visto e querem entrar. Não são como os sírios, que estão fugindo de uma guerra e pedem refúgio logo que chegam. Muitos dos que vão para o Conector nem querem ficar no Brasil, mas, como percebem que não vai ter outro jeito, apelam para o refúgio — diz o delegado Wagner Castilho, da PF, em Guarulhos.
Castilho afirma que é responsabilidade da companhia aérea que trouxe o migrante fornecer alimentação e que a polícia investiga o caso de um nigeriano que foi agredido por comissários de voo que tentaram reembarcá-lo à força de volta para a Nigéria, mas nega qualquer outro tipo de violação dos direitos humanos.
— A gente cumpre a lei. Não estamos coibindo a entrada nem maltratando ninguém. É só pedir refúgio que entra. Somos São Pedro do paraíso sem portões— diz Castilho. Um homem negro, jovem e sozinho aparentava nervosismo durante o embarque para Lagos, a maior cidade da Nigéria, no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP). Seu comportamento e a mala de mão que ele levava chamaram a atenção de agentes da Polícia Federal, que encontraram quase quatro quilos de cocaína no forro da bagagem.
PF prende 23 ‘mulas’
Um homem negro, jovem e sozinho aparentava nervosismo durante o embarque para Lagos, a maior cidade da Nigéria, no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP). Seu comportamento e a mala de mão que ele levava chamaram a atenção de agentes da Polícia Federal, que encontraram quase quatro quilos de cocaína no forro da bagagem.
O caso seria mais uma típica ocorrência em que uma mula — como são chamados os que transportam drogas para o tráfico internacional — é presa em flagrante. Mas os documentos do rapaz, um nigeriano, revelaram que ele era um dos milhares de solicitantes recentes de refúgio no Brasil.
A situação é nova e não é excepcional. Desde janeiro, a Polícia Federal conta ter prendido 23 estrangeiros que possuíam o protocolo do pedido de refúgio e tentavam, em São Paulo, embarcar com drogas para o exterior. Eles são 14% das mulas presas em flagrante este ano.
— Não estamos fazendo ilação. É um fato e nos chamou a atenção. Temos uma lei que salva vidas, mas um fato que se originou dessa lei é que muitos refugiados estão sendo cooptados pelo narcotráfico ou já vieram de seus países com a intenção de cometer crime— afirma o delegado Wagner Castilho.
Demora na análise dos casos
Qualquer estrangeiro em território nacional pode pedir refúgio. Após fazer a solicitação, a pessoa recebe uma autorização provisória de permanência e tem direito a tirar carteira de trabalho e CPF. Cabe ao Comitê Nacional de Refugiados (Conare), órgão vinculado à Secretaria Nacional de Justiça, analisar o pedido e conceder ou não o status de refugiado.
O problema é que hoje o julgamento de cada caso leva mais de um ano para ser feito. Caso tenha o pedido negado, o migrante pode entrar com recurso. Desde 2012, porém, os recursos não são julgados. Hoje, há apenas cinco oficiais de elegibilidade, responsável pelas decisões, no órgão. A Secretaria Nacional de Justiça admite que a demora não é razoável e que haverá mudanças para acelerar o processo.
— A PF tem razão ao questionar o tempo de julgamento. Ele precisa ser diminuído, a demora fragiliza o instituto do refúgio — diz o defensor Daniel Chiaretti.
Segundo o delegado, as investigações apontam que as mulas foram cooptadas por quadrilhas nigerianas. E que as pessoas que passam pelo Conector têm o perfil de mulas:
— Elas estão vulneráveis, conseguem o protocolo de refúgio, mas têm pouca inserção social. São vítimas do tráfico.
PF usa prisões para justificar ‘conector’
A divulgação pela Polícia Federal de casos de tráfico de drogas envolvendo solicitantes de refúgio provocou questionamentos entre autoridades e representantes da sociedade civil. As “mulas” que fizeram pedidos de refúgio representam 0,2% do total de solicitantes do ano passado.
— É um número irrisório. Qual é o propósito da PF de divulgar esse tipo de informação que pode disseminar grande preconceito contra os refugiados e nem é significativa sobre a realidade dessa população? — questionou Camila Asano, especialista em relações internacionais da Conectas, entidade de direitos humanos.
Para o defensor público Daniel Chiaretti, a intenção da polícia é legitimar suas ações, que ele considera “restritivas” em relação aos migrantes e refugiados:
— A PF faz uso dessas prisões para justificar a existência do Conector. Na prática, é a própria PF que está decidindo quem pode ou não pedir refúgio — afirma Chiaretti.
A Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e as organizações de direitos humanos questionam o fato de que a Polícia Federal não assinou um convênio formulado no começo do ano que garantiria o acesso de defensores e assistentes sociais à área do Conector.
— A polícia está analisando ainda se vai assinar o convênio. Mas a Defensoria Pública e o posto humanizado da assistência social podem entrar quando quiser. Não sei por que eles não vêm — afirmou o delegado Wagner Castilho, da PF em Guarulhos.
Informado das declarações do delegado, o defensor público Daniel Chiaretti, disse que conseguiu ter a entrada autorizada no Conector apenas uma vez, depois de muita negociação, e que teve o acesso negado reiteradamente. E que, na única ocasião em que pode entrar, encontrou dois solicitantes de refúgio que não tinham sido encaminhados pela PF depois de vários dias retidos na sala.
— É mentira. É mentira que eu posso entrar. A polícia nunca permite a nossa entrada — afirmou Chiaretti.
Chiaretti questionou ainda o teor das informações passadas pela Polícia Federal em ofícios à defensoria. Na quinta-feira em que o GLOBO visitou o Conector e encontrou 21 pessoas, o defensor afirmou ter recebido um documento da PF informando que no espaço havia apenas um viajante indiano impedido pela companhia aérea de embarcar em férias para Port of Spain, a capital de Trinidad e Tobago.
Mariana Sanches e Colaborou Tatiana Farah
(O GLOBO – 21/06/2015)